domingo, 28 de junho de 2020

MORAES MOREIRA E OS NOVOS BAIANOS - I




Era o caos. Superboy cruzava o Teatro Vila Velha, traçando vôos rasantes sobre a plateia, suspenso num trapézio. Duas meninas tinham seu corpo pintado de branco, em padrões “absurdistas”, para que brilhassem quando fosse acionada a luz negra, enquanto guitarras apunhalavam junto ao coro rosnado de “É BARRA LÚCIFER!”. No dia seguinte, um crítico baiano afirmaria: “Se isso for arte, eu me suicido”.
           Nome do espetáculo: DESEMBARQUE DOS BICHOS DEPOIS DO DILÚVIO.

Os ousados  participantes: Luiz Dias Galvão, engenheiro agrônomo formado e praticante, poeta, aficionado de música, cinema e teatro, 32 anos; Antônio Carlos de Morais Pires (Moraes Moreira), 21 anos de audição do alto-falante (porta-voz de políticos, Ãngela Maria, Roberto Carlos e Beatles), da cidade de Ituaçu, no interior da Bahia; Paulo Roberto de Figueiredo, 23 anos,egresso da cidade de Santa Inês e ex-crooner da Orquestra Avanço, presença obrigatória nos bailes da região de Salvador, 
 apelidado “La Bouche” ou “Paulinho Boca-de-Cantor”; a niteroiense Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, recém-chegada a Salvador, onde comemoraria seus dezessete anos morando debaixo da ponte; Jorginho, Carlinhos, Lico e Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, o “Pepeu”, que integravam a banda de apoio, os Leif”s. À exceção de Bernadete, todos baianos e todos ilustres desconhecidos, estranhos, radicais, acintosos e novos.  Era o início dos NOVOS BAIANOS,  em pleno caos de 1969.



Caetano e Gil levavam malas, violões e dores para Londres, rumo a um exílio que duraria quase três anos, deixando os remanescentes escombros do tropicalismo para músicos, poetas, sábios e pirados a granel, que não sabiam o que fazer dos  dois anos de repressão e censura que praticamente não permitiam qualquer acontecimento artístico.
No meio do torvelino de indecisões e indefinições, os “ripis” de Salvador, Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca-de-Cantor, Baby Consuelo e Pepeu, nada tinham a perder, tratando de seguir à risca as palavras do mestre Caetano: “ Por que não? Por que não?”.
Baby, menina-problema de Niterói, costumava estudar no telhado de sua casa de vila e, à noite, ficava admirando em seu quarto um pôster de Brigite Bardot, remoendo silenciosa um desejo de ter iniciais tão marcantes: BB. Sonhava, como tantas de sua idade, ser artista, cantora, merecer pôster com suas iniciais. O nome não ajudava e o ginásio atrapalhava ainda mais. Num rasgo de libertação, vai com uma amiga, Ediane, passar as férias em Salvador, onde conhece Galvão e Moraes, “no bar mais quente de lá, o Brasa”.  Galvão e Moraes haviam sido apresentados pelo cantor e compositor Tom Zé, amigo de Galvão desde que este lhe fez um projeto para o jardim de sua casa. Moraes, saído de um curso de percussão no Seminário de Música da Bahia (não havia vaga no de violão, seu instrumento), também conhecia Tom Zé, com quem fazia um show no Teatro Vila Velha.
Paulinho La Bouche, interiorano sedento de chances novas na música, também conhece a tríade baiana e junta-se a eles na pensão de Dona Maritó. E de todos que formariam mais tarde os Novos Baianos, Pepeu era indiscutivelmente o músico, mestre da guitarra, dono de um estilo desde então inconfundível, genuinamente brasileiro.  E era ainda, o único veterano no sentido estrito da palavra, pois já passara por três grupos: aos onze anos, formou Os Gatos, ou melhor, The Cat’s (“A maior esculhambação: eu cantava em inglês sem saber falar”); aos doze mudou o nome e a formação, criando Os Minos, patrocinados pelo dono de uma loja de roupas do mesmo nome que trocava o dinheiro e a vestimenta pela promoção de seus produtos. O grupo durou quatro anos e Pepeu, que até essa época tocava contrabaixo – momento raro registrado em compacto pela Copacabana em 1966: Febre de Minos e Fingindo me amar --, saca pela primeira vez da guitarra. Junto com seu irmão Jorginho e os amigos Lico e Carlinhos, funda Os Leif’s.
Pepeu já sentira o gosto sedutor do sucesso com Os Minos, apresentando-se em São Paulo, nos programas de TV de Eduardo Araújo e do infante Ed Carlos. Entretanto, tudo não passava de pão, circo e energia, ao som de muito Renato e seus Blue Caps e Hermann Hermits – até aparecerem Gilberto Gil e o Tropicalismo.
- “Foi Gil quem me lançou realmente como guitarrista, me chamando para tocar com ele e Caetano no show de despedida no Teatro Casto Alves,  o Barra 69. Ele me viu em um programa da TV Salvador acompanhando Moraes Moreira em São Paulo, Meu Amor, de Tom Zé. Ligou para a estação, achou meu endereço e foi me buscar em casa”.
E em pleno caos de 1969, em meio à ruínas das bananas e da antropofagia  renascentista  do tropicalismo, que surgem os malandros, loucos, imprevisíveis  NOVOS BAIANOS. Novos porque pós-Gil e Caetano; baianos porque sim. Ou, como conta Pepeu, porque o grupo ia se apresentar na Record e ainda não tinha nome; então, na hora de eles  entrarem em cena, um funcionário da emissora gritou:
--  CHAMA AÍ ESSES NOVOS BAIANOS!


Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL CULTURAL - 1978
Fotos: GOOGLE



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