quinta-feira, 3 de agosto de 2017

I- VICENTE CELESTINO - NESTAS VELHAS OPERETAS , O RETRATO DE UMA ÉPOCA - INFÂNCIA




Quando o  “jovem tenor” Vicente Celestino estreou no teatro de revista da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, em 1914,  cantando “uma romanza, que foi bisada sob aplausos calorosos da assistência”, a fama de Caruso corria o mundo, levada pelos telegramas das agências internacionais, que começavam a fabricar os primeiros ídolos de massa. Subir ao palco como o grande Caruso, para triunfar diante das plateias de elite das casas de ópera, era então, no Brasil, o ideal de qualquer cantor a quem a natureza concedesse um registro de voz acima do necessário para cantar as modinhas melosas ou as cançonetas cheias de duplo sentido responsáveis pela transformação das casas de chope cariocas em sucursais do “vaudeville” parisiense.
Antes de Vicente Celestino, outro cantor, o campista Mário Pinheiro, já tinha chamado a atenção da gravadora americana Victor como uma promessa, chegando a viajar para os Estados Unidos e Itália, a fim de estudar o “ bel canto”.  Celestino tinha quinze anos, em 1909, quando Mário, filho de uma humilde enfermeira cearense, pode aparecer na inauguração do Teatro Municipal, abrindo o peito na ópera Moema,  de Delgado de Carvalho, numa sonora vingança pública aos anos de silêncio humilde de menino pobre.
 Vicente Celestino, filho de imigrantes calabreses, e sapateiro de profissão, não podia perder a oportunidade que lhe dava sua potência vocal de subir também, além das chinelas, através de uma das únicas formas de ascensão social que a sociedade do tempo permitia aos representantes das classes mais baixas. O que dentro de vinte e poucos anos caberia ao rádio – ou seja, a criação de ídolos para a massa – só era possível então através do teatro de revista.
No fundo, o que os “jovens tenores” como Vicente Celestino desejavam era atingir a posição de prestígio máximo: cantar para o público dos grandes teatros. Mas, enquanto a oportunidade não chegava, era preciso começar a escalada pelas revistas da Praça Tiradentes, onde os cartazes naquele ano mesmo da estreia de Vicente atraíam um público  bem mais modesto como a sugestão frascária de títulos como O GABIRU E DUAS POR NOITE.
Graças aos seus cabelos pretos encaracolados e a uma voz que, se não primava pela finura da emissão, possuía ao menos uma irresistível coerência com o seu físico de  estivador de cais de porto, Vicente Celestino não teria do que se queixar em sua caminhada para o domínio dos palcos. Embora não chegasse ao Teatro Municipal, o disco, desde 1916, e o rádio, a partir da década de 30 lhe garantiriam uma popularidade nacional que nenhum desempenho na TOSCA de Puccini ou na AÏDA de Verdi seria capaz de lhe dar. O público do “teatro por sessões”,  atraído pela fama de vigor circense de uma voz que – diziam – quebrava cristais e obrigava o cantor a ficar de costas para o microfone, nos estúdios de gravação, desfilava diante das bilheterias para poder gozar o privilégio de torcer, de relógio na mão pela sustentação de um Dó de peito além dos trintas segundos. Vicente Celestino, por sua vez, soube pagar a simplicidade e a pureza dessa admiração com a honestidade de um bom filho do povo.
Os pomposos temas das óperas que jamais chegou a cantar, ele de certa maneira os trocou em miúdos na descabelada dramaticidade das suas canções e dos seus filmes, em que os refinados venenos dos libretos italianos eram substituídos pela cachaça, e as complicadas tramas de famílias cortesãs viravam histórias do tipo Coração Materno. Depois de pretender atingir a altura das elites, Vicente Celestino conformou-se em ser povo. E essa foi a razão de seu sucesso.
                                                                                            
