quinta-feira, 9 de agosto de 2012

MÚSICA CAIPIRA




O garoto da cidade sentiu um pouco de medo. Na fazenda, fora da casa, do terreiro, do pomar, tudo parecia desconhecido, selvagem.
A charrete parou; dos dois lados da estradinha não muito mais do que mato. Só um pequeno roçado de feijão marcava a presença humana.
A charrete parou e o avô disse – vamos descer um pouco – tenho um assunto a tratar com o Valdomiro. O garoto quis pedir ao avô para não ir, tinha medo. Nhô Miro, o menino conhecia do terreiro, do curral, do gemido agudo do carro de bois.
Um cachorro magro como a morte, o pelo junto à cauda, derrubado pela sarna, avisou que chegavam. A casa era humilde, “como a casa do joão-de-barro” pensou o garoto. A  parede de barro, o chão de terra, as panelas no canto, o choro da criança de barriga estufada, a miséria. Só a violinha pendurada na parede.
O filho mais velho de Nhô Miro olhou o garoto da cidade. Olhou de frente, pois eram do mesmo tamanho. Não prestou atenção nos sapatos (sapatos?), nem na cor da pele, branca, tão diferente da sua própria, onde o amarelo azeitonado mostrava o passado índio. Viu apenas que o menino urbano olhava para a parede, para a viola. Então, tirou-a da parede e ofereceu:
- Toca.
O menino estremeceu diante da oferta, buscou o avô que havia se afastado a combinar com Nhô Miro alguns trabalhos que o caipira deveria executar para o patrão, de graça, em troca da permissão de manter sua choupana e um roçado na propriedade alheia.
- Toca você – foi o que conseguiu responder.
O outro pensou: tocaria sim, mas diante daquele senhorzinho, deveria ser algo bem respeitoso. Passou os dedos pelas cordas tensas da viola, segurou um pouco a imaginação e soltou a voz:
- no artá da virge,/ se atrapaiô.
O garoto da cidade não entendia direito, mas permaneceu em silêncio. Sentia-se fascinado pelas canções tristes e alegres, que foram desfilando, e só se lembra de ter ouvido Nhô Miro dizer:
- descurpa o garoto... ele gosta de tirá umas musguinhas na viola.
O avô chama o garoto para ir embora.
- Vô, eles tocam música!
0 avô pisa no estribo, puxa-se para cima da charrete, desata as rédeas, faz um movimento de pulso batendo de leve com o couro do chicote no lombo do animal e responde:
- não é música não. É só música caipira. Não é gente; são só uns caipiras.
A prepotência e o preconceito do branco senhor das terras e, mais tarde, do homem urbano, sempre bloqueou a difusão das formas de cultura popular do Sudeste do país. Assim como o caipira foi, por séculos, considerado um sub-homem, também sua música foi considerada uma submúsica, e até hoje a discriminação persiste. E, no entanto, talvez seja esta a produção cultural mais sólida, mais firmemente enraizada, ao menos no interior de São Paulo, triângulo mineiro, sul de Mato Grosso e norte do Paraná.
Ela começa a surgir com a descoberta do Brasil e a chegada dos jesuítas a São Paulo. Na interação do religioso com o índio, e servindo aos fins da catequese jesuítica, juntaram-se as frases bíblicas em  português aos ritmos indígenas. Começava a nascer o CURURU – dança e canto ainda encontrados nas festas religiosas típicas do interior paulista. A partir do cururu (uma raiz comum) e acompanhando a transformação do indígena que se aculturava – se acaipirava perifericamente à sociedade branca em expansão -, foram surgindo novos ritmos e novas estruturas melódicas, que, em princípio, aceitaram duas influências.
De um lado mais nítida, delineia-se a presença portuguesa, bem marcada nas letras saudosistas e de cunho sentimental-descritivo. Em geral, formam uma estória com começo, meio e fim, a exemplo do que ocorria com o antigo fado (gênero, aliás,   criado no Brasil por portugueses saudosos da pátria).  Menos visível, mas também presente está um influxo árabe, seguramente intermediado pelos espanhóis que por aqui andaram no século XVII. Dessa proveniência são as músicas de andamento mais rápido, ritmo e letra mais quentes e alegres a refletir a ancestralidade andaluza.
