segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - 2014 - PARTE II



            PEGUEI UM ITA NO NORTE

Do convés, o rapaz contempla as velhas casas da cidade alta, as torres das muitas igrejas, o imponente elevador que une cidade alta e baixa, o mercado, os mármores da Igreja da Conceição, as velas brancas dos saveiros, o forte redondo de São Marcelo. Aos poucos tudo se vai confundindo numa única visão: a última imagem de Salvador, o adeus à Bahia.
Por salas, tombadilhos e corredores espalham-se os viajantes: políticos retornando de visitas às bases eleitorais; comerciantes e industriais em busca de melhores negócios; fazendeiros levando o lucro do cacau para gastar no Rio; doentes em busca de melhores hospitais; moças e senhoras que vão visitar parentes; recém-casados em lua de mel; caixeiros-viajantes e seus repertório de anedotas; jogadores de pôquer, padres, solteironas, funcionários transferidos, literatos, estudantes, prostitutas. É o mundo do ita, onde se fazem amigos, se iniciam namoros e noivados, negócios são resolvidos. Tudo sem pressa, o tempo a bordo é ritmado pelo lento avanço da quilha contra as ondas.
O ita joga muito e várias pessoas sentem-se mal, mas o moço Dorival permanece sereno. Está acostumado a sair em saveiros e jangadas, conhece as histórias do mar, de Iemanjá e dos pescadores que diariamente arriscam a vida sobre as ondas. Para ele o pequeno e balouçante ita é uma tranquilidade. Na verdade, é uma viagem arriscada. Ele deixou a segurança da família para tentar a sorte no centro do país. Sua bagagem:  o curso primário, cursos de inglês, matemática, datilografia e escrituração mercantil; um emprego no escritório e depois na revisão do jornal “ O imparcial”; o segundo lugar num concurso para escrivão da Coletoria; uma péssima experiência como vendedor pracista; um violão.
Com quase 24 anos (nasceu em 30 de abril de 1914), na rua do Bângala (hoje Luis Gama). Filho de funcionário público (Durval Henrique Caymmi), Dorival achou que para vencer na vida precisava abandonar as praias, o sol e o sossego da província pela agitação de São Paulo ou Rio de Janeiro. Ao amigo ocasional de viagem conta indignado como esperou dois anos pela nomeação para a Coletoria, até caducar-se o concurso. E tirara o segundo lugar...
- e o emprego de vendedor?
Dorival solta uma gostosa gargalhada. Não tinha a menor vontade e vocação para o comércio. Acontece que Zezinho, um amigo de infância (José Rodrigues de Oliveira) , não dava conta do serviço e entregou-lhe algumas coisas para vender.  Uns barbantes, uns fios, mas não conseguiu vender uma cordinha sequer. Depois vieram umas garrafas – pasta com garrafas pesa como o diabo! -, mas ninguém queria saber das bebidas. Como desconfiassem que eram falsificadas, Zezinho sugeriu que abrissem uma para experimentar. Abriram uma, abriram outra, apareceram mais “provadores”, lá se foi a amostra, e o emprego....
- E agora, o que vai fazer no Rio?
Dorival não sabe bem. Tem facilidade para o desenho e experiência no jornal, adquirida em seu primeiro emprego em “O Imparcial”. Quem sabe conseguirá um lugar na imprensa? Um contraparente, o José Pitanga, talvez pudesse ajudá-lo a encontrar trabalho.
De noite, um grupo de passageiros reúne-se à volta do moço baiano. Ele toca violão e canta com sua voz grave e bonita. A música é uma paixão antiga. Criança ouvia o pai tocar violão e bandolim. Com Zezinho, ouvia os últimos discos de Lamartine Babo, Noel Rosa, João de Barro. Já dedilhava o violão, e, acompanhado por Zezinho no cavaquinho, divertiam-se fazendo paródias das músicas mais conhecidas. De brincadeira em brincadeira fizera a primeira música aos dezenove anos. Era uma toada – NO SERTÃO -, que a moda na época era música sertaneja.  Mais tarde, ao vencer um concurso de músicas carnavalescas com a composição A BAHIA TAMBÉM DÁ, ganhou valioso prêmio: um abajur de cetim...
O ita avança pelo mar e Dorival vai cantando os sucessos dos discos, cantigas tradicionais da Bahia, a música de suas festas, e, sobretudo, as canções dos pescadores.
4 de abril de 1938: fim da viagem  - Dorival Caymmi desembarca no Rio de Janeiro.

PEGUEI UM ITA NO NORTE
PRA VIM PRO RIO MORAR
ADEUS MEU PAI, MINHA MÃE,
ADEUS BELÉM DO PARÁ.

