ACONTECE QUE EU SOU
BAIANO
Era um domingo de
1939, Caymmi estava na Rádio Nacional para assistir o encerramento de RÁDIO K
EM BUSCA DE TALENTOS, programa de calouros animado por Silvino Neto, e ficou
emocionado com a beleza e o talento da moça que ganhou a prova. Dias depois, o
discotecário da rádio, Haroldo Barbosa, apresentou-lhe a jovem Stella Maris.
Pouco depois, numa
noite de gala na Mayrink Veiga, estreava Dorival Caymmi, apresentado por Carmen
Miranda. Novo encontro com Stella, que agora cantava nos melhores horários,
recebia centenas de cartas e meninas eram batizadas com o seu nome: não o
verdadeiro – Adelaide Tostes – mas o artístico.
Em 30 de abril de
1940, Caymmi completou 26 anos e casou-se com a mineira Stella.
Ela relembra: - eu trabalhava como lojista, fui para o
rádio por acidente. Lá me pagavam o dobro do que eu ganhava na loja. Apesar de
papai não gostar, peguei um programa noturno para cantar. Pouco depois, noivei,
casei, e nunca mais me lembrei do rádio.
Na calma de sua vida
doméstica, Stella fala do chefe da família: - Dorival sempre foi um homem
doméstico, ele poderia ser até
funcionário público, pois, apesar de às vezes chegar em cada de madrugada,
sempre participou do café matinal com as crianças e sempre procurou tomar
conhecimento da vida escolar delas. Convivo com Dorival há mais de 30 anos
(reportagem década de 70), e ele ainda é para mim um mistério. Quando eu
descubro uma nova música de Dorival, ela já está pronta. Ele só pega no violão
quando já estão prontas letra e música. Ele canta mais facilmente numa festinha
de amigos do que na televisão. Desiste do dinheiro para estar em família ou
cantando entre amigos. É um homem fabuloso; se eu tivesse que começar de novo,
não vacilaria: recomeçaria com ele.
Um anos depois nasceu
Dinair ( Nana), cantora de muitos fãs no Brasil e na América Latina. Falando do
pai, Nana diz: - eu o considero um gênio na música. Além de ser um grande pai e
um grande amigo, é um homem muito atualizado dentro da música, aceitando os
novos compositores e vivendo nossa época como músico. Em 1943 nasceu Dori (Dorival
Tostes ) que inspirou a música Marina. Com quatro anos de idade ele vivia
dizendo - tô de mal, tô de mal e a partir daí surgiu a história de Marina, a
moça que se pintou: “desculpe, Marina morena, mas eu tô de mal”. Dori estudou
piano, teoria e harmonia e é um grande pesquisador e compositor da música popular brasileira. O caçula Danilo não fugiu
à tradição da família; abandonou a Faculdade de Arquitetura para se dedicar
inteiramente à musica. Começou pela flauta por influência de Dori. Danilo
diz - na harmonia, papai conseguiu
colocar acordes mais dissonantes, abertos que foram de grande importância para
o avanço da bossa nova. Foi uma das
grandes contribuições para a modernização da música popular brasileira.
Poeticamente, abriu novos caminhos, com palavras que retirou do povo e que hoje
são comumente usadas.
Na época em que essa
reportagem foi feita( década de 70) Caymmi disse: - sou o mesmo de 1940, quando
me casei. Meus filhos são maiores de idade e já seguiram seus caminhos, mas eu
continuo no mesmo ambiente de violão e livros. No plano de trabalho me vejo
sempre surpreendido; trabalho constantemente, mas não tenho a preocupação do
dinheiro, isso é básico. Não tenho prática de matemática, nunca conto dinheiro,
nem faço especulações financeiras. Não tenho papeizinhos para contar o que
lucrei ou o que irei lucrar. Existem por aí alguns fenômenos de trapaça, mas eu
não participo disso porque é muito cansativo. Apesar de ter sido fundador de
duas sociedades de direitos autorais, não participo da parte que se refere a
dinheiro. Vou até onde me concerne chegar. Não tenho planos para ficar rico na
música, porque já me acostumei à situação de proteger os compositores contra a
gana que existe pelo dinheiro fácil.
No Brasil ainda
estamos gatinhando no negócio de direto autoral. Nos Estados Unidos há uma
fórmula: sucesso e dinheiro. No Brasil não é assim. Aqui o autor pensa no
sucesso, os editores pensam no dinheiro e os intermediários também. Aqui o
artista tem que fazer outra coisa para ganhar a vida. Ser o cantor como eu sou;
ser o humorista, como foi Lamartine Babo; ser o “speaker” de futebol e animador
de programa de calouros, como foi Ary Barroso.
