quinta-feira, 3 de agosto de 2017

I- VICENTE CELESTINO - NESTAS VELHAS OPERETAS , O RETRATO DE UMA ÉPOCA - INFÂNCIA




Quando o  “jovem tenor” Vicente Celestino estreou no teatro de revista da Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, em 1914,  cantando “uma romanza, que foi bisada sob aplausos calorosos da assistência”, a fama de Caruso corria o mundo, levada pelos telegramas das agências internacionais, que começavam a fabricar os primeiros ídolos de massa. Subir ao palco como o grande Caruso, para triunfar diante das plateias de elite das casas de ópera, era então, no Brasil, o ideal de qualquer cantor a quem a natureza concedesse um registro de voz acima do necessário para cantar as modinhas melosas ou as cançonetas cheias de duplo sentido responsáveis pela transformação das casas de chope cariocas em sucursais do “vaudeville” parisiense.
Antes de Vicente Celestino, outro cantor, o campista Mário Pinheiro, já tinha chamado a atenção da gravadora americana Victor como uma promessa, chegando a viajar para os Estados Unidos e Itália, a fim de estudar o “ bel canto”.  Celestino tinha quinze anos, em 1909, quando Mário, filho de uma humilde enfermeira cearense, pode aparecer na inauguração do Teatro Municipal, abrindo o peito na ópera Moema,  de Delgado de Carvalho, numa sonora vingança pública aos anos de silêncio humilde de menino pobre.
 Vicente Celestino, filho de imigrantes calabreses, e sapateiro de profissão, não podia perder a oportunidade que lhe dava sua potência vocal de subir também, além das chinelas, através de uma das únicas formas de ascensão social que a sociedade do tempo permitia aos representantes das classes mais baixas. O que dentro de vinte e poucos anos caberia ao rádio – ou seja, a criação de ídolos para a massa – só era possível então através do teatro de revista.
No fundo, o que os “jovens tenores” como Vicente Celestino desejavam era atingir a posição de prestígio máximo: cantar para o público dos grandes teatros. Mas, enquanto a oportunidade não chegava, era preciso começar a escalada pelas revistas da Praça Tiradentes, onde os cartazes naquele ano mesmo da estreia de Vicente atraíam um público  bem mais modesto como a sugestão frascária de títulos como O GABIRU E DUAS POR NOITE.
Graças aos seus cabelos pretos encaracolados e a uma voz que, se não primava pela finura da emissão, possuía ao menos uma irresistível coerência com o seu físico de  estivador de cais de porto, Vicente Celestino não teria do que se queixar em sua caminhada para o domínio dos palcos. Embora não chegasse ao Teatro Municipal, o disco, desde 1916, e o rádio, a partir da década de 30 lhe garantiriam uma popularidade nacional que nenhum desempenho na TOSCA de Puccini ou na AÏDA de Verdi seria capaz de lhe dar. O público do “teatro por sessões”,  atraído pela fama de vigor circense de uma voz que – diziam – quebrava cristais e obrigava o cantor a ficar de costas para o microfone, nos estúdios de gravação, desfilava diante das bilheterias para poder gozar o privilégio de torcer, de relógio na mão pela sustentação de um Dó de peito além dos trintas segundos. Vicente Celestino, por sua vez, soube pagar a simplicidade e a pureza dessa admiração com a honestidade de um bom filho do povo.
Os pomposos temas das óperas que jamais chegou a cantar, ele de certa maneira os trocou em miúdos na descabelada dramaticidade das suas canções e dos seus filmes, em que os refinados venenos dos libretos italianos eram substituídos pela cachaça, e as complicadas tramas de famílias cortesãs viravam histórias do tipo Coração Materno. Depois de pretender atingir a altura das elites, Vicente Celestino conformou-se em ser povo. E essa foi a razão de seu sucesso.
                                                                                            
 J.R. TINHORÃO


INFÂNCIA

Dois anos após terem se instalado  à Rua Paraíso, no bairro de Santa Teresa, José Celestino e Serafina Gamera tiveram um filho. Se naquele  dia 12 de setembro de 1894 ainda estivessem na velha Catanzaro, cidadezinha da Calábria, o menino  se chamaria Antonio Vincenzo, mas haviam trocado a Itália pela capital do Brasil, e o menino foi batizado de Antônio Vicente Filipe Celestino.
O casal era apreciador do “bel canto”, e os onze filhos iriam crescer ouvindo nas velhas chapas de gramofone as vozes de Enrico Caruso, Francesco Tamagno e outros famosos tenores. Talvez por isso, os cinco meninos irão seguir carreira artística: João será  galã-cômico; Pedro e Vicente, tenores; Radamés, barítono e Amadeu, baixo.
Pedro Celestino chegaria a ser sucesso em 1926, com a valsa lenta AVE-MARIA, de Erotides de Campos e Jonas Neves. Mas nada se compararia ao sucesso de Vicente, sucesso que se estenderia por mais de cinco décadas.



