O
garoto da cidade sentiu um pouco de medo. Na fazenda, fora da casa, do
terreiro, do pomar, tudo parecia desconhecido, selvagem.
A
charrete parou; dos dois lados da estradinha não muito mais do que mato. Só um
pequeno roçado de feijão marcava a presença humana.
A
charrete parou e o avô disse – vamos descer um pouco – tenho um assunto a
tratar com o Valdomiro. O garoto quis pedir ao avô para não ir, tinha medo. Nhô
Miro, o menino conhecia do terreiro, do curral, do gemido agudo do carro de
bois.
Um
cachorro magro como a morte, o pelo junto à cauda, derrubado pela sarna, avisou
que chegavam. A casa era humilde, “como a casa do joão-de-barro” pensou o
garoto. A parede de barro, o chão de
terra, as panelas no canto, o choro da criança de barriga estufada, a miséria.
Só a violinha pendurada na parede.
O
filho mais velho de Nhô Miro olhou o garoto da cidade. Olhou de frente, pois
eram do mesmo tamanho. Não prestou atenção nos sapatos (sapatos?), nem na cor
da pele, branca, tão diferente da sua própria, onde o amarelo azeitonado
mostrava o passado índio. Viu apenas que o menino urbano olhava para a parede,
para a viola. Então, tirou-a da parede e ofereceu:
-
Toca.
O
menino estremeceu diante da oferta, buscou o avô que havia se afastado a combinar
com Nhô Miro alguns trabalhos que o caipira deveria executar para o patrão, de
graça, em troca da permissão de manter sua choupana e um roçado na propriedade
alheia.
-
Toca você – foi o que conseguiu responder.
O
outro pensou: tocaria sim, mas diante daquele senhorzinho, deveria ser algo bem
respeitoso. Passou os dedos pelas cordas tensas da viola, segurou um pouco a
imaginação e soltou a voz:
- no artá da virge,/ se
atrapaiô.
O
garoto da cidade não entendia direito, mas permaneceu em silêncio. Sentia-se
fascinado pelas canções tristes e alegres, que foram desfilando, e só se lembra
de ter ouvido Nhô Miro dizer:
- descurpa o garoto... ele
gosta de tirá umas musguinhas na viola.
O
avô chama o garoto para ir embora.
-
Vô, eles tocam música!
0
avô pisa no estribo, puxa-se para cima da charrete, desata as rédeas, faz um
movimento de pulso batendo de leve com o couro do chicote no lombo do animal e
responde:
- não é música não. É só
música caipira. Não é gente; são só uns caipiras.
A
prepotência e o preconceito do branco senhor das terras e, mais tarde, do homem
urbano, sempre bloqueou a difusão das formas de cultura popular do Sudeste do
país. Assim como o caipira foi, por séculos, considerado um sub-homem, também
sua música foi considerada uma submúsica, e até hoje a discriminação persiste.
E, no entanto, talvez seja esta a produção cultural mais sólida, mais
firmemente enraizada, ao menos no interior de São Paulo, triângulo mineiro, sul
de Mato Grosso e norte do Paraná.
Ela
começa a surgir com a descoberta do Brasil e a chegada dos jesuítas a São
Paulo. Na interação do religioso com o índio, e servindo aos fins da catequese
jesuítica, juntaram-se as frases bíblicas em
português aos ritmos indígenas. Começava a nascer o CURURU – dança e
canto ainda encontrados nas festas religiosas típicas do interior paulista. A
partir do cururu (uma raiz comum) e acompanhando a transformação do indígena
que se aculturava – se acaipirava perifericamente à sociedade branca em
expansão -, foram surgindo novos ritmos e novas estruturas melódicas, que, em
princípio, aceitaram duas influências.
De
um lado mais nítida, delineia-se a presença portuguesa, bem marcada nas letras
saudosistas e de cunho sentimental-descritivo. Em geral, formam uma estória com
começo, meio e fim, a exemplo do que ocorria com o antigo fado (gênero, aliás, criado
no Brasil por portugueses saudosos da pátria).