Contudo, com o isolamento e o atraso da região paulista, nessa época, a influência europeia não é a influência da cultura “oficial”, aristrocratizada, da Europa. Não é como, por exemplo, no nordeste, onde o senhor do engenho estabelecia efetivamente uma ponte entre as cortes europeias e os ritmos da senzala. No caso paulista, essa influência aristocrática, até meados do século XVIII, não está presente. O português e o espanhol são aventureiros, cujas raízes culturais estão bem mais próximas do popular em suas regiões de origem, e o indígena vai interagir diretamente com o popular da Andaluzia ou de Trás-os-Montes. Provavelmente, esta é uma das razões pela qual a presença europeia não é reconhecida, parecendo não haver pontos de contato entre a música caipira e a cultura colonial (de filtro aristocrático) que penetra a região a partir da segunda metade do século XVIII.
Do abismo cultural,proveio o preconceito e o não reconhecimento da presença de uma música caipira. Assim como do abismo social proveio o não reconhecimento do ser humano do meio rural paulista. E, no entanto, ele estava lá, e fazia música. Descalço, com a barba rala por fazer, misturava sua cantiga à do carro de boi. Em noite estrelada, ouvindo miado da onça longe, tocava viola. De botina apertada, com muito respeito, ia à procissão, à igreja, ao som da música.  De camisa xadrez, soltava balão colorido e cantava para Santo Antonio, São João e São Pedro.
Às vezes melhorava um pouquinho: a cidade, casa de alvenaria, vizinhos. E vem o italiano, “carcamano”, e o alemão,” bicho-d’água” – imigrantes, pobres. Vem a sanfona, tradição, inovação, fusão, novos ritmos.
“A música caipira se caracteriza principalmente pelo som da viola e pelo estilo do canto, o qual talvez seja o fator mais importante dessa caracterização. Os cantores – ou “cantadores”  - sempre se utilizam das terças, isto é; nas duplas, em geral, um canta em dó e o outro em mi”. “Jamais usam o vibrato, aquela oscilação de voz levada ao exagero”. “ A viola caipira, invariavelmente afinada em dó natural, compõe-se de dez cordas ( ou cinco dobradas), sem o tradicional bordão da música popular urbana”.( Maestro Rogério Duprat).
Com o desenvolvimento das vilas e pequenas cidades do interior, com a chegada da eletricidade e do fonógrafo, criou-se um mercado consumidor, pronto para receber, industrializada, a produção cultural caipira.
Quem primeiro percebeu isso foi Cornélio Pires (1884-1958), entusiasta do gênero e que organizou a Turma Caipira Cornélio Pires.
Paulista de Tietê, vivendo no interior, imaginou que ali estaria um mercado potencial para a colocação de discos da música cabocla. Entretanto, as gravadoras da capital, naturalmente, não podiam acreditar que “aquilo” vendesse. Cornélio teve que comprar antecipadamente a edição de cinco mil discos para a que a Columbia (depois Continental) aceitasse a proposta. E, com os discos na bagagem, partiu em excursão pelo interior para apresentar suas famosas “conferências”, onde contava casos da roça, com o humor caboclo servindo de ligação entre as apresentações de violeiros.
Vinte e cinco mil discos vendidos depois, a RCA entrou na parada por sua própria conta com a Turma Caipira Victor. E mais caravanas começaram a percorrer o interior, com violeiros profissionais a promover suas gravações. E começaram a ganhar popularidade regional as primeiras duplas, como por exemplo, Raul Torres e Serrinha, Zico dias e Ferrinho, Mandi e Sorocabinha, Mariano e Caçula, Mineiro e Mineirinho, além de Florêncio, Caboclinho e muitos outros.
Por outro lado, já que um filão de ouro fora descoberto, tentou-se a experiência contrária, isto é, a apresentação dos caipiras nas capitais. Procurando adaptar o gênero caipira ao gosto urbano e percebendo a popularidade que a embolada nordestina conseguira no Rio de Janeiro, Raul Torres introduziu a “embolada paulista”. Aliás, foi também Torres quem trouxe para o repertório caipira a guarânia e outros gêneros regionais.