Aos sete anos, Vicente foi matriculado numa escola particular, a 10 mil-réis por mês. Mas no ano seguinte, além de não terem dinheiro para pagar a escola, os pais necessitavam da ajuda do menino: o volume de roupas para passar aumentara, e era Vicente quem virava calças do avesso. Mas o menino ainda conseguia dar umas escapadas para a rua, onde conheceu um crioulinho que tocava flauta muito bem; Alfredo Viana, o Pixinguinha. Com ele saiu pela Ladeira do Viana, no tradicional Bloco das Pastorinhas. Vicente vestido de anjo e cantando, Pixinguinha tocando flauta.
Um dia o pai achou que Vicente podia ajudar mais em casa: em vez de apenas levar-lhe o almoço na sapataria, passaria a trabalhar lá. E, em meio às marteladas para pregar saltos, Vicente ia cantarolando as músicas que aprendia. Mas o menino era inquieto, e logo arrumava biscates: ora vendia peixe que um tio lhe arranjava no mercado, ora entregava mercadorias de um armazém, etc... Para afastar o filho disso, Seu José resolveu contratá-lo a 500 réis por dia. Inútil. Logo Vicente arranjou um jeito de quintuplicar esse salário, transformando-se em ajudante de pedreiro. Aí é a vez de a mãe intervir: matricula-o  no Liceu de Artes e Ofícios, onde ele vai tentar, sem êxito, aprender desenho.  Em meio a todos esses vaivéns profissionais, Vicente nunca parava de cantar. Sabia de cor quase todas as modinhas do célebre Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), e sempre era convidado para cantar em festinhas familiares e paroquiais.




Foi em 1903 que aconteceu um fato jamais esquecido por Vicente. Cantava no coral infantil do 1º ato da ópera CARMEN, de Bizet, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro. CARUSO, que estava no Brasil, assistia ao espetáculo e logo notou aquele menino de nove anos, com voz já poderosa, destacando-se no conjunto. Ao fim da representação, a hoje legendária figura dirigiu-se a Vicente naquela língua que ele estava tão acostumado a ouvir em casa: convidou-o a ir estudar na Itália. E foi assim que o jovem Caruso foi parar na Rua do Paraíso. Mas Vicente pensou que nunca mais teria oportunidade de fazer carreira: os pais não deram permissão ao tenor para levar o menino.

Caruso foi embora e Vicente foi trabalhar porque a situação da família, como de costume, ia mal. Ficou um pouco em uma fábrica de guarda-chuvas, depois trabalhou numa fábrica de escadas. Aos doze anos era ajudante de bicheiro (o jogo ainda era permitido),  aos dezesseis  o pai o recaptura para a sapataria, agora uma pequena indústria, com máquinas e tudo. Lá ele é logo promovido a mestre, mediante o brilhante recorde de 1200 saltos pregados num dia.


Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril cultural – 1977
Fotos: Google

II - VICENTE CELESTINO - SERESTAS - TEATROS - ÓPERAS






 Aos dezessete anos, o rapaz já tem dinheiro suficiente para comprar um ingresso de galeria no Teatro Municipal, e vai assistir à DANAÇÃO DE FAUSTO,  de Berlioz. Mas a certa altura da ópera o tenor começa a vacilar, dando umas desafinadas.  Vicente, entre a solicitude a oportunidade, tenta “ajudar” lá de cima. Os espectadores, indecisos, entre a cena e a galeria, vivem o espanto por instantes: logo o inconveniente tenor é localizado e retirado do teatro.  Aos dezoito anos, as primeiras serestas de subúrbio, as apresentações em clubes dançantes e a primeira investida ao palco.
Junto com uns amigos do Bosque da Saúde, formou o Grupo dos Cartolas, que encenou a peça VIDA DE ARTISTA. Vicente caminha rápido em busca da profissionalização artística: vai cantar, a 10 mil-réis por dia, numa daquelas casas de chope que eram os bares da moda. Um dia o Coronel Alvarenga ouve Vicente e resolve contratá-lo para a sua Companhia do Teatro são José, da Empresa Pascoal Segreto.
- Ator ou corista?
O tenor, ainda inseguro, escolhe o coro. Mas o Coronel Alvarenga, com grande tino comercial, faz Vicente cantar uma música famosa na época: FLOR DO MAL. Além do título tinha uma história trágica: Santos Coelho, guitarrista português e autor da música – à qual deu inicialmente nome de Saudade Eterna -, morreria com distúrbios mentais por volta de 1927.  O autor da letra, Domingos Correia, apelidado de “Boneco”, suicidou-se por causa da amada que inspirara seus versos.  Faltava só a dramática  altissonância da voz de Vicente Celestino para dar o toque final. O sucesso do palco foi então passado , não sem perigo, para a frágil cera das chapas gramofônicas, no tempo das históricas gravações mecânicas precedidas pelo anúncio vocal  “Casa Edison,  Rio de Janeiro”. O acompanhamento foi feito por Tute, ao violão de sete cordas, e Nelson Dois Pescoços, ao cavaquinho. A participação de Vicente no estrondoso sucesso limitou-se à magra quantia de 10 mil-réis...