Menos visível, mas também presente está um influxo árabe, seguramente
intermediado pelos espanhóis que por aqui andaram no século XVII. Dessa
proveniência são as músicas de andamento mais rápido, ritmo e letra mais
quentes e alegres a refletir a ancestralidade andaluza.
Contudo,
com o isolamento e o atraso da região paulista, nessa época, a influência
europeia não é a influência da cultura “oficial”, aristrocratizada, da Europa. Não
é como, por exemplo, no nordeste, onde o senhor do engenho estabelecia
efetivamente uma ponte entre as cortes europeias e os ritmos da senzala. No
caso paulista, essa influência aristocrática, até meados do século XVIII, não
está presente. O português e o espanhol são aventureiros, cujas raízes
culturais estão bem mais próximas do popular em suas regiões de origem, e o
indígena vai interagir diretamente com o popular da Andaluzia ou de
Trás-os-Montes. Provavelmente, esta é uma das razões pela qual a presença
europeia não é reconhecida, parecendo não haver pontos de contato entre a
música caipira e a cultura colonial (de filtro aristocrático) que penetra a
região a partir da segunda metade do século XVIII.
Do
abismo cultural,proveio o preconceito e o não reconhecimento da presença de uma
música caipira. Assim como do abismo social proveio o não reconhecimento do ser
humano do meio rural paulista. E, no entanto, ele estava lá, e fazia música.
Descalço, com a barba rala por fazer, misturava sua cantiga à do carro de boi.
Em noite estrelada, ouvindo miado da onça longe, tocava viola. De botina
apertada, com muito respeito, ia à procissão, à igreja, ao som da música. De camisa xadrez, soltava balão colorido e
cantava para Santo Antonio, São João e São Pedro.
Às
vezes melhorava um pouquinho: a cidade, casa de alvenaria, vizinhos. E vem o
italiano, “carcamano”, e o alemão,” bicho-d’água” – imigrantes, pobres. Vem a
sanfona, tradição, inovação, fusão, novos ritmos.
“A
música caipira se caracteriza principalmente pelo som da viola e pelo estilo do
canto, o qual talvez seja o fator mais importante dessa caracterização. Os
cantores – ou “cantadores” - sempre se
utilizam das terças, isto é; nas duplas, em geral, um canta em dó e o outro em
mi”. “Jamais usam o vibrato, aquela oscilação de voz levada ao exagero”. “ A
viola caipira, invariavelmente afinada em dó natural, compõe-se de dez cordas (
ou cinco dobradas), sem o tradicional bordão da música popular urbana”.(
Maestro Rogério Duprat).
Com
o desenvolvimento das vilas e pequenas cidades do interior, com a chegada da
eletricidade e do fonógrafo, criou-se um mercado consumidor, pronto para
receber, industrializada, a produção cultural caipira.
Quem
primeiro percebeu isso foi Cornélio Pires (1884-1958), entusiasta do gênero e
que organizou a Turma Caipira Cornélio Pires.
Paulista
de Tietê, vivendo no interior, imaginou que ali estaria um mercado potencial
para a colocação de discos da música cabocla. Entretanto, as gravadoras da
capital, naturalmente, não podiam acreditar que “aquilo” vendesse. Cornélio
teve que comprar antecipadamente a edição de cinco mil discos para a que a
Columbia (depois Continental) aceitasse a proposta. E, com os discos na
bagagem, partiu em excursão pelo interior para apresentar suas famosas
“conferências”, onde contava casos da roça, com o humor caboclo servindo de
ligação entre as apresentações de violeiros.
Vinte
e cinco mil discos vendidos depois, a RCA entrou na parada por sua própria
conta com a Turma Caipira Victor. E mais caravanas começaram a percorrer o
interior, com violeiros profissionais a promover suas gravações. E começaram a
ganhar popularidade regional as primeiras duplas, como por exemplo, Raul Torres
e Serrinha, Zico dias e Ferrinho, Mandi e Sorocabinha, Mariano e Caçula,
Mineiro e Mineirinho, além de Florêncio, Caboclinho e muitos outros.