E o rádio (ainda que restrito às capitais) descobriu o Capitão Furtado e a dupla Alvarenga e Ranchinho. Estes últimos, principalmente, excepcionais criadores, na melhor tradição caipira, intercalando as composições (muitas de crítica social ou política) com a narração de “causos” cheios de verve, alcançaram amplo sucesso. Alvarenga e Ranchinho constituíram a dupla caipira mais famosa – e, certamente a mais politizada – dentre todas as que surgiram no país desde a década de 30.
Paulatinamente, a industrialização da produção musical caipira passou a trazer seus efeitos. Em primeiro lugar, em contato com o mercado fonográfico, começou a abrir-se a novas influências, provenientes do meio rural de outros países. Veio a guarânia paraguaia, o bolero, a influência mexicana pelas canções de Miguel Aceves Mejias, e a do meio–oeste americano. O cantor Bob Nelson fez muito sucesso apresentando-se como cow-boy e vertendo para o caipira a música rural dos Estados Unidos.
Dessa forma, embora permanecessem os ritmos típicos caipiras – a moda-de-viola, o cateretê, o cururu, a cana-verde, a moda campeira e o arrasta-pé, o gênero estendeu-se muito mais, até incluir degenerações urbanas – como o iê-iê-iê.
Outra consequência da industrialização da música caipira foi a constatação de que seu público era muito pouco sensível aos modismos passageiros. Os discos do gênero, ao invés de apresentarem uma aguda curva de vendagem, atingindo o ápice para depois descer para o completo esquecimento, manteve-se firmes por anos ou décadas, o que  demonstra sua radicação cultural muito mais sólida.  Muitas produções da década de 30, continuam sendo editadas, com vendagem segura e firme.  E não se trata de casos esparsos: Tião Carreiro e Pardinho gravaram quase trinta LPs, e todos eles ainda sustentam vendagem e continuam em catálogo.
Essa circunstância não atenuou o preconceito das emissoras de rádio, das gravadoras e da TV contra a música caipira. Muito ao contrário, logo a manutenção do preconceito se mostraria bastante lucrativa: os artistas caipiras, segregados do restante da música popular, podiam receber menos, garantir a baixo preço boas audiências em horários “infelizes”, apresentar-se de graça, em busca de promoção. Empresários ligados a gravadoras continuaram o caminho de Cornélio Pires, mas, levados apenas pelo faro comercial, não se arriscariam,preferindo transferir toda a possibilidade de prejuízo para seus contratados, e assumindo apenas os lucros. Promovem caravanas, mas não levam os discos; levam apenas os artistas que desejam se promover, pagos em comida e alojamento, e só depois que estes conseguem prestígio é que promovem a gravação. Dessa maneira, conseguem shows baratíssimos, para depois editar discos com vendagem já assegurada.
E os quase cinquenta anos de fonografia caipira tiveram, em resumo, esta consequência, segundo o sociólogo Valdenir “Batatais” Caldas:
- a rápida proliferação das duplas era uma nítida demonstração de que o sucesso discófilo do gênero sertanejo estava assegurado. Qualquer investimento nessa modalidade musical significava rentabilidade garantida. E nisso os empresários nunca titubearam. O resultado foi o progressivo crescimento da música “sertaneja” enquanto “novo estilo musical” e a consequente perda de autonomia de seus compositores e cantores, que passavam a produzir não aquilo que sabiam e queriam, mas o que lhes era determinado por elementos especializados em mercadologia. Nasce dessa forma a canção sertaneja de caráter comercial, caráter esse que domina sua existência até os dias de hoje.
Aculturados, os caipiras acabaram aceitando o preconceito que se levanta contra eles. Muitos chegaram ao sucesso mantendo a raiz, mas estão passando.
O filho de Nhô Miro talvez tenha morrido de maleita há vinte ou trinta anos atrás. Talvez tenha vindo para São Paulo, trabalhar na indústria, morar no subúrbio, trocar a viola pelo rádio. Talvez ainda esteja no campo, lavrador, boia fria.