A partir de Flor do Mal começa o sucesso de Vicente  Celestino. Em 1916 vai a São Paulo, contratado pela companhia de Leopoldo Fróis, cantar no Teatro São José ( depois prédio da Light). Cachê ainda baixo, Vicente mandou fazer uns folhetos com sua foto e a letra de Flor do Mal, para serem vendidos a 300 réis – 200 para ele, 100 para o menino que os distribuiu. Quando Fróis soube que aquele “rapaz promissor”  precisava se valer de expedientes desse tipo, promoveu-o a ator. Os outros componentes da companhia, invejosos, logo inventaram uma brincadeira de mau gosto; em plena cena, abre-se um alçapão  que remete Vicente ao porão. Quando Fróis soube disso multou a companhia toda.
Ainda em 1916, Vicente estreia em Porto Alegre ( Teatro Coliseu) e em Pelotas, no Politeama.  Lá, novas perseguições: Vicente é instalado num porão que ficava inundado toda vez que chovia. De volta ao Rio, vai cantar em igrejas até que surjam novas oportunidades. Em 1919, estreia no Teatro São Pedro (atual João Caetano), que começava a lançar operetas no estilo do Grande Teatro Châtelet, de Paris. A peça escolhia foi AMOR DE BANDIDO, de  Oduvaldo Viana, e Vicente foi muito aplaudido no papel de bandido. Dado o sucesso a companhia resolver levar outra peça de Oduvaldo Viana, FLOR DA NOITE,  que também constituiu grande êxito de bilheteria.
Depois viria O PUM, de Arthur Azevedo, e a opereta JURITI, de Viriato Correia, música da célebre compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga (1847-1935).
Por essa época Vicente cantou um trecho de GIORDANO de Andrea Chernier para o empresário  Walter Mochi, que, entusiasmado, lhe propôs um ordenado de 400 mil-réis mensais para estudar, preparando o repertório lírico. Mochi acenava a Vicente com as glórias do Scala de Milão, mas o cantor preferiu ficar: queria cantar para a sua gente. E foi o que fez durante o resto da vida. Excursionou por quase todos os Estados, levando os alegres sons da opereta até as mais desconhecidas cidadezinhas do interior.
Na década de 20, Vicente deixa o Teatro São Pedro e une-se à atriz Áurea Santos   que conhecera em São Paulo, no Teatro São José, e que fora ao Rio de Janeiro  com uma companhia de operetas e adotara o nome artístico de Laís Areda.  Também se engajam  na companhia os irmãos de Vicente: Pedro, João, Radamés e Amadeu.  Estreiam  no Teatro Americano , da Praça Saens Pena, com a opereta LOUCURAS DE AMOR, de A. Carvalho. Depois excursionam sem sucesso por São Paulo. Após a falência, Vicente tenta o gênero lírico: em 1921 estreia no Teatro Lírico ao lado da soprano Galiacci nas óperas TOSCA ( Puccini)  e AÏDA (Verdi). Ainda nesse ano , volta ao Teatro São Pedro, contracenando com a cantora Medina de Souza na ópera CARMEN, de Bizet. Também no teatro São Pedro , ele representa  O MÁRTIR DO CALVÁRIO, papel que viveria mais tarde durante anos seguidos  por ocasião da Semana Santa
As excursões se sucedem: com Carmen Dora, organiza nova companhia, para excursionar pelo país com um repertório das mais famosas operetas vienenses.  Em 1923 está no Pará, na Companhia Brandão Sobrinho. Em 1924, na Paraíba, já arriscando os primeiros versos (“verdadeiros dramalhões”, segundo suas palavras) nas horas de folga da companhia. Ainda naquele ano passa por Pernambuco e Bahia. No ano seguinte já é visto em Belo Horizonte, em O MANO DE MINAS, de Brandão Sobrinho e Celestino Silva, interpretando uma canção que marcaria época: SAUDADE DO SERTÃO (Celestino Silva e Verdi de Carvalho). Entre 1927 e 1928, percorre  outra vez o norte, e em 1930 está no Rio, representando  ALVORADA DO AMOR, opereta de Otávio Rangel, baseada no filme musical do mesmo nome. Vicente está aproveitando ao máximo a fase que antecede à implantação do rádio no Brasil.




Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural - 1977
fotos: Google

terça-feira, 1 de agosto de 2017

III - VICENTE CELESTINO E GILDA ABREU




Por muito que excursionasse, Vicente Celestino sempre volta ao Rio de Janeiro, seu ponto de referência e capital artística do país. E foi lá que, em 32,  reencontrou Chico Alves, velho companheiro da Lapa e dos chopes, e que ele havia lançado no mundo  artístico  um dez anos antes. Trabalharam em algumas revistas no Teatro João Caetano e, em vista do sucesso, tiveram a ideia de formar uma dupla para percorrer a Europa.  O projeto só não foi adiante porque o empresário do Teatro Recreio os convidou , em 1933,  para atuar na burleta A CANÇÃO BRASILEIRA, de Luís Iglesias e Miguel Santos, música de  Henrique Vogeler (1888-1944).  Vicente seria “ Tango” e Chico Alves, “Samba”. No papel feminino “Canção” apareceria uma nova artista, de voz muito bonita: Gilda Abreu.  Mas Chico adoeceu, Gilda adoeceu e Vicente acabou ficando com o papel de “Samba”. “Tango” seria o ator Pezzi, e “ Canção”  por apenas quinze dias seria vivia por Ida Iquizeto.   A Canção Brasileira aproximaria  Gilda Abreu e Vicente Celestino definitivamente.


