XISTO DE
PAULA BAHIA
(SALVADOR, BAHIA 6/8/1841 – CAXAMBU, MG-
30/10/1894)
Por
volta de 1860, quando o jovem filho de um oficial veterano das lutas da
Independência e da Cisplatina começou se tornar conhecido nas rodas boêmias de
Salvador sob o estranho nome de Xisto
Bahia, as velhas modinhas sentimentais viviam um curioso momento. Divulgada
em meados do século XVIII em Portugal pelo mulato carioca Domingos Caldas Barbosa, (Rio 1740 – Lisboa 9/11/1800), a modinha passara a ser cultivada nos salões
por compositores eruditos influenciados pela música italiana. Lereno Selinuntino, como era conhecido, é considerado nome importante na música popular brasileira. Patrono da cadeira nr. 3 da Academia Brasileira de letras. Sacerdote, poeta e músico
Assim,
já no início do século XIX, quando o Príncipe Regente Dom João se transportou
com toda a corte portuguesa para o Brasil, as modinhas algo irônicas e
espontâneas de Caldas Barbosa tinham-se transformado em verdadeiras árias de
óperas. Como a produção dessas modinhas se circunscrevia aos meios do Paço e da
Capela Real (onde até o Padre José Mauricio, compositor de missas e de
réquiens, não escapava às tentações do gênero profano), as letras de tais
canções eram quase sempre escritas por poetas e literatos. Isso tudo contribuía para conferir à modinha
uns ares aristocráticos, que chegaria a levar estudiosos como Mário de Andrade
a admitir que sua origem fora erudita, e só muito tarde o gênero passara ao
violão do povo pela mão dos seresteiros e boêmios românticos. Na verdade, apesar
de a modinha ter figurado quase cem anos como a música de salão predileta dos
compositores clássicos de Portugal e do Brasil, sua popularização vinha sendo
promovida desde a década de 1830, no Rio de Janeiro, pela primeira geração de
poetas do romantismo.
Reunidos
na loja do livreiro e editor carioca Paula
Brito, no Largo do Rossio Grande (hoje Praça Tiradentes), poetas como Laurindo
Rabelo (Rio de Janeiro 8/7/1826 –
Rio de Janeiro 28/9/1864),
Deus pede estrita conta de meu tempo
é forçoso do tempo já dar conta;
Mas como dar sem tempo tanta conta,
Eu que gastei sem conta tanto tempo
( domínio público)
Gonçalves de Magalhães, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias começaram a escrever versos que eram musicados não mais apenas por
músicos de escola, mas por simples tocadores de violão, como o parceiro de
Laurindo Rabelo, João Luiz de Almeida Cunha, conhecido por Cunha dos
Passarinhos. O próprio Francisco de Paula Brito
(que era um mulato de origem modesta e chegara ao nível dos literatos do tempo
com esforço de autodidata) também compunha modinhas e lundus, chegando a
imprimir em sua oficina a partitura do lundu A MARREQUINHA DE IAIÁ, com música de Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional. Ativista político , foi o primeiro a inserir no debate político a questão racial. O Jornal O HOMEM DE COR ,primeiro jornal brasileiro dedicado à luta contra o preconceito racial, colocando-o como precursor da imprensa negra no Brasil.
Como as
principais cidades brasileiras estavam em fase de rápido crescimento, essas
produções de poetas e de músicos – de qualquer maneira mais ligados às fontes
populares que os das gerações anteriores – ganharam os violões anônimos das ruas,
e imediatamente as modinhas entraram a constituir parte obrigatória do
repertório de gemidos de mestiços de gaforinha partida ao meio.
É por essa época que,
na Bahia, aparece o nome do violonista, compositor e depois ator XISTO BAHIA. De saída, sua importância
estava em que, sendo um compositor do povo pela origem, sua condição de ator ia
levá-lo a atuar no âmbito da classe média: isso o tornaria o intermediário que
estava faltando entre os literatos letristas da primeira metade do século XIX e
aqueles cantores de rua que dependiam da criação alheia para fazer cair o
queixo de seus auditórios de esquina soluçando nos bordões.
