O POETA E O MAR
JORGE AMADO
Não sei, não recordo
quando e onde conheci Dorival Caymmi, quando nos apertamos as mãos pela primeira vez e pela primeira vez, rimos juntos
nossa alegria. Foi, com certeza, na
Bahia, antes da partida do clássico ita,
levando-nos – ao aprendiz de compositor e ao aprendiz de escritor – para tentar
exercer nossos ofícios no Rio. Naquele tempo, quem quisesse um lugar ao sol
tinha de começar pelo sacrifício de sair de sua terra, a terra da Bahia, onde
éramos livres adolescentes nos mercados e nas praias. Só no Rio de Janeiro
havia ambiente e oportunidade.
Na praia de Itapoã,
nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga cresceu o menino
Dorival, filho de Seu Durval, modesto funcionário estadual, bom no violão e no
trago. Cresceu assim o moço Caymmi, na
pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos terreiros de
santo, vivendo cada instante de sua cidade e de sua gente, alimentando-se de
sua realidade e de seu mistério, preparando-se para ser seu poeta e seu cantor.
Livre coração e o desejo de criar.
A música popular
brasileira não era ainda assunto de gazetas, revistas e festivais. O moço baiano, no entanto, não desejava nem o
título de doutor nem o emprego público prometido. Queria tão somente compor e
cantar. Teve de partir para ganhar a vida difícil.
Naqueles idos de 1936
o mundo era nosso nas ruas do Rio de Janeiro. Lá se vão mais de 30 anos. Uma
canção que fizemos juntos naquela época –
É DOCE MORRER NO MAR, tirada de uma cena de Mar Morto, continua popular até hoje e pode-se mesmo dizer: cada vez mais. Aliás, eis uma
das características fundamentais da música de Caymmi: sua permanência, sua
constante atualidade.
Sendo o seu tema a
Bahia, sua vida, seu povo, seu drama, sua luta, seu mistério, sua poesia, seus
amores, a morena de Itapoã e as rosas de abril, Iemanjá e o vento do oceano, a
jangada e o saveiro, o mundo da Bahia. Não há uma frase sua, uma única, de
música ou poesia que seja circunstancial, que derive de moda, de uma influência
momentânea.
Não compôs demais, ao
sabor do sucesso e da novidade. Cada música sua é inspiração verdadeira e
experiência vivida, é seu sangue e sua
carne, é sua verdade. Uma será mais bela, outra mais profunda, aquela mais
fácil, mas nenhuma resulta da busca do sucesso ou do aproveitamento de qualquer
circunstância.
Caymmi leva meses e
meses trabalhando cada uma de suas músicas e letras, ao sabor do tempo e da
preguiça baiana e criadora. Segundo dizia Sergio Porto, a música de Caymmi
muito deve a essa preguiça, ou melhor, a esse tempo de lazer de medida tão
larga, esse tempo baiano. De tudo isso posso dar testemunho, pois nesses trinta
e tantos anos eu o vi compor sem descanso,
mas sem pressa. Vi também nascer e crescer a maioria de suas composições mais
famosas. Em minha casa – em várias das casas onde vivi – ele trabalhou e criou.
Jamais espicaçado por compromisso ou intenção imediatista.
Para Caymmi, a moda não existe. Eu o posso dizer, posso
testemunhar como ninguém. Juntos andamos um bom bocado de caminho, juntos
criamos alguma coisa, juntos começamos a envelhecer. Juntos fizemos teatro,
cinema, tratamos o livro e a partitura, tocamos a vida e o amor. Amizade de
toda a vida “ meu irmão, meu irmãozinho.”
(declaração da década de 70).
fonte: Nova História da Música Popular Brasileira - Abril cultural ( 1976)
foto: Google
Nenhum comentário:
Postar um comentário