AI, AI, ADEUS BELÉM DO PARÁ
AI, AI, ADEUS BELÉM DO PARÁ

VENDI MEUS TROÇOS QUE EU TINHA
O RESTO DEI PRA “AGUARDÁ”
TALVEZ EU VOLTE PRO ANO
TALVEZ EU FIQUE POR LÁ.

“todo Ita traz uma leva de nordestinos que vêm tentar a vida no sul. Essa toada está cheia de saudade deles, cheia de certa nostalgia que só aqueles que um dia tomaram um ita e nele navegaram para o Rio podem sentir e compreender. Ela infunde certa tristeza, a lembrança da terra que se abandonou”.



NA TERRA DO FUTEBOL E DO RÁDIO

- Você deve estudar direito em Niterói que é mais fácil!
O moço baiano levou a sério o conselho dos colegas de pensão e começou a se preparar para o vestibular. Mas precisava trabalhar. José Pitanga recomendou-o ao desenhista Edgar de Almeida, da revista “O Cruzeiro”. Foi apresentado ao diretor  Accyoli Neto, ao redator  da seção de cinema Pedro Lima, e disse para Millôr Fernandes, um menino de catorze anos que colava fotografias:  “ olha aqui, não vai demorar muito e você vai colar essas páginas cheias de fotografias minhas”. Certamente não esperava a glória no modesto trabalho que conseguiu na revista: fazer títulos e outros pequenos servicinhos. Pensava em outra frase dos amigos:   - aqui é a terra da música; se você fizer sucesso, fica rico”.
Estava entusiasmado com a primeira experiência no rádio carioca. Levado por Assis Valente e Lamartine Babo, cantara no Clube dos Fantasmas, programa da Rádio Nacional, Noite de Temporal:  “Pescador não vai pra pesca, que é noite de temporá “.

É NOITE DE TEMPORAL

É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio

Pescador não vai pra pesca
Pescador não vai
 

Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá
Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá

É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio

Pescador se vai pra pesca na noite de temporal
A mãe se senta na areia esperando ele vortar
A mãe se senta na areia esperando ele vortar

É noite, é noite, é noite...




 
Nessa canção Caymmi já mostrava a influência da música de rua da Bahia:  “minha ideia era afirmar bem, em meu acompanhamento, o samba de umbigada da Bahia e a capoeira. Em Noite de Temporal, minha primeira canção praieira, procurei tocar acompanhado pelo toque de berimbau de capoeira. Sempre pus esses elementos nativos no meu acompanhamento, por isso meu violão era diferente.  Usei temas e elementos do folclore”.  Quando usava um de seus temas, procurava justificá-lo para não haver deturpação.
E Edgar de Almeida confirmou: “olha, isto é terra de futebol e rádio”. Não ficou só no conselho: apresentou Dorival para o diretor da Rádio Tupi, Teófilo de Barros Filho, que o contratou por 240 mil-réis mensais. A 24 de Junho de 1938 , num programa junino no quintal da rádio, Caymmi estreou cantando  O QUE É QUE A BAIANA TEM? Samba brejeiro de muito balanço. Dois meses depois passava para a Rádio Transmissora, ganhando 600 mil-réis mensais e mais tarde levado por Almirante, ingressava na Rádio Nacional, com 700 mil-réis por mês e muita publicidade em “A noite“ e na revista “ A Carioca”, os melhores órgãos de publicidade radiofônica de então. A Nacional era uma emissora nova – apenas dois anos de existência -, cujas instalações tinham o melhor equipamento da época.  Ao mesmo tempo, Caymmi começava a frequentar a roda dos músicos eruditos e dos artistas plásticos.
Carmen Miranda foi a primeira a gravar as músicas de Dorival Caymmi. Em 1938, Wallace Dorney preparava um filme – BANANA DA TERRA – com argumento de João de Barro e participação de grandes nomes da música: Almirante, Bando da Lua, irmãs Batista, Orlando Silva e Carmen Miranda. Carmen deveria cantar duas músicas de Ary Barroso (Na Baixa do Sapateiro e Boneca de Pixe), mas produtor e autor não entraram em acordo financeiro. Assim, Wallace, para aproveitar os cenários já feitos, saiu à procura de um samba baiano típico. Caymmi apresentou O que é que a baiana tem? que foi aprovado. O próprio Caymmi ensinou a música a Carmen, orientando-a também em sua movimentação. Em seguida, a composição foi gravada pela cantora, tornando-se sucesso e consolidando uma imagem típica de Carmen Miranda.

O que é que a baiana tem - Direitos autorais de Mangioni & Filhos

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira – 1976 – Abril Cultural
Vídeo: NOITE DE TEMPORAL - youtube

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