Por
outro lado, já que um filão de ouro fora descoberto, tentou-se a experiência
contrária, isto é, a apresentação dos caipiras nas capitais. Procurando adaptar
o gênero caipira ao gosto urbano e percebendo a popularidade que a embolada
nordestina conseguira no Rio de Janeiro, Raul Torres introduziu a “embolada
paulista”. Aliás, foi também Torres quem trouxe para o repertório caipira a
guarânia e outros gêneros regionais.
E
o rádio (ainda que restrito às capitais) descobriu o Capitão Furtado e a dupla
Alvarenga e Ranchinho. Estes últimos, principalmente, excepcionais criadores,
na melhor tradição caipira, intercalando as composições (muitas de crítica social
ou política) com a narração de “causos” cheios de verve, alcançaram amplo
sucesso. Alvarenga e Ranchinho constituíram a dupla caipira mais famosa – e,
certamente a mais politizada – dentre todas as que surgiram no país desde a
década de 30.
Paulatinamente,
a industrialização da produção musical caipira passou a trazer seus efeitos. Em
primeiro lugar, em contato com o mercado fonográfico, começou a abrir-se a
novas influências, provenientes do meio rural de outros países. Veio a guarânia
paraguaia, o bolero, a influência mexicana pelas canções de Miguel Aceves
Mejias, e a do meio–oeste americano. O cantor Bob Nelson fez muito sucesso
apresentando-se como cow-boy e vertendo para o caipira a música rural dos
Estados Unidos.
Dessa
forma, embora permanecessem os ritmos típicos caipiras – a moda-de-viola, o
cateretê, o cururu, a cana-verde, a moda campeira e o arrasta-pé, o gênero
estendeu-se muito mais, até incluir degenerações urbanas – como o iê-iê-iê.
Outra
consequência da industrialização da música caipira foi a constatação de que seu
público era muito pouco sensível aos modismos passageiros. Os discos do gênero,
ao invés de apresentarem uma aguda curva de vendagem, atingindo o ápice para
depois descer para o completo esquecimento, manteve-se firmes por anos ou
décadas, o que demonstra sua radicação
cultural muito mais sólida. Muitas
produções da década de 30, continuam sendo editadas, com vendagem segura e
firme. E não se trata de casos esparsos:
Tião Carreiro e Pardinho gravaram quase trinta LPs, e todos eles ainda
sustentam vendagem e continuam em catálogo.
Essa
circunstância não atenuou o preconceito das emissoras de rádio, das gravadoras
e da TV contra a música caipira. Muito ao contrário, logo a manutenção do
preconceito se mostraria bastante lucrativa: os artistas caipiras, segregados
do restante da música popular, podiam receber menos, garantir a baixo preço
boas audiências em horários “infelizes”, apresentar-se de graça, em busca de
promoção. Empresários ligados a gravadoras continuaram o caminho de Cornélio
Pires, mas, levados apenas pelo faro comercial, não se arriscariam,preferindo
transferir toda a possibilidade de prejuízo para seus contratados, e assumindo
apenas os lucros. Promovem caravanas, mas não levam os discos; levam apenas os
artistas que desejam se promover, pagos em comida e alojamento, e só depois que
estes conseguem prestígio é que promovem a gravação. Dessa maneira, conseguem
shows baratíssimos, para depois editar discos com vendagem já assegurada.
E
os quase cinquenta anos de fonografia caipira tiveram, em resumo, esta
consequência, segundo o sociólogo Valdenir “Batatais” Caldas:
-
a rápida proliferação das duplas era uma nítida demonstração de que o sucesso
discófilo do gênero sertanejo estava assegurado. Qualquer investimento nessa
modalidade musical significava rentabilidade garantida. E nisso os empresários
nunca titubearam. O resultado foi o progressivo crescimento da música
“sertaneja” enquanto “novo estilo musical” e a consequente perda de autonomia
de seus compositores e cantores, que passavam a produzir não aquilo que sabiam
e queriam, mas o que lhes era determinado por elementos especializados em
mercadologia. Nasce dessa forma a canção sertaneja de caráter comercial,
caráter esse que domina sua existência até os dias de hoje.
