segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

DORIVAL CAYMMI - CENTENÁRIO DE NASCIMENTO - 2014- PARTE IV


ACONTECE QUE EU SOU BAIANO

Era um domingo de 1939, Caymmi estava na Rádio Nacional para assistir o encerramento de RÁDIO K EM BUSCA DE TALENTOS, programa de calouros animado por Silvino Neto, e ficou emocionado com a beleza e o talento da moça que ganhou a prova. Dias depois, o discotecário da rádio, Haroldo Barbosa, apresentou-lhe a jovem Stella Maris.
Pouco depois, numa noite de gala na Mayrink Veiga, estreava Dorival Caymmi, apresentado por Carmen Miranda. Novo encontro com Stella, que agora cantava nos melhores horários, recebia centenas de cartas e meninas eram batizadas com o seu nome: não o verdadeiro – Adelaide Tostes – mas o artístico.
Em 30 de abril de 1940, Caymmi completou 26 anos e casou-se com a mineira Stella.
Ela relembra:  - eu trabalhava como lojista, fui para o rádio por acidente. Lá me pagavam o dobro do que eu ganhava na loja. Apesar de papai não gostar, peguei um programa noturno para cantar. Pouco depois, noivei, casei, e nunca mais me lembrei do rádio.
Na calma de sua vida doméstica, Stella fala do chefe da família: - Dorival sempre foi um homem doméstico,  ele poderia ser até funcionário público, pois, apesar de às vezes chegar em cada de madrugada, sempre participou do café matinal com as crianças e sempre procurou tomar conhecimento da vida escolar delas.  Convivo com Dorival há mais de 30 anos (reportagem década de 70), e ele ainda é para mim um mistério. Quando eu descubro uma nova música de Dorival, ela já está pronta. Ele só pega no violão quando já estão prontas letra e música. Ele canta mais facilmente numa festinha de amigos do que na televisão. Desiste do dinheiro para estar em família ou cantando entre amigos. É um homem fabuloso; se eu tivesse que começar de novo, não vacilaria: recomeçaria com ele.
Um anos depois nasceu Dinair ( Nana), cantora de muitos fãs no Brasil e na América Latina. Falando do pai, Nana diz: - eu o considero um gênio na música. Além de ser um grande pai e um grande amigo, é um homem muito atualizado dentro da música, aceitando os novos compositores e vivendo nossa época como músico. Em 1943 nasceu Dori (Dorival Tostes ) que inspirou a música Marina. Com quatro anos de idade ele vivia dizendo  - tô de mal, tô de mal  e a partir daí surgiu a história de Marina, a moça que se pintou: “desculpe, Marina morena, mas eu tô de mal”. Dori estudou piano, teoria e harmonia e é um grande pesquisador e compositor da música  popular brasileira. O caçula Danilo não fugiu à tradição da família; abandonou a Faculdade de Arquitetura para se dedicar inteiramente à musica. Começou pela flauta por influência de Dori. Danilo diz  - na harmonia, papai conseguiu colocar acordes mais dissonantes, abertos que foram de grande importância para o avanço da bossa nova.  Foi uma das grandes contribuições para a modernização da música popular brasileira. Poeticamente, abriu novos caminhos, com palavras que retirou do povo e que hoje são comumente usadas.
Na época em que essa reportagem foi feita( década de 70) Caymmi disse: - sou o mesmo de 1940, quando me casei. Meus filhos são maiores de idade e já seguiram seus caminhos, mas eu continuo no mesmo ambiente de violão e livros. No plano de trabalho me vejo sempre surpreendido; trabalho constantemente, mas não tenho a preocupação do dinheiro, isso é básico. Não tenho prática de matemática, nunca conto dinheiro, nem faço especulações financeiras. Não tenho papeizinhos para contar o que lucrei ou o que irei lucrar. Existem por aí alguns fenômenos de trapaça, mas eu não participo disso porque é muito cansativo. Apesar de ter sido fundador de duas sociedades de direitos autorais, não participo da parte que se refere a dinheiro. Vou até onde me concerne chegar. Não tenho planos para ficar rico na música, porque já me acostumei à situação de proteger os compositores contra a gana que existe pelo dinheiro fácil.
No Brasil ainda estamos gatinhando no negócio de direto autoral. Nos Estados Unidos há uma fórmula: sucesso e dinheiro. No Brasil não é assim. Aqui o autor pensa no sucesso, os editores pensam no dinheiro e os intermediários também. Aqui o artista tem que fazer outra coisa para ganhar a vida. Ser o cantor como eu sou; ser o humorista, como foi Lamartine Babo; ser o “speaker” de futebol e animador de programa de calouros, como foi Ary Barroso.
O brasileiro é um tímido, em princípio. Um homem que depende de um carnaval anual para poder se extroverter, para poder ter um estado de espírito mais amplo, para dizer  o que pensa sem compromisso.  Vejo, por isso, na música de hoje, uma evasão de sentimentos incontidos. A necessidade de fugir a uma certa timidez que sempre houve no caráter do brasileiro.