Gilda Abreu - 1937


Mas nem só de operetas vivia o tenor. Sempre que podia, fazia suas gravações que até 1926 eram mecânicas; - a gente gravava num funil. Na ponta desse funil tinha um diafragma e a potência da voz é que fazia o diafragma cortar a cera. Se a gente cantasse mal e perdesse a cera, o pessoal da fábrica quase nos matava...

Depois o patrimônio da Casa Edison passou para a Odeon, e o acervo incluía Vicente Celestino. Lá não havia mesa de controle e os técnicos  assustados com aquele vozeirão mandavam Vicente recuar 20 metros e dar as costas ao microfone para não partir o cristal. O resultado ele jamais esqueceria:
 - minha voz parecia um eco, e não se entendiam as palavras. Escrevi para o tenor Martinelli, nos Estados Unidos, e ele me informou que gravava a 1 metro do microfone. Foi assim que consegui chegar mais perto e ser melhor gravado-.
Depois Vicente foi para a Columbia  (que depois se tornou Continental), de onde logo saiu, irritado com a péssima qualidade da gravação  de CABOCLA SERRANA (Cândido “Índio” das Neves”). Foi para a RCA VITOR (1935), onde ficaria para o resto da vida.




A partir da união com Gilda, parece que o potencial de Vicente começou a ser melhor aproveitado – há mesmo quem diga que foi ela a “cabeça” artística e comercial da dupla. O tenor, que já vinha há algum tempo fazendo tentativas de composição (conseguira gravar uma, em 1930, na Odeon: a canção QUANDO EU TE VI,  entra no ramo em 1935, com o tango-canção OUVINDO-TE. Na gravação RCA, a orquestra era regida pelo companheiro de infância Alfredo da Rocha Viana Jr., o Pixinguinha.
Ainda naquele ano, Vicente escreve mais duas canções AMO-TE e PATATIVA, que seria sucesso em 1936 e 1937, e canta com Gilda, LUCIA DI LAMMERMOOR, de Donizetti , no Teatro São Pedro.
De 1936 é a canção que mais renderia,  em lucros e prestígio,  a Vicente Celestino: O ÉBRIO
A música fez tanto sucesso  que Vicente a transformou em peça teatral, estreada em São Paulo em 1942.  E quatro anos mais tarde Gilda Abreu, uma das primeiras mulheres a dirigir filmes no Brasil (BONEQUINHA DE SEDA, 1935), transpôs O ÉBRIO para o cinema.  A tragédia do Dr. Gilberto, transformado em alcoólatra pelo amor de uma mulher, emocionou gerações e fez vibrar os mais remotos cinemas do país.  A popularidade de O ÉBRIO  foi tanta que o personagem chegou a ser identificado com seu criador (Vicente detestava isso, pois orgulhava-se de ser abstêmio). Mas, com todo esse sucesso, O ÉBRIO não chegou a enriquecer Vicente.



A carreira do grande ídolo estava consolidada. Mas Vicente Celestino prosseguia: o trágico tango-canção CORAÇÃO MATERNO (1937) é transformado em peça teatral em 1947, para chegar ao cinema, sempre arrancando muitas lágrimas, em 1951. Paralelamente a isso, o tenor ia marcando a música popular brasileira com suas composições; SERENATA, MATEI (1940), ENQUANTO OS LÍRIOS FLORESCEM (1943), MIA GIOCONDA (1945), PORTA ABERTA, ALTAR DE LAMA ( 1946), ENCANTAMENTO (1952) e muitas outras.
Quando morreu, em 23 de agosto de 1968, Antônio Vicente Filipe Celestino podia se orgulhar de ter dado seu recado a três gerações.





Em abril de 1977 estreava no Cine Paissandu, no Rio de Janeiro, o curta-metragem (17 minutos) CANÇÃO DE AMOR, dirigido por Gilda Abreu e produzido pela Cinédia. Usando fotografias antigas, trechos dos outros filmes estrelados por Vicente Celestino   (O Ébrio  e Coração Materno) e algumas tomadas da residência da viúva, o documentário esboça uma pequena biografia do cantor, compositor e ator. Segundo Gilda Abreu: “ Canção de Amor tenta ser uma visão pessoal do homem com quem convivi durante 34 anos. Um filme piegas e nostálgico – como eu”.

VICENTE CELESTINO
Nasceu para cumprir a linda missão que lhe foi dada por Deus:
 a de cantar até o último dia de sua vida.
Durante 65 dos 74 anos que viveu,
fez ouvir pela terra que tanto amou
o milagre vivo de sua garganta privilegiada.
Posso assegurar que sua maior alegria
- ele era um homem do povo –
foi ter proporcionado à sua gente
momentos de felicidade com suas canções.