Aculturados,
os caipiras acabaram aceitando o preconceito que se levanta contra eles. Muitos
chegaram ao sucesso mantendo a raiz, mas estão passando.
O
filho de Nhô Miro talvez tenha morrido de maleita há vinte ou trinta anos
atrás. Talvez tenha vindo para São Paulo, trabalhar na indústria, morar no
subúrbio, trocar a viola pelo rádio. Talvez ainda esteja no campo, lavrador,
boia fria.
VIM
PRA CIDADE –
Júlio
Nagi e Sydnei Moraes
Vim pra cidade,
Esquecer a saudade,
Mas a saudade
Veio junto pra cidade
(...) estou sozinho (...)
A VOLTA DO BOIADEIRO
Teddy Vieira
Quem não sentiu
O ar puro das campinas
E nunca ouviu
Um berrante em surdina,
Não viu a lua
Deitado sobre um baixeiro –
Não sabe, amigos,
Quanto é bom ser boiadeiro!
O
SERTÃO
Tonico
e Alberto Loureiro
Eu vivo no meu ranchinho,
Bem perto da natureza.
O cantar dos passarinhos
Disfarça minha tristeza (...)
Eu sou caboclo pachola
Dum Brasil tradicional –
A solidão me consola, (...)
(...) o sertão é minha escola
Faço verso natural.
CABELO
PRETO
Tião
Carreiro e Nízio
Vivo no meio do povo,
Carregando a minha dor
O povo pede justiça
Eu vivo pedindo amor!
CENTELHA
DIVINA
Goiá
e Amir
Por onde cantamos,
Vai gente à cavalo,
De jeep, ou carro emprestado,
Senhoras, moças,
crianças
E velhos. E assim
Trabalhamos com o circo
Lotado.
E nós dependemos
Do apoio sincero
Da gente que sempre nos vem aplaudir (...)
A música nasce da simples ideia
E a grande plateia vai decidir
O
PRESIDENTE E O LAVRADOR
Léo
Canhoto
Vossa Excelência
Precisa ir no interior,
Pegar na mão do lavrador
E ver seu rosto queimado.
Aqueles calos que ele tem,
Eu lhe asseguro,
São fruto de um trabalho puro,
Muito honesto e muito honrado (...)
Pertenço a eles, eu falo de coração.
BOIA
FRIA
Moacyr
dos Santos e Jacozinho
Meu patrão gritou comigo,
Me chamou de boia fria,
Não bati na cara dele
Pra não perder o dia.
Todo dia eu deito cedo,
Pra sair de madrugada,
Tomo um cafezinho quente,
A boia está preparada,
O caminhão está esperando
Na beiradinha da estrada.
ARTISTA
CONSAGRADO
Braz
Aparecido e Luiz de Castro
Nasci lá na roça, sou um sertanejo,
Não Nego que sou
Um caboclo de fato (...)
Neste recanto vivi muitos anos,
Me acostumei
Com a simplicidade,
Gosto do sertão, mas quis o destino
Que eu viesse um dia morar na cidade.
FLOR
DO RINCÃO
Ademar
da Silva
Eu conheci uma morena,
(...) por ela senti paixão –
Hoje só ela é que mora
Dentro do meu coração!
Foi num domingo de tarde,
Que a donzela encontrei,
(...) e, quando um mês se passou,
Com a morena eu casei –
Foi esse o passo mais certo
Que na minha vida eu dei!
O
TEMPO
Arranjo
de Tonico
Sou o tempo e o tempo passa
Sem princípio, sem fim, sem medida
(...) formo os anos que nascem e que morrem.
Vou correndo sereno e constante
E assim de cem em cem anos
Formo um século e
Passo pra diante.
Trabalhai porque a vida é pequena
E não há tempo para a demora
Não gastai os minutos sem pena
Não façais pouco caso das horas
O relógio do mundo é o tempo
Marca horas e horas cumprida
Os minutos de tempo no tempo
Os segundos no tempo da vida.
Fonte:
Nova História da Música Popular Brasileira
Abril
Cultural - 1978