terça-feira, 3 de setembro de 2019

JACOB DO BANDOLIM E O CHORO - II


PLANGE, PLANGE, VIOLÃO,
COMO MEU CORAÇÃO.
AFASTA, BANDOLIM,
ESSA TRISTEZA DE MIM!



Antes, havia a cumplicidade das ruas, o fundo de quintal a noite de luar: a dose sapeca do choro era exercida cotidianamente pelos membros da baixa classe média da velha São Sebastião do Rio de Janeiro. Em seus encantos e mistérios, e às vésperas da proclamação da República, o chorinho revelava certa maleabilidade e flexibilidade social que o crescimento das cidades de antigamente permitia, em oposição às formas rígidas e violentas do latifúndio e da escravidão.
No Rio de Janeiro, principalmente, a emergência e o crescimento de uma classe média iriam facilitar o intercâmbio de a síntese entre o tecido próprio da grande música ocidental (as notas que vinham da colonização europeia) e a vigorosa pulsação rítmica de origem negra – linguagens musicais que se encontravam divorciadas na grande propriedade de monocultura. Dos diversos personagens inscritos  nesta nova classe social urbana – amanuenses, servidores públicos municipais, pequenos comerciantes retalhistas, músicos de bandas militares, carteiros, condutores de bonde, etc.  – o choro extrairia seus mais destacados praticantes, que recebiam o batismo expressivo de “chorões”. Aliás, como aponta Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, em seu livro  O Choro – Reminiscências de chorões antigos 1936, a prática do chorinho não era exercida profissionalmente: isto chama atenção para sua intimidade com dia-a-dia cultural desses brasileiros, em seu periódico compromisso com o prazer de tocar. É  na alma encantadora das ruas, como gostava de dizer o cronista de costumes cariocas João do Rio , e na maneira de viver dessa modesta classe média sustentada pelos senhores da terra, ainda que indiretamente) que a tradição musical europeia iria se encontrar com o dengo e a malícia rítmica do “ mulato democrático do litoral”. Dessa aproximação surgiria um gênero de música instrumental brasileiro, o mais elaborado e criativo, e o que permite uma maior rebeldia improvisativa: o chorinho.

SOB O SIGNO DA ESPONTANEIDADE



O batuta Pixinguinha costumava dizer que “choro é um negócio sacudido e gostoso”, e nisso ninguém bota reparo. Agora quando se trata de falar das raízes desse gênero  musical e da origem da palavras “choro” para designá-lo, a historiografia só admite uma certeza: a controvérsia.
A versão mais difundida é aquela que aceita o termo “choro” como uma corruptela  de “xolo”, espécie de baile com canto e dança que os negros escravos realizavam nos latifúndios, por ocasião de festas como a  de São João por exemplo.  Confundida com a sua parônima portuguesa, virou “xoro” e, chegando à cidade, foi grafada “choro”. Investindo contra essa postura, o pesquisador José Ramos Tinhorão argumenta que o nome “choro” deriva do tom plangente e melancólico  fornecido pelos violões na execução de uma peça. (Os tocadores de violão fixaram certas passagens modulatórias, as quais, por se movimentarem na sonoridade mais grave do violão, ganhariam o apelido de “baixaria”. “Pois seriam esses esquemas modulatórios, partindo do bordão para descaírem quase sempre rolando pelos sons graves, em tom plangente, os responsáveis  pela impressão de melancolia que acabaria conferindo o nome de choro a tal maneira de tocar, e a designação de chorões aos músicos de tais conjuntos, por extensão”,  justifica Tinhorão, em sua Pequena História da Música Popular).
Mais recentemente, o pesquisador Ary Vasconcellos oferece nova explicação: a palavra “choro” derivaria de “choromeleiros” ou “charameleiros”, corporação de músicos que teve atuação importante no período colonial brasileiro. Os choromeleiros não executavam apenas a charamela, mas outros instrumentos de sopro. Para o povo, naturalmente, qualquer conjunto instrumental deveria ser sempre os choromeleiros, expressão que acabou sendo encurtada para choros.
De qualquer forma, a fixação do grupo de instrumentistas que forneceria a estrutura do futuro “regional” – composto do “terno” violão (responsável  pela marcação), cavaquinho (“centro”, respondendo também pelo ritmo) e flauta (solo; às vezes substituída pela oficlide, espécie de antepassado rústico  do saxofone) – resulta da evolução de dois tipos de ajuntamentos musicais (não raro compostos pelos mesmos músicos) que perambulavam pelas festas e noites cariocas do século XIX. Um deles, que reunia os chorões para as serenatas, utilizava-se mais dos instrumentos de cordas (embora, de vez em quando, se pudesse ouvir os queixumes de uma flauta), que harmonizavam o acompanhamento para o canto triste e lamentoso do seresteiro; o outro, com um discurso sonoro quase exclusivamente instrumental, fornecia música de dança para as festas religiosas e para os aniversários , batizados, casamentos, nas casas de família dos bairros da classe média empobrecida. Era nessas ocasiões que os instrumentistas procuravam imprimir sua forte intuição rítmico-melódica e sua deliciosa habilidade técnica nas polcas, shottischs, mazurcas e valsas que frequentavam a vidinha musical da Sede do Império e futura Capital  da Primeira República. Isso parece confirmar a opinião de alguns  historiadores, segundo a qual o choro, antes de adquirir o estatuto de gênero musical, circulava apenas como maneira de tocar.  E foi durante as atividades desse modo  chorado de executar que começou  a se desenvolver um tipo de diálogo  entre o instrumento solista e os responsáveis pela harmonia, cujo ato final era a “derrubada” – quando o acompanhamento  não conseguia mais seguir o espicaçamento e a esperteza do improviso. Já o título de uma das peças precursoras do gênero, Caiu, não disse  de Viriato Ferreira da Silva, aludia a esse “debate” entre os instrumentos.   Apanhei-te Cavaquinho (de Ernesto Nazareth),Cuidado Colega(de Pixinguinha e Benedito Lacerda), e outras são exemplos nítidos de que o chorinho reproduzia-se sob o signo da espontaneidade e de uma acentuada liberdade criativa.
Nos primeiros anos do século XX, o choro amadurece em gênero; constrói-se sua gramática. Para Adhemar Nóbrega, estudioso dos choros de Villa-Lobos, o gênero hoje conhecido como tal é “uma peça em compasso binário, de movimento moderato para vivo, construído com figurações da polca e do schottisch, mescladas à síncope afro-brasileira” e/ou, ainda, “com a linha melódica expressa em semicolcheias corridas”.
No chorinho, quase sempre, sobressai  um instrumento solista, que capricha no virtuosismo, numa pererequice tonal, com modulações inesperadas. Fracionada comumente em três partes (concebidas em três tonalidades), a sequência do chorinho apresenta o corte típico do rondó: primeira parte/segunda/repete-se a primeira/terceira/retorna-se à primeira (A/B/A/C/A).
Com o desenvolvimento das rádios e do mercado de discos, e com a crescente hegemonia do samba no panorama da música popular brasileira, a partir da segunda década do século XX, o choro foi deixando de ser requisitado como atividade musical específica, transformando seus praticantes em regionais de acompanhamento de cantores. A inevitável  profissionalização dos músicos iria modificar sensivelmente o exercício ritualístico do choro, antes realizado sob a égide da espontaneidade e do prazer








NEWTON NAZARETH
AVE MARIA - SHUBERT
solo de bandolim


Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural - 1978
Imagens: GOOGLE
Videos: Youtube


Nenhum comentário:

Postar um comentário