 J.R. TINHORÃO


INFÂNCIA

Dois anos após terem se instalado  à Rua Paraíso, no bairro de Santa Teresa, José Celestino e Serafina Gamera tiveram um filho. Se naquele  dia 12 de setembro de 1894 ainda estivessem na velha Catanzaro, cidadezinha da Calábria, o menino  se chamaria Antonio Vincenzo, mas haviam trocado a Itália pela capital do Brasil, e o menino foi batizado de Antônio Vicente Filipe Celestino.
O casal era apreciador do “bel canto”, e os onze filhos iriam crescer ouvindo nas velhas chapas de gramofone as vozes de Enrico Caruso, Francesco Tamagno e outros famosos tenores. Talvez por isso, os cinco meninos irão seguir carreira artística: João será  galã-cômico; Pedro e Vicente, tenores; Radamés, barítono e Amadeu, baixo.
Pedro Celestino chegaria a ser sucesso em 1926, com a valsa lenta AVE-MARIA, de Erotides de Campos e Jonas Neves. Mas nada se compararia ao sucesso de Vicente, sucesso que se estenderia por mais de cinco décadas.



Aos sete anos, Vicente foi matriculado numa escola particular, a 10 mil-réis por mês. Mas no ano seguinte, além de não terem dinheiro para pagar a escola, os pais necessitavam da ajuda do menino: o volume de roupas para passar aumentara, e era Vicente quem virava calças do avesso. Mas o menino ainda conseguia dar umas escapadas para a rua, onde conheceu um crioulinho que tocava flauta muito bem; Alfredo Viana, o Pixinguinha. Com ele saiu pela Ladeira do Viana, no tradicional Bloco das Pastorinhas. Vicente vestido de anjo e cantando, Pixinguinha tocando flauta.
Um dia o pai achou que Vicente podia ajudar mais em casa: em vez de apenas levar-lhe o almoço na sapataria, passaria a trabalhar lá. E, em meio às marteladas para pregar saltos, Vicente ia cantarolando as músicas que aprendia. Mas o menino era inquieto, e logo arrumava biscates: ora vendia peixe que um tio lhe arranjava no mercado, ora entregava mercadorias de um armazém, etc... Para afastar o filho disso, Seu José resolveu contratá-lo a 500 réis por dia. Inútil. Logo Vicente arranjou um jeito de quintuplicar esse salário, transformando-se em ajudante de pedreiro. Aí é a vez de a mãe intervir: matricula-o  no Liceu de Artes e Ofícios, onde ele vai tentar, sem êxito, aprender desenho.  Em meio a todos esses vaivéns profissionais, Vicente nunca parava de cantar. Sabia de cor quase todas as modinhas do célebre Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), e sempre era convidado para cantar em festinhas familiares e paroquiais.




Foi em 1903 que aconteceu um fato jamais esquecido por Vicente. Cantava no coral infantil do 1º ato da ópera CARMEN, de Bizet, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. CARUSO, que estava no Brasil, assistia ao espetáculo e logo notou aquele menino de nove anos, com voz já poderosa, destacando-se no conjunto. Ao fim da representação, a hoje legendária figura dirigiu-se a Vicente naquela língua que ele estava tão acostumado a ouvir em casa: convidou-o a ir estudar na Itália. E foi assim que o jovem Caruso foi parar na Rua do Paraíso. Mas Vicente pensou que nunca mais teria oportunidade de fazer carreira: os pais não deram permissão ao tenor para levar o menino.

Caruso foi embora e Vicente foi trabalhar porque a situação da família, como de costume, ia mal. Ficou um pouco em uma fábrica de guarda-chuvas, depois trabalhou numa fábrica de escadas. Aos doze anos era ajudante de bicheiro (o jogo ainda era permitido),  aos dezesseis  o pai o recaptura para a sapataria, agora uma pequena indústria, com máquinas e tudo. Lá ele é logo promovido a mestre, mediante o brilhante recorde de 1200 saltos pregados num dia.


Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril cultural – 1977
Fotos: Google

Um comentário:

  1. Yara! que prazer poder ler as suas postagens, você é cultura parabéns

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