GILDA ABREU



Boa parte da fama e do sucesso de Vicente Celestino deve-se à imagem de casal feliz e unido que ele e Gilda Abreu cultivaram durante mais de 50 anos.  Unidos na profissão e no amor desde aquele inesquecível dia 25 de setembro de 1933, Gilda e Vicente só se separariam  no dia da morte do cantor, numa fria noite de agosto, em São Paulo. Gilda conheceu Vicente espreitando-o  pela porta do gabinete de sua mãe, cantora e professora de canto. Sem saber o tenor era espiado  por aquela que mais de dez anos depois a ele se declararia a meia voz, em plena cena. Gilda era francesa: nascera em Paris em 1904, e aos quatro anos viera para o Brasil. Cedo seguiu os passos de Dona Nícia Silva Abreu, podendo encontrar-se profissionalmente com Vicente Celestino em 1933, durante a revista musical  A CANÇÃO BRASILEIRA.  O casamento foi no dia 25 de setembro daquele ano. Casaram-se de manhã, e à noite, durante a apresentação, num quadro em que Gilda aparecia de noiva, foi usado o mesmo vestido da cerimônia. E, entre os sons da marcha nupcial e uma romântica revoada de pombos, repetiram, agora já com sabor de glória, a emoção do casamento.





Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural - 1977
Fotos: Google

IV - VICENTE CELESTINO E " O ÉBRIO"



GRAVAÇÃO DO FILME "O ÉBRIO" - 1946




O ÉBRIO




Nasci artista, um cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O meu nome pouco a pouco foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da glória. Durante a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juraram-me amor eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor.
Uma noite, quando eu cantava a Tosca, uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor. Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa.  Um dia, quando eu cantava  A  força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta um adeus. Não pude mais cantar. Mais tarde, lembrei-me de que ela, contudo,  me havia deixado um pedacinho do seu eu: a minha filha.
Uma pequenina boneca de carne que eu tinha o dever de educar. Voltei novamente a catar mas só por amor à minha filha. Eduquei, fez-se moça, bonita... e uma noite, quando eu cantava ainda mais uma vez  A força do destino, Deus levou  a minha filha para nunca mais voltar. Daí pra cá eu fui caindo, caindo, passando dos teatros de alta categoria  para os de mais baixa. Até que  acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo.  Nunca mais fui nada. Nada, Não! Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura, chamam-me ÉBRIO...




O ÉBRIO - FILME 1946


Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou
Apedrejado  pelas ruas vivo a sofrer
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou.
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo
Cada colega de infortúnio é um grande amigo
Que embora tenham como eu seus sofrimentos
Me aconselham e aliviam os meus tormentos
Já fui feliz e recebido com nobreza até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então
O falso lar que amava e que a chorar deixei
Cada parente, cada amigo, era um ladrão
Me abandonaram e roubaram o que amei
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar
Quando eu morrer, em minha campa nenhuma inscrição
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo.




Composição mais famosa de Vicente Celestino, foi também  sua obra de maior sucesso. Desenvolvida “ a partir de uma coisa que estava martelando a cabeça há muito tempo”, como disse a sua esposa, a composição foi feita em 1935, contra a vontade de Gilda.  Segundo ela, daria a impressão que Vicente Celestino, um abstêmio, começara a beber. Apesar dos inúmeros telefonemas a Gilda Abreu, cobrando “ a ousadia de abandonar um homem como Vicente Celestino e levá-lo à bebida”, a ideia geral não foi essa.
O Ébrio baseava-se na fórmula triunfal que Carlos Gardel e Alfredo Le Pera desenvolviam desde os anos 30 na Argentina.
Vicente Celestino estava no auge da fama e, com sua interpretação, a música alcançou retumbante sucesso. Levada depois ao teatro, converteu-se em 1946, em filme, talvez o melhor sucedido financeiramente e em popularidade na história do cinema brasileiro. Em 1965, o Ébrio foi tema de novela.  (direitos autorais de Mangione & Filhos)




MUSEU VICENTE CELESTINO  - CONSERVATÓRIA






Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural  -1977
Fotos:  Google
Vídeo: Youtube








segunda-feira, 22 de maio de 2017

TRIBUTO A NOEL ROSA - O POETA DA VILA - I




Dia 11 de Dezembro de 1910-  O chalé da Rua Teodoro da Silva, 130, em Vila Isabel, bairro da classe-média  do Rio de Janeiro, estava apinhado de gente: ia nascer o primeiro filho do casal Manuel e Marta de Medeiros Rosa. Lembrando-se de sua infância cheia de trabalhos e dificuldades, certamente Manuel desejava para o filho uma vida sem preocupações. Dona Marta, entre as aflições do parto, quem sabe não pensaria num filho doutor, como fora seu pai, o médico e poeta Eduardo Correia de Azevedo? No entanto, se esses pensamentos ocorreram, logo foram superados pela preocupação do momento: o parto prolongava-se difícil, Dona Marta sofria  e os médicos José Rodrigues da Graça Melo e Heleno Brandão, amigos da família, não tinham alternativa: se não forçassem o nascimento, mãe e filho poderiam vir a morrer. E assim, nasceu Noel de Medeiros Rosa, marcado pelo fórceps que lhe fraturou e afundou o maxilar inferior, provocando também paralisia parcial no lado direito do rosto. Enfim, era até um defeito pequeno para um parto tão difícil e talvez, com o tempo, ele se recuperasse naturalmente. Mas importante era a boa saúde do menino, que aos dez meses venceria um concurso de robustez promovido pela Nestle.




