PLANGE, PLANGE,
VIOLÃO,
COMO MEU CORAÇÃO.
AFASTA, BANDOLIM,
ESSA TRISTEZA DE MIM!
Antes,
havia a cumplicidade das ruas, o fundo de quintal a noite de luar: a dose
sapeca do choro era exercida cotidianamente pelos membros da baixa classe média
da velha São Sebastião do Rio de Janeiro. Em seus encantos e mistérios, e às
vésperas da proclamação da República, o chorinho revelava certa maleabilidade e
flexibilidade social que o crescimento das cidades de antigamente permitia, em
oposição às formas rígidas e violentas do latifúndio e da escravidão.
No Rio de Janeiro,
principalmente, a emergência e o crescimento de uma classe média iriam
facilitar o intercâmbio de a síntese entre o tecido próprio da grande música
ocidental (as notas que vinham da colonização europeia) e a vigorosa pulsação
rítmica de origem negra – linguagens musicais que se encontravam divorciadas na
grande propriedade de monocultura. Dos diversos personagens inscritos nesta nova classe social urbana – amanuenses,
servidores públicos municipais, pequenos comerciantes retalhistas, músicos de
bandas militares, carteiros, condutores de bonde, etc. – o choro extrairia seus mais destacados
praticantes, que recebiam o batismo expressivo de “chorões”. Aliás, como aponta
Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, em seu livro O Choro – Reminiscências de chorões antigos 1936, a prática do chorinho não era exercida
profissionalmente: isto chama atenção para sua intimidade com dia-a-dia
cultural desses brasileiros, em seu periódico compromisso com o prazer de
tocar. É na alma encantadora das ruas,
como gostava de dizer o cronista de costumes cariocas João do Rio , e na
maneira de viver dessa modesta classe média sustentada pelos senhores da terra,
ainda que indiretamente) que a tradição musical europeia iria se encontrar com
o dengo e a malícia rítmica do “ mulato democrático do litoral”. Dessa
aproximação surgiria um gênero de música instrumental brasileiro, o mais
elaborado e criativo, e o que permite uma maior rebeldia improvisativa: o
chorinho.
SOB
O SIGNO DA ESPONTANEIDADE
O
batuta Pixinguinha costumava dizer que “choro é um negócio sacudido e gostoso”,
e nisso ninguém bota reparo. Agora quando se trata de falar das raízes desse
gênero musical e da origem da palavras
“choro” para designá-lo, a historiografia só admite uma certeza: a
controvérsia.
A
versão mais difundida é aquela que aceita o termo “choro” como uma
corruptela de “xolo”, espécie de baile
com canto e dança que os negros escravos realizavam nos latifúndios, por
ocasião de festas como a de São João por
exemplo. Confundida com a sua parônima
portuguesa, virou “xoro” e, chegando à cidade, foi grafada “choro”. Investindo
contra essa postura, o pesquisador José Ramos Tinhorão argumenta que o nome “choro” deriva do
tom plangente e melancólico fornecido
pelos violões na execução de uma peça. (Os tocadores de violão fixaram certas
passagens modulatórias, as quais, por se movimentarem na sonoridade mais grave
do violão, ganhariam o apelido de “baixaria”. “Pois seriam esses esquemas
modulatórios, partindo do bordão para descaírem quase sempre rolando pelos sons
graves, em tom plangente, os responsáveis
pela impressão de melancolia que acabaria conferindo o nome de choro a tal maneira de tocar, e a
designação de chorões aos músicos de
tais conjuntos, por extensão”, justifica
Tinhorão, em sua Pequena História da Música Popular).
Mais
recentemente, o pesquisador Ary Vasconcellos oferece nova explicação: a palavra
“choro” derivaria de “choromeleiros” ou “charameleiros”, corporação de músicos
que teve atuação importante no período colonial brasileiro. Os choromeleiros
não executavam apenas a charamela, mas outros instrumentos de sopro. Para o
povo, naturalmente, qualquer conjunto instrumental deveria ser sempre os choromeleiros, expressão que acabou
sendo encurtada para choros.
De
qualquer forma, a fixação do grupo de instrumentistas que forneceria a
estrutura do futuro “regional” – composto do “terno” violão (responsável pela marcação), cavaquinho (“centro”,
respondendo também pelo ritmo) e flauta (solo; às vezes substituída pela
oficlide, espécie de antepassado rústico
do saxofone) – resulta da evolução de dois tipos de ajuntamentos
musicais (não raro compostos pelos mesmos músicos) que perambulavam pelas
festas e noites cariocas do século XIX. Um deles, que reunia os chorões para as
serenatas, utilizava-se mais dos instrumentos de cordas (embora, de vez em
quando, se pudesse ouvir os queixumes de uma flauta), que harmonizavam o
acompanhamento para o canto triste e lamentoso do seresteiro; o outro, com um
discurso sonoro quase exclusivamente instrumental, fornecia música de dança
para as festas religiosas e para os aniversários , batizados, casamentos, nas
casas de família dos bairros da classe média empobrecida. Era nessas ocasiões
que os instrumentistas procuravam imprimir sua forte intuição rítmico-melódica
e sua deliciosa habilidade técnica nas polcas, shottischs, mazurcas e valsas
que frequentavam a vidinha musical da Sede do Império e futura Capital da Primeira República. Isso parece confirmar
a opinião de alguns historiadores,
segundo a qual o choro, antes de adquirir o estatuto de gênero musical,
circulava apenas como maneira de tocar.
E foi durante as atividades desse modo
chorado de executar que começou a
se desenvolver um tipo de diálogo entre
o instrumento solista e os responsáveis pela harmonia, cujo ato final era a
“derrubada” – quando o acompanhamento
não conseguia mais seguir o espicaçamento e a esperteza do improviso. Já
o título de uma das peças precursoras do gênero, Caiu, não disse de Viriato Ferreira da Silva, aludia a esse
“debate” entre os instrumentos. Apanhei-te Cavaquinho (de Ernesto Nazareth),Cuidado Colega(de Pixinguinha e Benedito
Lacerda), e outras são exemplos nítidos de que o chorinho reproduzia-se sob o
signo da espontaneidade e de uma acentuada liberdade criativa.
Nos
primeiros anos do século XX, o choro amadurece em gênero; constrói-se sua
gramática. Para Adhemar Nóbrega, estudioso dos choros de Villa-Lobos, o gênero
hoje conhecido como tal é “uma peça em compasso binário, de movimento moderato para vivo, construído com
figurações da polca e do schottisch, mescladas à síncope afro-brasileira” e/ou,
ainda, “com a linha melódica expressa em semicolcheias corridas”.
No
chorinho, quase sempre, sobressai um
instrumento solista, que capricha no virtuosismo, numa pererequice tonal, com
modulações inesperadas. Fracionada comumente em três partes (concebidas em três
tonalidades), a sequência do chorinho apresenta o corte típico do rondó:
primeira parte/segunda/repete-se a primeira/terceira/retorna-se à primeira
(A/B/A/C/A).
Com o desenvolvimento
das rádios e do mercado de discos, e com a crescente hegemonia do samba no
panorama da música popular brasileira, a partir da segunda década do século XX,
o choro foi deixando de ser requisitado como atividade musical específica,
transformando seus praticantes em regionais de acompanhamento de cantores. A inevitável profissionalização dos músicos iria modificar
sensivelmente o exercício ritualístico do choro, antes realizado sob a égide da
espontaneidade e do prazer
NEWTON NAZARETH
AVE MARIA - SHUBERT
solo de bandolim
Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural - 1978
Imagens: GOOGLE
Videos: Youtube
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