BAHIA É O SONHO LINDO DO CARAPEBA

Estrela da Manhã, filme que Jorge Amada escreveu e que Dorival Caymmi interpretou em 1951 tinha como argumento uma pequena vila de pescadores -   O intérprete Caymmi estava noivo de uma linda moça, a mais linda do lugar. Um dia chegou a tragédia, na forma de uma grave epidemia. Algo tinha de ser feito. Da cidade chegou um médico, que curou a doença mas acabou roubando a noiva do pescador.
Coincidência ou não, na mesma época a música popular abordava temas semelhantes. O samba-canção e a música de “fossa” predominavam. Caymmi que já fizera em 1947 o samba-canção Marina, sentiu-se à vontade na nova moda de sambas lentos e sofisticados. Em 1952 gravou NÃO TEM SOLUÇÃO, escrita em parceria com Carlinhos Guinle. Mas logo voltou ao seu tema predileto, os pescadores. Em 1953 lançava JOÃO VALENTÃO, música que recordava Carapeba, um pescador idoso, voz de trovão, cara violenta, corpo tostado pelo sol, que conhecera na mocidade.
- Eu sempre combinava com Carapeba umas pescarias pra sair de carona no saveiro dele. Nunca fui, pois toda vez que eu lembrava que tinha que sair às 5 horas da manhã pra voltar somente às 6 horas da tarde, ficava pensando que ia perder o dia todo no mar e deixar a companhia das meninas na praia.
O tempo do samba-canção foi também o tempo das boates, da música cantada em pequenos ambientes, o que já prenunciava a bossa nova. Em 1955, Caymmi cantava na boate Michel, em São Paulo, ao lado de Paulinho Nogueira. Foi quando ganhou a fama de “homem da noite”, mantendo a Michel lotada.  No ano seguinte voltou ao Rio e cantou na boate 36 com idêntico sucesso.
- a Gente cantava muito perto das pessoas. Havia um colóquio, um contato bom com o público.
Da intimidade dessas casas Caymmi saiu para a Europa. Foi em missão do governo brasileiro cantar em Portugal, e aproveitou para dar um giro por Paris, Veneza e Florença. Em Lisboa, vendo todos aqueles barquinhos a vela na enseada do porto, teve saudades da Bahia. Ficou mais emocionado em Caldas da Rainha, ao percorrer uma estrada toda cercada de rosas. A delicadeza da cena evocou-lhe o ritmo de uma valsa.
Sete anos depois (em 1964)  Caymmi estava visitando o pai em Salvador, e fez um sambinha para Rosa a empregada:  “ Nada como ser Rosa na vida...” . Descobriu então
que tinha terminado a música começada em Portugal:
- eu faço música aos pedacinhos. Tenho aqui no bolso o retalho de uma, depois largo e começo outra coisa. Pego uma canção e deixo ir rolando, devagarinho, ruminando, ruminando... Tenho ânsia de ser o autor do mais simples, do mais puro. Parto para encontrar a forma mais doce de dizer as palavras e a música duma canção, num estribilho que você segure na cabeça, que trauteie, que assobie. Meu sonho é chegar à perfeição de ser o autor de uma Ciranda-cirandinha, uma coisa que se perca no meio do povo.
Lançou DAS ROSAS, fusão da valsa com o samba, num show da boate Zum-Zum, junto com Vinicius de Moraes. E a composição fez tanto sucesso que Caymmi foi parar nos Estados Unidos, cantando no programa de Andy Williams (que posteriormente gravaria Das Rosas).
Em 1972 Caymmi lançou mais um LP, no qual predominavam as canções praieiras e cuja capa reproduzia um quadro seu. Nesse disco, o baiano interpretou cantos de candomblé e composições suas baseadas nos ritmos dessa religião. Uma delas ORAÇÃO DE MÃE MENININHA, foi o maior sucesso desse LP lançado com grande cerimônia em frente ao palácio do governo, em Salvador.
Em 1975, outro êxito: GABRIELA, incluída na trilha sonora da telenovela homônima (baseada no romance Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado).
No início do ano seguinte, apresentou-se num show ao lado da não menos baiana Gal Costa, e entre os sucessos de Caymmi que cantaram, muitos já haviam merecido gravações de Vic Damone, José Feliciano, Frankie Laine, Francisco Canaro e sua típica argentina. Porque Caymmi é assim: o cantor do mar da Bahia, um mar que não tem fronteiras.






Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira – Abril Cultura (1976)
Vídeo: DAS ROSAS - Youtube




Nenhum comentário:

Postar um comentário