O pai de Noel, por esse tempo, exercia a gerência de uma camisaria, com uma promessa: caso evitasse a falência do negócio, ganharia sociedade na firma. A falência foi evitada, mas a promessa não foi cumprida.  Desgostoso, Manuel uniu-se a um companheiro  e fundou a sua própria loja de roupas para homens. Veio a Primeira Guerra Mundial, o comércio ficou difícil e Rodrigues, Medeiros & Cia. faliram. Endividado, Manuel de Medeiros Rosa partiu para o interior de São Paulo: ia ganhar dinheiro como agrimensor nas fazendas de café de Araçatuba. Na Rua Teodoro da Silva, Dona Marta fundou uma escolinha, o Externato Santa Rita de Cássia, para sustentar os dois filhos ( a 29 de dezembro de 1914 nasceu Hélio, o único irmão de Noel).
O defeito no rosto acentuava-se à medida que o menino crescia. Aos seis anos, quando já aprendia as primeiras letras com a mãe, foi operado, o mesmo acontecendo seis anos depois. Mas a ortopedia da época não conseguiu nada. Noel estava marcado para toda a vida. Foi no Colégio São Bento, onde se matriculou a 28 de dezembro de 1923, que Noel, um menino de 13 anos, ganhou o impiedoso apelido de  “queixinho”. Ficava quieto, remoendo a amargura que lhe causava o defeito. Mas já revelava a ambiguidade do Noel adulto: em outros momentos falava pelos cotovelos, inventando brincadeiras e contando piadas. No recreio, tocava no violão as músicas recém-aprendidas. Na verdade, o primeiro instrumento que tocou foi o bandolim de Dona Marta, na mesma época em que entrava para o São Bento. E, foi graças ao bandolim que experimentou, pela primeira vez, a sensação de importância.  Tocava, e logo se reuniam ao seu redor, maravilhados com a sua habilidade, os guris da escola.
Do bandolim ensinado pela mãe, Noel passou para o violão, instrumento que o pai tocava quando vinha visitar a família. Amigos, vizinhos e parentes incentivaram o adolescente, ensinando-lhe valsa e canções. Aos quinze anos já dominava o instrumento, à sua maneira: solava a linha melódica sem introduzir acordes, tal como aprendera no bandolim. Hélio, quatro anos mais moço, acompanhava Noel, primeiro a cavaquinho, depois ao violão. Os irmãos Rosa ganhavam fama de músicos em Vila Isabel.
Aos poucos, o violão foi substituindo os livros. Noel estudava apenas o suficiente para passar de ano e fazia suas primeiras aparições no Ponto de Cem Réis, esquina da Rua Souza Franco com o Boulevard 28 de Setembro. Ali, distribuídos pelos cafés-bilhares Rio Clube e Vila Isabel, faziam ponto os “rapazes folgados” do bairro, conversando, bebendo e fazendo música. E Noel, um “menino de família”, tomando as primeiras cervejas, fazendo as primeiras serenatas, enfrentando as primeiras aventuras amorosas. Mas não deixava de enfrentar também os exames escolares. Aos dezoito anos, terminado o ginásio no São Bento, iniciou os preparatórios para a Faculdade de Medicina. Com dificuldade, Manuel, agora trabalhando na Prefeitura do Rio de Janeiro, e Dona Marta conseguiam manter o filho em casa para estudar. Reprovado em 1930, só no ano seguinte ingressaria na faculdade, para alegria dos pais: Noel ia ser doutor!

NOEL, O BANDO DE TANGARÁS E A MODA SERTANEJA

Na época em que Noel dava os primeiros passos na música, a moda nos clubes elegantes do Rio de Janeiro eram os conjuntos sertanejos. Em Janeiro de 1927, chegaram do Recife os Turunas da Mauriceia (Augusto Calheiros, João Miranda, Romualdo Miranda, João Frazão e Manuel de Lima), fazendo sucesso com suas canções, toadas e sobretudo emboladas.  Na Vila, nem só Noel se entusiasmou com os músicos nordestinos.  Um grupo de alunos do Colégio Batista, que se reunia no palacete de Eduardo Dale, diretor da Casa Pratt, acompanhou a moda, fundando seu próprio conjunto: Flor do Tempo. Os ensaios eram na casa de Carlos Braga, filho do diretor da fábrica Confiança Industrial instalada na Rua Souza Franco, perto da Teodoro da Silva.
Em 1929, os rapazes da Flor do Tempo receberam convite para gravar. Selecionaram-se então os elementos mais indicados para a tarefa: Carlos Braga, Henrique Brito, Álvaro Miranda Ribeiro (Alvinho) e Henrique Foréis Domingues, já nessa época conhecido como ALMIRANTE. Acharam, entretanto, que era pouca gente e resolveram convidar o rapaz magrinho que estava sempre no Ponto de Cem Réis tocando seu violão: NOEL ROSA. Foi Carlos Braga quem sugeriu o nome do novo grupo – BANDO DE TANGARÁS - ao mesmo tempo que adotava o pseudônimo de JOÃO DE BARRO, pois não ficaria bem para um filho de industrial andar às voltas com a música popular. Isso era coisa de malandro do morro, pensavam as famílias da época. Cantar em rádio ou gravar disco não era considerado atividade séria e responsável, mas uma brincadeira excêntrica de quem desejava aparecer, fazer-se notar.  Os Tangarás, para se diferenciar da “gente de rádio”, apresentavam-se de graça, não aceitando nem mesmo o reembolso do dinheiro gasto com a condução, quando iam cantar em clubes distantes.
Em maio de 1929 Noel participava das primeiras gravações dos Tangarás: Galo Garnizé, embolada, e Anedotas, cateretê, ambas de Almirante.  E a 27 de julho, na Noite Regional Brasileira, do Tijuca Tênis Clube, apresentava sua primeira composição, a embolada MINHA VIOLA. Em seguida fez a toada FESTA NO CÉU,  sempre influenciado pela moda sertaneja.
O Bando dos Tangarás seria sucesso por muito tempo. Apresentando-se em cinemas, rádios e teatros, contaria com a colaboração de outros artistas importantes: Carolina Cardoso de Meneses, Luperce Miranda, Hélio Rosa, amadores, só admitiram receber o dinheiro da venda de discos. E Noel estava sempre lá tocando seu violão. Mas a partir de COM QUE ROUPA?  Ele não pertencia mais ao bando, pertencia ao samba.



FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
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NOEL ROSA - MEDICINA OU SAMBA - II







Em 1931, Noel entrou para a faculdade de Medicina e alcançou sucesso na música. Mas seria impossível conciliar as duas atividades, como ele mesmo conta:
- entrei para a faculdade de medicina no firme propósito de ser médico. Mas não tardou que me convencesse de que a medicina era uma carreira absorvente. Estudos incessantes, profundos, que não poderiam ser jamais abandonados, que exigiam todas as atenções. Eu devia continuar com o samba, deixando a medicina? Ou devia renunciar ao samba? Era uma alternativa dramática (...). Colocado na contingência de optar, uma vez que as duas atividades não podiam ser conciliadas, escolhi o samba.
Em 1932 já não frequentava mais as aulas. Da medicina, a única coisa que aproveitou foi a inspiração para fazer um “SAMBA ANATÔMICO”, assim mesmo com gravíssimo erro de fisiologia:
“coração, grande órgão propulsor, transformador do sangue venoso em arterial”... Contrariando toda a tradição lírica, Noel afirmava “ sem nenhuma pretensão, que a paixão, faz dor no crânio, mas não ataca o coração”. Esse “Samba Anatômico”, um dos mais originais de Noel, contava, na segunda parte, a história do sujeito:  “com mania de grandeza” que “viajou a procurar de norte a sul alguém que conseguisse encher-lhe as veias com azul de metileno pra ficar com sangue azul”...

OS PRIMEIROS E BEM TRAÇADOS SAMBAS DO POETA DA VILA

Perdia-se um mau médico, ganhava-se um bom sambista. Mesmo em 1931 quando ainda frequentava a faculdade, Noel gravou mais de vinte músicas que já revelavam o excelente compositor e a insuperável inventividade de suas letras. Seus sambas trazem sempre alguma coisa surpreendente: em CORDIAIS SAUDAÇÕES é a letra toda, estrutura em forma de carta:
“Estimo que este mal traçado samba,
Em estilo rude, na intimidade,
Vá te encontrar gozando saúde,
Na mais perfeita felicidade(...)
Espero que notes bem:
Estou agora, sem um vintém.
Podendo, manda-me algum.
Rio, 7 de setembro de 31”.
Em MULATA FUZARQUEIRA, refere-se à própria palavra escrita: “Meu amô não tem R, mas é amô debaixo d’água”.
A propósito da hora de verão, fez os trocadilhos mais complicados em QUE HORAS SÃO?
“Minha mulher sempre quer me dar pancada,
Quando eu olho o mostrador
Do relógio da empregada.
E eu danado com intriga e com trancinha
Arranquei hoje o cabelo,
do relógio da vizinha”.
Trocadilho era o seu forte – em TIPO ZERO (1934) comete esta proeza:
“Você é um tipo, que não tem tipo,
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo,
Passou a ser um tipo que ninguém esquece (...)
Você ficou agora convencido
De que seu tipo já está batido
Pois o seu tipo é o tipo
do tipo esgotado”.




Em 1931 Noel gravou  GAGO APAIXONADO, onde repete cada sílaba das palavras, enquanto Luís Barbosa o acompanha, batendo com um lápis nos dentes. Foi essa música que aproximou Noel e Marília Batista, sua intérprete favorita. É Marília quem conta: “Meu pai me levou a uma festa no Grêmio Esportivo 11 de Junho, onde eu ia me apresentar na hora de arte cantando a canção de minha autoria Preta Velha. Levava comigo o violão que papai me dera, caríssimo instrumento vencedor de um concurso na Espanha. Quando terminou minha apresentação, descansei o violão sobre uma mesa. De repente, ele desapareceu. Aí me disseram que o instrumento estava com um rapaz que ia cantar naquele instante. Contendo a raiva, ouvi Lamartine Babo anunciar “ um rapaz gago, mas bom compositor”,  pedindo que a plateia não risse do coitado. Entrou Noel cantando:
“ Mu...mu...mulher em fim fi...fizeste um estrago,
eu de nervoso esto...tou fi...ficando gago”.”
A plateia louca para rir, continha-se a custo a fim de não magoar o rapaz...