O brasileiro é um
tímido, em princípio. Um homem que depende de um carnaval anual para poder se
extroverter, para poder ter um estado de espírito mais amplo, para dizer o que pensa sem compromisso. Vejo, por isso, na música de hoje, uma evasão
de sentimentos incontidos. A necessidade de fugir a uma certa timidez que
sempre houve no caráter do brasileiro.
BAHIA É O
SONHO LINDO DO CARAPEBA
Estrela da Manhã, filme que Jorge Amada escreveu e que Dorival Caymmi
interpretou em 1951 tinha como argumento uma pequena vila de pescadores - O intérprete Caymmi estava noivo de uma linda
moça, a mais linda do lugar. Um dia chegou a tragédia, na forma de uma grave
epidemia. Algo tinha de ser feito. Da cidade chegou um médico, que curou a
doença mas acabou roubando a noiva do pescador.
Coincidência ou não,
na mesma época a música popular abordava temas semelhantes. O samba-canção e a
música de “fossa” predominavam. Caymmi que já fizera em 1947 o samba-canção Marina, sentiu-se à vontade na nova moda de sambas lentos e sofisticados.
Em 1952 gravou NÃO TEM SOLUÇÃO,
escrita em parceria com Carlinhos Guinle. Mas logo voltou ao seu tema
predileto, os pescadores. Em 1953 lançava
JOÃO VALENTÃO, música que
recordava Carapeba, um pescador idoso, voz de trovão, cara violenta, corpo
tostado pelo sol, que conhecera na mocidade.
- Eu sempre combinava
com Carapeba umas pescarias pra sair de carona no saveiro dele. Nunca fui, pois
toda vez que eu lembrava que tinha que sair às 5 horas da manhã pra voltar
somente às 6 horas da tarde, ficava pensando que ia perder o dia todo no mar e
deixar a companhia das meninas na praia.
O tempo do
samba-canção foi também o tempo das boates, da música cantada em pequenos
ambientes, o que já prenunciava a bossa nova. Em 1955, Caymmi cantava na boate
Michel, em São Paulo, ao lado de Paulinho Nogueira. Foi quando ganhou a fama de
“homem da noite”, mantendo a Michel lotada.
No ano seguinte voltou ao Rio e cantou na boate 36 com idêntico sucesso.
- a Gente cantava
muito perto das pessoas. Havia um colóquio, um contato bom com o público.
Da intimidade dessas
casas Caymmi saiu para a Europa. Foi em missão do governo brasileiro cantar em
Portugal, e aproveitou para dar um giro por Paris, Veneza e Florença. Em
Lisboa, vendo todos aqueles barquinhos a vela na enseada do porto, teve
saudades da Bahia. Ficou mais emocionado em Caldas da Rainha, ao percorrer uma
estrada toda cercada de rosas. A delicadeza da cena evocou-lhe o ritmo de uma
valsa.
Sete anos depois (em
1964) Caymmi estava visitando o pai em
Salvador, e fez um sambinha para Rosa a empregada: “ Nada como ser Rosa na vida...” . Descobriu
então
que tinha terminado a
música começada em Portugal:
- eu faço música aos
pedacinhos. Tenho aqui no bolso o retalho de uma, depois largo e começo outra
coisa. Pego uma canção e deixo ir rolando, devagarinho, ruminando, ruminando...
Tenho ânsia de ser o autor do mais simples, do mais puro. Parto para encontrar
a forma mais doce de dizer as palavras e a música duma canção, num estribilho
que você segure na cabeça, que trauteie, que assobie. Meu sonho é chegar à
perfeição de ser o autor de uma Ciranda-cirandinha, uma coisa que se perca no
meio do povo.
Lançou DAS ROSAS, fusão da valsa com o samba, num show da boate Zum-Zum, junto com
Vinicius de Moraes. E a composição fez tanto sucesso que Caymmi foi parar nos
Estados Unidos, cantando no programa de Andy Williams (que posteriormente
gravaria Das Rosas).
Em 1972 Caymmi lançou
mais um LP, no qual predominavam as canções praieiras e cuja capa reproduzia um
quadro seu. Nesse disco, o baiano interpretou cantos de candomblé e composições
suas baseadas nos ritmos dessa religião. Uma delas ORAÇÃO DE MÃE MENININHA, foi o maior sucesso desse LP lançado com
grande cerimônia em frente ao palácio do governo, em Salvador.
Em 1975, outro êxito: GABRIELA, incluída na trilha sonora da
telenovela homônima (baseada no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge
Amado).
No início do ano
seguinte, apresentou-se num show ao lado da não menos baiana Gal Costa, e entre
os sucessos de Caymmi que cantaram, muitos já haviam merecido gravações de Vic
Damone, José Feliciano, Frankie Laine, Francisco Canaro e sua típica argentina.
Porque Caymmi é assim: o cantor do mar da Bahia, um mar que não tem fronteiras.
Fonte: Nova História
da Música Popular Brasileira – Abril Cultura (1976)
Vídeo: DAS ROSAS - Youtube
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