Embora
a bibliografia no que se refere à modinha popular seja muito escassa, a maioria
dos depoimentos existentes coincide no reconhecimento dessa importância do ator
e compositor baiano. No mesmo livro em que cita Xisto Bahia como “o maior
cantador de modinhas do século passado”, o musicólogo Flausino Rodrigues do
Vale, lembra que o historiador italiano Vincenzo Cernicchiaro definira o baiano
como “espírito de harmoniosa
graça, inimitável pela maneira especial com que sabia cantar tanto as próprias
modinhas como as de alheio punho”, acrescentando: “E era de ver-se como este
músico ingênuo, apesar de não conhecer uma nota de música, sabia comover todo
um auditório”.
Isso
queria dizer que, apesar da condição de representante das camadas mais baixas
do povo Xisto Bahia – tal como mais tarde aconteceria no rio com Catulo da
Paixão Cearense – conseguia superar com a força da sua personalidade a marca de
classe, impressionando as camadas médias e a própria elite com a beleza da
música e a dignidade dada à interpretação das suas modinhas.
De
fato, ao apresentar-se na cidade paulista de Piracicaba em 1888 – quando já
percorria o Brasil como ator consagrado -,
Xisto Bahia apesar de citado pela Gazeta de Piracicaba como o ator que “cantou
ao violão as modinhas do capadócio, sendo ruidosamente aplaudido pela plateia”
(o que dá a entender, pela escolha do termo “capadócio”, o preconceito do
comentarista contra o gênero da música), tem a sua participação pessoal
ressalvada pela observação: “ Xisto é um cavalheiro extraordinário: reúne o dom
de uma fisionomia, um aspecto singular, e no sexo amável abre uma brecha
imensa, como a uma muralha de pedra não o faria a maior artilharia”.
Para
o longo processo da retomada da modinha como gênero popular – embora sempre
sujeita ao talento individual dos “modinheiros”, ao contrário das demais
canções populares passíveis de interpretação coletiva, como seria mais tarde o
caso do samba -, a importância assumida pela figura de Xisto Bahia era
fundamental.
O
fato de Xisto Bahia ter livre trânsito entre os intelectuais, depois que a sua
parceria com o maranhense Artur Azevedo tornou-o praticamente co-autor da
comédia em um ato UMA VÉSPERA DE REIS (representada pela primeira vez no Teatro São
João, na Bahia, a 15 de julho de 1875), ia fazer com que vários poetas baianos
se dignassem também a escrever versos especialmente para serem por ele
transformados em modinhas populares.
Animados
pelo prestígio de Xisto Bahia perante o público dos teatros, figuras da elite
como o Visconde de Ouro Preto, o
historiador Melo Moraes Filho e o poeta pernambucano Plinio de Lima lançaram-se
como autores de modinhas. E em breve os seresteiros podiam contar com modinhas
como a famosa
A CASA BRANCA DA SERRA, que em 1880 , Guimarães Passos “compôs e cantou numa memorável noite de boemia”, segundo
afirma o autor baiano Afonso Rui em seu livro Boêmios e Seresteiros do Passado.
Quem
melhor distinguiu esse traço de ligação estabelecido através de Xisto Bahia
entre a segunda geração de poetas românticos e os catadores de modinhas do povo
foi o historiador da música brasileira Guilherme de Melo. Baiano como o próprio
Xisto (que conheceu e ouviu cantar na cidade de Salvador), Guilherme de Melo
lembra em seu livro A MÚSICA NO BRASIL, com toda exatidão: “o que se dava com
relação a Laurindo Rabelo no Rio, reproduzia-se na Bahia
com Xisto Bahia, ator e aprimorado
trovador, que arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou alheias,
interpretando e cantando como artista que era engraçadíssimos lundus, aos
repinicados do violão”.
E
após salientar que o mais admirável no autor baiano “era a pujança do seu estro
musical sem conhecer uma só nota de música”, Guilherme de Melo entrava na
análise da modinha Quis debalde varrer-te da memória, anotando: “não haverá
decerto, no mundo, artista nenhum que desdenhe assinar o seu Quis Debalde, uma vez que no gênero ele
em nada é inferior aos seus similares. Como o Nel cor più non mi sento, de Paisiello, sobre o qual Beethoven, o
mais sublime dos mestres, não desdenhou fazer diversas variações; como o Carnaval de Veneza, que é o canto mais
popular do mundo inteiro e que tem servido de tema a centenas de variações de
artistas distintos como Lizst, Paganini e outros; como o Ah che la morte ognora, do Trovador
de Verdi, que quanto mais cantado mais lindo se torna, assim o Quis Debalde, de Xisto Bahia, sendo uma
composição essencialmente pura e bela como as supracitadas, há de atravessar o
perpassar dos tempos, conservando sempre o mesmo encanto e a mesma frescura
como se fosse escrito na atualidade”.
