segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO 2014 - PARTE VI


O POETA E O MAR
                                                          JORGE AMADO







Não sei, não recordo quando e onde conheci Dorival Caymmi, quando nos apertamos as mãos  pela primeira vez e pela primeira vez, rimos juntos nossa alegria.  Foi, com certeza, na Bahia,  antes da partida do clássico ita, levando-nos – ao aprendiz de compositor e ao aprendiz de escritor – para tentar exercer nossos ofícios no Rio. Naquele tempo, quem quisesse um lugar ao sol tinha de começar pelo sacrifício de sair de sua terra, a terra da Bahia, onde éramos livres adolescentes nos mercados e nas praias. Só no Rio de Janeiro havia ambiente e oportunidade.
Na praia de Itapoã, nas malícias do Rio Vermelho, nas ladeiras da cidade antiga cresceu o menino Dorival, filho de Seu Durval, modesto funcionário estadual, bom no violão e no trago.  Cresceu assim o moço Caymmi, na pesca, na serenata, na festa de bairro, no samba de roda, nos terreiros de santo, vivendo cada instante de sua cidade e de sua gente, alimentando-se de sua realidade e de seu mistério, preparando-se para ser seu poeta e seu cantor. Livre coração e o desejo de criar.
A música popular brasileira não era ainda assunto de gazetas, revistas e festivais.  O moço baiano, no entanto, não desejava nem o título de doutor nem o emprego público prometido. Queria tão somente compor e cantar. Teve de partir para ganhar a vida difícil.
Naqueles idos de 1936 o mundo era nosso nas ruas do Rio de Janeiro. Lá se vão mais de 30 anos. Uma canção que fizemos juntos naquela época – É DOCE MORRER NO MAR, tirada de uma cena de Mar Morto, continua popular até hoje e pode-se  mesmo dizer: cada vez mais. Aliás, eis uma das características fundamentais da música de Caymmi: sua permanência, sua constante atualidade.
Sendo o seu tema a Bahia, sua vida, seu povo, seu drama, sua luta, seu mistério, sua poesia, seus amores, a morena de Itapoã e as rosas de abril, Iemanjá e o vento do oceano, a jangada e o saveiro, o mundo da Bahia. Não há uma frase sua, uma única, de música ou poesia que seja circunstancial, que derive de moda, de uma influência momentânea.
Não compôs demais, ao sabor do sucesso e da novidade. Cada música sua é inspiração verdadeira e experiência vivida,  é seu sangue e sua carne, é sua verdade. Uma será mais bela, outra mais profunda, aquela mais fácil, mas nenhuma resulta da busca do sucesso ou do aproveitamento de qualquer circunstância.
Caymmi leva meses e meses trabalhando cada uma de suas músicas e letras, ao sabor do tempo e da preguiça baiana e criadora. Segundo dizia Sergio Porto, a música de Caymmi muito deve a essa preguiça, ou melhor, a esse tempo de lazer de medida tão larga, esse tempo baiano. De tudo isso posso dar testemunho, pois nesses trinta e tantos anos  eu o vi compor sem descanso, mas sem pressa. Vi também nascer e crescer a maioria de suas composições mais famosas. Em minha casa – em várias das casas onde vivi – ele trabalhou e criou. Jamais espicaçado por compromisso ou intenção imediatista.
Para Caymmi, a moda não existe. Eu o posso dizer, posso testemunhar como ninguém. Juntos andamos um bom bocado de caminho, juntos criamos alguma coisa, juntos começamos a envelhecer. Juntos fizemos teatro, cinema, tratamos o livro e a partitura, tocamos a vida e o amor. Amizade de toda a vida “ meu irmão, meu irmãozinho.”

(declaração da década de 70).

fonte: Nova História da Música Popular Brasileira - Abril cultural ( 1976)
foto: Google

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