VIM PRA CIDADE –
Júlio Nagi e Sydnei Moraes

Vim pra cidade,
Esquecer a saudade,
Mas a saudade
Veio junto pra cidade
(...) estou sozinho (...)


A VOLTA DO BOIADEIRO
Teddy Vieira

Quem não sentiu
O ar puro das campinas
E nunca ouviu
Um berrante em surdina,
Não viu a lua
Deitado sobre um baixeiro –
Não sabe, amigos,
Quanto é bom ser boiadeiro!

O SERTÃO
Tonico e Alberto Loureiro

Eu vivo no meu ranchinho,
Bem perto da natureza.
O cantar dos passarinhos
Disfarça minha tristeza (...)
Eu sou caboclo pachola
Dum Brasil tradicional –
A solidão me consola, (...)
(...) o sertão é minha escola
Faço verso natural.

CABELO PRETO
Tião Carreiro e Nízio

Vivo no meio do povo,
Carregando a minha dor
O povo pede justiça
Eu vivo pedindo amor!

CENTELHA DIVINA
Goiá e Amir

Por onde cantamos,
Vai gente à cavalo,
De jeep, ou carro emprestado,
Senhoras,  moças, crianças
E velhos. E assim
Trabalhamos com o circo
Lotado.
E nós dependemos
Do apoio sincero
Da gente que sempre nos vem aplaudir (...)
A música nasce da simples ideia
E a grande plateia vai decidir


O PRESIDENTE E O LAVRADOR
Léo Canhoto

Vossa Excelência
Precisa ir no interior,
Pegar na mão do lavrador
E ver seu rosto queimado.
Aqueles calos que ele tem,
Eu lhe asseguro,
São fruto de um trabalho puro,
Muito honesto e muito honrado (...)
Pertenço a eles, eu falo de coração.

BOIA FRIA
Moacyr dos Santos e Jacozinho

Meu patrão gritou comigo,
Me chamou de boia fria,
Não bati na cara dele
Pra não perder o dia.
Todo dia eu deito cedo,
Pra sair de madrugada,
Tomo um cafezinho quente,
A boia está preparada,
O caminhão está esperando
Na beiradinha da estrada.


ARTISTA CONSAGRADO
Braz Aparecido e Luiz de Castro

Nasci lá na roça, sou um sertanejo,
Não Nego que sou
Um caboclo de fato (...)
Neste recanto vivi muitos anos,
Me acostumei
Com a simplicidade,
Gosto do sertão, mas quis o destino
Que eu viesse um dia morar na cidade.

FLOR DO RINCÃO
Ademar da Silva

Eu conheci uma morena,
(...) por ela senti paixão –
Hoje só ela é que mora
Dentro do meu coração!
Foi num domingo de tarde,
Que a donzela encontrei,
(...) e, quando um mês se passou,
Com a morena eu casei –
Foi esse o passo mais certo
Que na minha vida eu dei!

O TEMPO
Arranjo de Tonico

Sou o tempo e o tempo passa
Sem princípio, sem fim, sem medida
(...) formo os anos que nascem e que morrem.

Vou correndo sereno e constante
E assim de cem em cem anos
Formo um século e
Passo pra diante.

Trabalhai porque a vida é pequena
E não há tempo para a demora
Não gastai os minutos sem pena
Não façais pouco caso das horas

O relógio do mundo é o tempo
Marca horas e horas cumprida
Os minutos de tempo no tempo
Os segundos no tempo da vida.


Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural - 1978











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