A importância de Xisto
Bahia, porém, não se esgotava nessa criação de modinhas que, apesar da comparação
com músicas eruditas europeias, imediatamente se tornavam populares em todo o
Brasil. Conforme salienta Afonso Rui no seu livro Boêmios e Seresteiros do
Passado, “... não era Xisto menos inspirado no compor de lundus então em voga
como o ISTO É BOM QUE DÓI, O
PESCADOR (COM LETRA DE ARTUR AZEVEDO), A
MULATA e A PRETA, esta última ainda ouvida por mim, cantada nesta cidade
(da Bahia) num circo de cavalinhos, por Eduardo das Neves”. A citação, além de
valer como um documento do papel de divulgador nacional de músicas populares
assumido no início do século pelo palhaço Eduardo das Neves, do Rio de Janeiro,
ainda é acrescida por Afonso Rui com esta lembrança reveladora, o propósito de
Xisto Bahia: o estribilho do lundu A Preta era, nada mais, nada menos,
do que o célebre
“Laranja, banana,
Maçã,
cambucá,
Eu tenho
de graça
Que a preta me dá”,
tantas
vezes aproveitado mais tarde por outros compositores, entre eles o também
baiano Dorival Caymmi no seu samba Cais Dourado.
Alguns desses lundus de Xisto Bahia, como o ISTO É BOM, lançado no
teatro de revista (o grande divulgador das músicas populares, antes do disco e
do rádio), alcançaram, em pleno sucesso, o início do Século XX, com seus
estribilhos transformados em música de carnaval.
Para
Xisto Bahia – e até neste ponto ele foi representativo – o sucesso e a fama só
não lhe conseguiram dar a fortuna que merecia. E após uma vida inteira de
glórias e de fama como ator (até o Imperador
Pedro II o aplaudiu no espetáculo comemorativo da Batalha do Riachuelo, em
1880), Xisto Bahia foi obrigado a aceitar em l891 um emprego modesto de
funcionário da penitenciária de Niterói. Despedido logo no ano seguinte, quando
o presidente do Estado do Rio e seu protetor Francisco Portela é deposto do
cargo, Xisto Bahia (já casado e com quatro filhos) entra em depressão, adoece e
morre em fins de 1894 na cidade balneária mineira de Caxambu.
O aparecimento de outros gêneros de música popular
no início do século, fazendo recuar a modinha e o lundu para a memória dos
velhos, ia tornar o nome de Xisto Bahia quase desconhecido das novas gerações.
Quando, porém, em 1902, a Casa Edison começou a gravar os primeiros discos (até
então a gravação era em cilindros), a música escolhida para inaugurar a série
10 000 da matrizes Zon-o-Phone foi o lundu de Xisto Bahia ISTO É BOM, que o
cantor baiano interpretava com graça, ressaltando a malícia rítmica que
envolvia os versos:
“O inverno é rigoroso,
Já dizia a minha avó;
Quem dorme junto tem frio
Quanto mais quem dorme só...
Isto é bom, isto é bom
Isto é bom que dói”.
Se eu brigar com meus amores
Não se intrometa ninguém
Que acabando-se os arrufos
Ou eu vou, ou ela vem
Isto é bom, Isto é bom,
Isto é bom que dói.
Quem ver mulata bonita
Bater no chão com o pezinho
No sapateado ameio
Mata meu coraçãozinho
Isto é bom, Isto é bom
Isto é bom que dói.
As cadeiras me dói, dói, dói
Minha mulata bonita
Vamos ao mundo girar
Vamos ver a nossa sorte
Que Deus tem para nos dar
Isto é bom, Isto é bom
Isto é bom que dói
Minha mulata bonita
Quem te deu tamanha sorte
Foi um soldado de Minas
Ou do Rio Grande do Norte?
Isto é bom, Isto é bom,
Isto é bom que dói.
Minha viola de pinho
Eu mesmo fui o pinheiro
Quem quiser coisa boa
Não tenha amor ao dinheiro.
Fonte: Nova História da Música Popular
Brasileira
Abril Cultural - 1978
Fotos: Google