PEGUEI
UM ITA NO NORTE
Do convés, o rapaz
contempla as velhas casas da cidade alta, as torres das muitas igrejas, o
imponente elevador que une cidade alta e baixa, o mercado, os mármores da Igreja
da Conceição, as velas brancas dos saveiros, o forte redondo de São Marcelo.
Aos poucos tudo se vai confundindo numa única visão: a última imagem de
Salvador, o adeus à Bahia.
Por salas, tombadilhos
e corredores espalham-se os viajantes: políticos retornando de visitas às bases
eleitorais; comerciantes e industriais em busca de melhores negócios;
fazendeiros levando o lucro do cacau para gastar no Rio; doentes em busca de
melhores hospitais; moças e senhoras que vão visitar parentes; recém-casados em
lua de mel; caixeiros-viajantes e seus repertório de anedotas; jogadores de
pôquer, padres, solteironas, funcionários transferidos, literatos, estudantes,
prostitutas. É o mundo do ita, onde se fazem amigos, se iniciam namoros e
noivados, negócios são resolvidos. Tudo sem pressa, o tempo a bordo é ritmado
pelo lento avanço da quilha contra as ondas.
O ita joga muito e
várias pessoas sentem-se mal, mas o moço Dorival permanece sereno. Está
acostumado a sair em saveiros e jangadas, conhece as histórias do mar, de
Iemanjá e dos pescadores que diariamente arriscam a vida sobre as ondas. Para
ele o pequeno e balouçante ita é uma tranquilidade. Na verdade, é uma viagem
arriscada. Ele deixou a segurança da família para tentar a sorte no centro do
país. Sua bagagem: o curso primário,
cursos de inglês, matemática, datilografia e escrituração mercantil; um emprego
no escritório e depois na revisão do jornal “ O imparcial”; o segundo lugar num
concurso para escrivão da Coletoria; uma péssima experiência como vendedor pracista;
um violão.
Com quase 24 anos (nasceu
em 30 de abril de 1914), na rua do Bângala (hoje Luis Gama). Filho de
funcionário público (Durval Henrique Caymmi), Dorival achou que para vencer na
vida precisava abandonar as praias, o sol e o sossego da província pela
agitação de São Paulo ou Rio de Janeiro. Ao amigo ocasional de viagem conta
indignado como esperou dois anos pela nomeação para a Coletoria, até caducar-se
o concurso. E tirara o segundo lugar...
- e o emprego de
vendedor?
Dorival solta uma gostosa
gargalhada. Não tinha a menor vontade e vocação para o comércio. Acontece que Zezinho,
um amigo de infância (José Rodrigues de Oliveira) , não dava conta do serviço e
entregou-lhe algumas coisas para vender.
Uns barbantes, uns fios, mas não conseguiu vender uma cordinha sequer.
Depois vieram umas garrafas – pasta com garrafas pesa como o diabo! -, mas
ninguém queria saber das bebidas. Como desconfiassem que eram falsificadas,
Zezinho sugeriu que abrissem uma para experimentar. Abriram uma, abriram outra,
apareceram mais “provadores”, lá se foi a amostra, e o emprego....
- E agora, o que vai
fazer no Rio?
Dorival não sabe bem.
Tem facilidade para o desenho e experiência no jornal, adquirida em seu
primeiro emprego em “O Imparcial”. Quem sabe conseguirá um lugar na imprensa?
Um contraparente, o José Pitanga, talvez pudesse ajudá-lo a encontrar trabalho.
De noite, um grupo de
passageiros reúne-se à volta do moço baiano. Ele toca violão e canta com sua
voz grave e bonita. A música é uma paixão antiga. Criança ouvia o pai tocar
violão e bandolim. Com Zezinho, ouvia os últimos discos de Lamartine Babo, Noel
Rosa, João de Barro. Já dedilhava o violão, e, acompanhado por Zezinho no
cavaquinho, divertiam-se fazendo paródias das músicas mais conhecidas. De
brincadeira em brincadeira fizera a primeira música aos dezenove anos. Era uma
toada – NO SERTÃO -, que a moda na
época era música sertaneja. Mais tarde,
ao vencer um concurso de músicas carnavalescas com a composição A BAHIA TAMBÉM DÁ, ganhou valioso prêmio: um abajur de cetim...
O ita avança pelo mar
e Dorival vai cantando os sucessos dos discos, cantigas tradicionais da Bahia,
a música de suas festas, e, sobretudo, as canções dos pescadores.
4 de abril de 1938:
fim da viagem - Dorival Caymmi
desembarca no Rio de Janeiro.
PEGUEI UM
ITA NO NORTE
PRA VIM PRO
RIO MORAR
ADEUS MEU
PAI, MINHA MÃE,
ADEUS BELÉM
DO PARÁ.