E Noel divertia os frequentadores de clubes, os espectadores do cinema Eldorado e os ouvintes da nova maravilha do século XX: o rádio.
As primeiras emissoras de rádio do Brasil surgiram em setembro de 1923, Rádio Sociedade, e outubro de 1924, Radio Clube do Brasil. Sem publicidade, de baixa potencia, funcionando poucas horas por dia, sobreviviam com a abnegação dos dirigentes e a colaboração espontânea dos artistas. No início da década de 30 o panorama já era bem diferente: cinco emissoras (as pioneiras, mais a Mayrink Veiga, a Educadora e a Philips) transmitiam regularmente, mantidas por uma publicidade irregular e primária, chamada ainda de “reclame”. Faziam sucesso e Noel sabia disso:  o rádio começava a dominar. As meninas do bairro já não tinham como único e invariável assunto os galãs de cinema. Muitas já se esqueciam do Ramón Navarro, do John Gilbert e outros amantes da tela e falavam dos “ases” do rádio: - compenetrei-me de que era preciso entrar para o rádio. E não me foi difícil. Fiz minha estreia na Rádio Educadora, com o Bando de Tangarás... Era, enfim, um  “astro” do microfone. As mocinhas bonitas, e mesmo as feias, ouviam-me e, quando me encontravam, cravavam em mim um olho curioso.  Mais tarde estive na Mayrink, e por último, no Programa Casé, onde me demorei por um largo período.
O programa de Ademar Casé surgiu a 14 de fevereiro de 1932, na PRAX  Rádio Philips, e ficava no ar das 11 da manhã até meia-noite todas as terças, quintas e domingos. Numa pequena sala da Rua Sacadura Cabral comprimiam-se um piano, quatro ou cinco músicos, o locutor, o diretor, o técnico de som, e o contrarregra Noel Rosa, chamando cantores, anotando nomes de músicas e compositores, baixando e subindo o microfone e fazendo uma última correção nos versos que daí a pouco iriam para o ar...
Noel também cantava, apesar de sua voz fraca, num tempo em que reinavam os vozeirões de Francisco Alves e Vicente Celestino. Sua maneira de dizer músicas como Gago Apaixonado
agradou o público. Mas o grande sucesso eram os improvisos que fazia com a melodia  
DE BABADO, usando-a para desafios de que participavam Almirante, Patrício Teixeira, Marília Batista e João de Barro. E no meio do desafio ele improvisava jingles do patrocinador, o Dragão da Rua Larga: “você é mais conhecido, do que níquel de tostão, mas não pode ficar mais popular, do que o Dragão”...
Os artistas do Programa Casé ganhavam 25$000 por semana. Só trabalhavam com cachê tão baixo porque gostavam de se reunir na rádio.  Despreocupados, repetiam as músicas, sem renovar o repertório. Certa vez Casé deu ordem para que não houvesse repetição. Todos reclamaram, exceto Noel, que apoiou a ideia com veemência. Na semana seguinte, ele deu os títulos das músicas que cantaria e Casé ficou satisfeito ao ver que sua ordem fora acatada. O programa foi para o ar e as músicas que Noel cantou só tinham de novo os títulos. Eram as mesmas de sempre...
Em 1935, Noel passou a trabalhar na Rádio Clube do Brasil, fazendo o programa humorístico “Conversa de Esquina”, montado com piadas de revistas e almanaques. Mais original foi a paródia que fez do Barbeiro de Sevilha – “ O barbeiro de Niterói”, utilizando  músicas populares da época. O sucesso animou Noel a tal ponto que o incentivou a fazer outras revistas radiofônicas, sempre parodiando composições populares muito conhecidas e de grande sucesso, inclusive de sua autoria.  Em “LADRÃO DE GALINHA”, uma das “vitimas” era o samba “Foi Ela” de Ari Barroso: “ quem roubou o meu capão de estimação?  Foi ele... Quem abriu o portão para o ladrão? Foi ela... e ” PALPITE INFELIZ ,do próprio Noel: “ A Genoveva não sabe o que diz/, e nunca soube onde tem o nariz/. Salve as aves, os ovos, as ovas, e as cozinheiras bem novas/, às quais sempre quis um grande bem”.
Na mesma linha, Noel fez  “A NOIVA DO CONDUTOR”, desta vez com músicas originais  do maestro Arnold Glückmann, contando o acidentado e cômico namoro do condutor de bonde Joaquim com Helena, filha do Dr. Henrique. O Casé, a Conversa de esquina e as operetas foram os  programa fixos de Noel. Mas em todas as rádios, nos mais diferentes programas, o cantor da Vila se apresentou, ganhando pequenos cachês. Conhecido e admirado por todos que faziam música popular, era requisitado para parcerias e convidado para cantar  nos mais diversos conjuntos.




FELICIDADE

FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
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