Quando
o “jovem tenor” Vicente Celestino
estreou no teatro de revista da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, em
1914, cantando “uma romanza, que foi
bisada sob aplausos calorosos da assistência”, a fama de Caruso corria o mundo,
levada pelos telegramas das agências internacionais, que começavam a fabricar
os primeiros ídolos de massa. Subir ao palco como o grande Caruso, para
triunfar diante das plateias de elite das casas de ópera, era então, no Brasil,
o ideal de qualquer cantor a quem a natureza concedesse um registro de voz
acima do necessário para cantar as modinhas melosas ou as cançonetas cheias de
duplo sentido responsáveis pela transformação das casas de chope cariocas em
sucursais do “vaudeville” parisiense.
Antes
de Vicente Celestino, outro cantor, o campista Mário Pinheiro, já tinha chamado
a atenção da gravadora americana Victor como uma promessa, chegando a viajar
para os Estados Unidos e Itália, a fim de estudar o “ bel canto”. Celestino tinha quinze anos, em 1909, quando
Mário, filho de uma humilde enfermeira cearense, pode aparecer na inauguração
do Teatro Municipal, abrindo o peito na ópera Moema, de Delgado de
Carvalho, numa sonora vingança pública aos anos de silêncio humilde de menino
pobre.
Vicente
Celestino, filho de imigrantes calabreses, e sapateiro de profissão, não podia
perder a oportunidade que lhe dava sua potência vocal de subir também, além das
chinelas, através de uma das únicas formas de ascensão social que a sociedade
do tempo permitia aos representantes das classes mais baixas. O que dentro de
vinte e poucos anos caberia ao rádio – ou seja, a criação de ídolos para a
massa – só era possível então através do teatro de revista.
No
fundo, o que os “jovens tenores” como Vicente Celestino desejavam era atingir a
posição de prestígio máximo: cantar para o público dos grandes teatros. Mas,
enquanto a oportunidade não chegava, era preciso começar a escalada pelas revistas
da Praça Tiradentes, onde os cartazes naquele ano mesmo da estreia de Vicente
atraíam um público bem mais modesto como
a sugestão frascária de títulos como O
GABIRU E DUAS POR NOITE.
Graças
aos seus cabelos pretos encaracolados e a uma voz que, se não primava pela
finura da emissão, possuía ao menos uma irresistível coerência com o seu físico
de estivador de cais de porto, Vicente
Celestino não teria do que se queixar em sua caminhada para o domínio dos
palcos. Embora não chegasse ao Teatro Municipal, o disco, desde 1916, e o
rádio, a partir da década de 30 lhe garantiriam uma popularidade nacional que
nenhum desempenho na TOSCA de Puccini
ou na AÏDA de Verdi seria capaz de
lhe dar. O público do “teatro por sessões”,
atraído pela fama de vigor circense de uma voz que – diziam – quebrava
cristais e obrigava o cantor a ficar de costas para o microfone, nos estúdios
de gravação, desfilava diante das bilheterias para poder gozar o privilégio de
torcer, de relógio na mão pela sustentação de um Dó de peito além dos trintas
segundos. Vicente Celestino, por sua vez, soube pagar a simplicidade e a pureza
dessa admiração com a honestidade de um bom filho do povo.
Os
pomposos temas das óperas que jamais chegou a cantar, ele de certa maneira os
trocou em miúdos na descabelada dramaticidade das suas canções e dos seus
filmes, em que os refinados venenos dos libretos italianos eram substituídos
pela cachaça, e as complicadas tramas de famílias cortesãs viravam histórias do
tipo Coração Materno. Depois de pretender atingir a altura das elites, Vicente
Celestino conformou-se em ser povo. E essa foi a razão de seu sucesso.
J.R.