AI, AI,
ADEUS BELÉM DO PARÁ
AI, AI,
ADEUS BELÉM DO PARÁ
VENDI MEUS
TROÇOS QUE EU TINHA
O RESTO DEI
PRA “AGUARDÁ”
TALVEZ EU
VOLTE PRO ANO
TALVEZ EU FIQUE
POR LÁ.
“todo Ita traz uma
leva de nordestinos que vêm tentar a vida no sul. Essa toada está cheia de
saudade deles, cheia de certa nostalgia que só aqueles que um dia tomaram um
ita e nele navegaram para o Rio podem sentir e compreender. Ela infunde certa
tristeza, a lembrança da terra que se abandonou”.
NA TERRA DO
FUTEBOL E DO RÁDIO
- Você deve estudar
direito em Niterói que é mais fácil!
O moço baiano levou a
sério o conselho dos colegas de pensão e começou a se preparar para o vestibular.
Mas precisava trabalhar. José Pitanga recomendou-o ao desenhista Edgar de
Almeida, da revista “O Cruzeiro”. Foi apresentado ao diretor Accyoli Neto, ao redator da seção de cinema Pedro Lima, e disse para
Millôr Fernandes, um menino de catorze anos que colava fotografias: “ olha aqui, não vai demorar muito e você vai
colar essas páginas cheias de fotografias minhas”. Certamente não esperava a
glória no modesto trabalho que conseguiu na revista: fazer títulos e outros
pequenos servicinhos. Pensava em outra frase dos amigos: - aqui é a terra da música; se você fizer
sucesso, fica rico”.
Estava entusiasmado
com a primeira experiência no rádio carioca. Levado por Assis Valente e
Lamartine Babo, cantara no Clube dos
Fantasmas, programa da Rádio Nacional, Noite de Temporal: “Pescador
não vai pra pesca, que é noite de temporá
“.
É NOITE DE TEMPORAL
É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Pescador não vai pra pesca
Pescador não vai
Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá
Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá
É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Pescador não vai pra pesca
Pescador não vai
Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá
Pescador não vai pra pesca
Que é noite de temporá
É noite, é noite
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Helambaê helambaio, Helambaê helambaio
Pescador se vai pra
pesca na noite de temporal
A mãe se senta na
areia esperando ele vortar
A mãe se senta na areia esperando ele vortar
É noite, é noite, é noite...
A mãe se senta na areia esperando ele vortar
É noite, é noite, é noite...
Nessa canção Caymmi já
mostrava a influência da música de rua da Bahia: “minha ideia era afirmar bem, em meu
acompanhamento, o samba de umbigada da Bahia e a capoeira. Em Noite de Temporal, minha primeira canção praieira, procurei
tocar acompanhado pelo toque de berimbau de capoeira. Sempre pus esses
elementos nativos no meu acompanhamento, por isso meu violão era
diferente. Usei temas e elementos do
folclore”. Quando usava um de seus
temas, procurava justificá-lo para não haver deturpação.
E Edgar de Almeida
confirmou: “olha, isto é terra de futebol e rádio”. Não ficou só no conselho:
apresentou Dorival para o diretor da Rádio Tupi, Teófilo de Barros Filho, que o
contratou por 240 mil-réis mensais. A 24 de Junho de 1938 , num programa junino
no quintal da rádio, Caymmi estreou cantando
O QUE É QUE A BAIANA TEM? Samba brejeiro de muito balanço. Dois
meses depois passava para a Rádio Transmissora, ganhando 600 mil-réis mensais e
mais tarde levado por Almirante, ingressava na Rádio Nacional, com 700 mil-réis
por mês e muita publicidade em “A noite“ e na revista “ A Carioca”, os melhores
órgãos de publicidade radiofônica de então. A Nacional era uma emissora nova –
apenas dois anos de existência -, cujas instalações tinham o melhor equipamento
da época. Ao mesmo tempo, Caymmi começava
a frequentar a roda dos músicos eruditos e dos artistas plásticos.
Carmen Miranda foi a
primeira a gravar as músicas de Dorival Caymmi. Em 1938, Wallace Dorney
preparava um filme – BANANA DA TERRA
– com argumento de João de Barro e participação de grandes nomes da música:
Almirante, Bando da Lua, irmãs Batista, Orlando Silva e Carmen Miranda. Carmen
deveria cantar duas músicas de Ary Barroso (Na Baixa do Sapateiro e Boneca de
Pixe), mas produtor e autor não entraram em acordo financeiro. Assim, Wallace,
para aproveitar os cenários já feitos, saiu à procura de um samba baiano
típico. Caymmi apresentou O que é que a
baiana tem? que foi aprovado. O próprio Caymmi ensinou a música a Carmen,
orientando-a também em sua movimentação. Em seguida, a composição foi gravada
pela cantora, tornando-se sucesso e consolidando uma imagem típica de Carmen
Miranda.
O que é que a baiana tem - Direitos
autorais de Mangioni & Filhos
Fonte: Nova História da Música
Popular Brasileira – 1976 – Abril Cultural
Vídeo: NOITE DE TEMPORAL - youtube
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