TINHORÃO
INFÂNCIA
Dois
anos após terem se instalado à Rua
Paraíso, no bairro de Santa Teresa, José Celestino e Serafina Gamera tiveram um
filho. Se naquele dia 12 de setembro de
1894 ainda estivessem na velha Catanzaro, cidadezinha da Calábria, o menino se chamaria Antonio Vincenzo, mas haviam
trocado a Itália pela capital do Brasil, e o menino foi batizado de Antônio Vicente Filipe Celestino.
O
casal era apreciador do “bel canto”, e os onze filhos iriam crescer ouvindo nas
velhas chapas de gramofone as vozes de Enrico Caruso, Francesco Tamagno e
outros famosos tenores. Talvez por isso, os cinco meninos irão seguir carreira
artística: João será galã-cômico; Pedro
e Vicente, tenores; Radamés, barítono e Amadeu, baixo.
Pedro
Celestino chegaria a ser sucesso em 1926, com a valsa lenta AVE-MARIA, de Erotides de Campos e Jonas
Neves. Mas nada se compararia ao sucesso de Vicente, sucesso que se estenderia
por mais de cinco décadas.
Aos
sete anos, Vicente foi matriculado numa escola particular, a 10 mil-réis por
mês. Mas no ano seguinte, além de não terem dinheiro para pagar a escola, os
pais necessitavam da ajuda do menino: o volume de roupas para passar aumentara,
e era Vicente quem virava calças do avesso. Mas o menino ainda conseguia dar
umas escapadas para a rua, onde conheceu um crioulinho que tocava flauta muito
bem; Alfredo Viana, o Pixinguinha. Com ele saiu pela Ladeira do Viana, no
tradicional Bloco das Pastorinhas. Vicente vestido de anjo e cantando,
Pixinguinha tocando flauta.
Um
dia o pai achou que Vicente podia ajudar mais em casa: em vez de apenas
levar-lhe o almoço na sapataria, passaria a trabalhar lá. E, em meio às
marteladas para pregar saltos, Vicente ia cantarolando as músicas que aprendia.
Mas o menino era inquieto, e logo arrumava biscates: ora vendia peixe que um
tio lhe arranjava no mercado, ora entregava mercadorias de um armazém, etc...
Para afastar o filho disso, Seu José resolveu contratá-lo a 500 réis por dia.
Inútil. Logo Vicente arranjou um jeito de quintuplicar esse salário,
transformando-se em ajudante de pedreiro. Aí é a vez de a mãe intervir:
matricula-o no Liceu de Artes e Ofícios,
onde ele vai tentar, sem êxito, aprender desenho. Em meio a todos esses vaivéns profissionais,
Vicente nunca parava de cantar. Sabia de cor quase todas as modinhas do célebre
Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), e sempre era convidado para cantar em
festinhas familiares e paroquiais.
Foi
em 1903 que aconteceu um fato jamais esquecido por Vicente. Cantava no coral
infantil do 1º ato da ópera CARMEN,
de Bizet, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. CARUSO, que estava no Brasil,
assistia ao espetáculo e logo notou aquele menino de nove anos, com voz já
poderosa, destacando-se no conjunto. Ao fim da representação, a hoje legendária
figura dirigiu-se a Vicente naquela língua que ele estava tão acostumado a
ouvir em casa: convidou-o a ir estudar na Itália. E foi assim que o jovem
Caruso foi parar na Rua do Paraíso. Mas Vicente pensou que nunca mais teria
oportunidade de fazer carreira: os pais não deram permissão ao tenor para levar
o menino.
Caruso
foi embora e Vicente foi trabalhar porque a situação da família, como de
costume, ia mal. Ficou um pouco em uma fábrica de guarda-chuvas, depois
trabalhou numa fábrica de escadas. Aos doze anos era ajudante de bicheiro (o
jogo ainda era permitido), aos
dezesseis o pai o recaptura para a
sapataria, agora uma pequena indústria, com máquinas e tudo. Lá ele é logo
promovido a mestre, mediante o brilhante recorde de 1200 saltos pregados num
dia.
Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril cultural – 1977
Fotos: Google