sábado, 14 de agosto de 2021

ARY BARROSO - PARTE I - A TORTURA DO PIANO



 ARY BARROSO 


NÃO PERCAM! O ESPETÁCULO MAIS SENSACIONAL DE TODOS OS TEMPOS!

HOJE! GRANDE FUNÇÃO DO CIRCO BARROSO!

- Façam fila, façam fila! Cuidado para não derrubar o pavilhão!  O espetáculo já vai começar!

Na confusão, o porteiro vai recebendo os ingressos. Tarefa difícil: tem que conferir o número de palitos de fósforo, ou consultar a coleção para ver se já tem aquela bandeira. No Circo Barroso só se entra pagando dez palitos, ou contribuindo para a coleção de caixinhas de fósforos impressas com bandeiras de países.

As crianças acomodam-se nos caixotes que servem de arquibancada, na espera impaciente do espetáculo. Primeiro número: Ataul Brandão exibe-se em seu estranho trapézio, feito de uma gangorra. Em seguida, a grande atração: as feras domesticadas. Sobre um arame esticado, Loló, o gato, passeia de um lado para outro, com passos elegantes e sob a ameaça de pancadas do domador. Outro felino é obrigado a saltar através de um círculo de arame. Aplausos, batidas de pés, gritaria, terminou o “espetáculo mais sensacional de todos os tempos”.  Na saída, o inevitável acidente: um menino derruba a “lona”, sujando os lençóis  roubados da cômoda da Tia Ritinha. Ary, proprietário, bilheteiro e domador, reclama, o menino responde, quase sai briga. Mas logo o grupo se dissolve: está na hora da “pelada” no campinho ao lado da igreja. Ary guarda rapidamente os lençóis  e, segurando os óculos, sai correndo para não perder o lugar de goleiro.O menino Ary Barroso é assim: adora o circo de cavalinhos, a ponto de improvisar o seu próprio; com os óculos presos atrás das orelhas, pretende ser um bom goleiro míope; gosta de andar pelas ruas da cidadezinha, em busca de uma nova brincadeira, pronto para qualquer briga. O que não lhe agrada são as aulas diárias de piano que Tia Ritinha insiste em lhe dar. Três horas sentado num banquinho tocando “ cachorro vai, cachorro vem”  transformaram-se em tortura. 
Ary mora em Ubá, Minas Gerais, com a avó materna, Dona Gabriela Augusta de Resende, e tia Ritinha (Rita Margarida de Resende). Quando tinha seis anos (nasceu a 7 de novembro de 1903) perdeu a mãe, Angelina de Resende Barroso, vítima de tuberculose aos 22 anos.  O pai, Dr. João Evangelista Barroso, deputado estadual, promotor público em Ubá,  líder da campanha civilista de Rui Barbosa, duas semanas depois sucumbiu à mesma doença. Ary guardaria para toda a vida um grande medo da tuberculose. 
Dona Gabriela e Tia Ritinha eram muito religiosas e queriam que Ary se tornasse padre. Conseguiram até que ele aprendesse a ajudar  missa. Mas não puderam evitar que, numa noite, ele entrasse na igreja e amarrasse a corda do sino na cauda de um cavalo que mansamente pastava no campinho. E o animal deu alegres badaladas enquanto espantava as muriçocas com o rabo...
Avó e tia não possuíam recursos. Enquanto estudava, Ary precisava ganhar algum dinheiro. E assim, com apenas doze anos, foi ajudar Tia Ritinha a fazer no piano o fundo musical para as aventuras de Mae West e Tim McCoy, no cinema Ideal. Ganhava 5$000  por noite. Mais tarde passou a 30$000 por dia, trabalhando como caixeiro da loja  A BRASILEIRA,  onde chegou a permanecer durante seis meses.
Terminado o primário na escola do Professor Cícero Galindo, foi para o Ginásio São José. Não demorou, foi mandado para o ginásio da cidade de Viçosa. De lá foi para o de Rio Branco, de onde foi expulso por ter fugido do dormitório para ir a um baile.  O mesmo aconteceu na cidade de Leopoldina: 24 horas depois de chegar, tomou uma bebedeira com um novo colega e a punição foi imediata. Só conseguiu terminar o ginásio em Cataguases, na escola do Professor Antônio Costa. A esta altura já era um rapaz que ficava no Bar do Camilo tomando cerveja com Chico Bomba e Franco, ferroviários da Leopoldina, defendia o gol do Botafogo Futebol Clube de Ubá e desfilava no bloco Ubaenses e Estrelas para mágoa do resto da família, todos membros do bloco Dragões e Opalas. Não ficavam aí os problemas dos Resende: Ary arranjou uma noiva que não agradava à família e estava disposto a casar, embora tivesse só 17 anos. Tinha até o dinheiro: recebera 40:000$000 (quarenta contos de réis) de herança do Tio Sabino Barroso ( político influente que já fora até ministro da Fazenda). Ary era teimoso: não casou, cedendo à pressão familiar, mas abandonou Ubá, viajando para o Rio de Janeiro em 1921.

Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA  
Abril Cultural – 2ª Edição – 1977
Fotos:  GOOGLE


ARY BARROSO - PARTE II- VIDA DIFÍCIL DE BACHAREL


VIDA DIFÍCIL DE BACHAREL

Com dinheiro no bolso, morando numa pensão de luxo, a vida estava fácil para o jovem Ary. Fez vestibular para a Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, sonhando com um futuro sem dificuldades.  Mas os melhores restaurantes, as melhores bebidas, as roupas mais elegantes acabaram com os 40:000$000 da herança. De Ubá, a família simplesmente informou que não podia sustentá-lo . Não havia alternativa: Ary teria que trabalhar.
Ainda bem que tia Ritinha insistira com suas aulas de piano. Como nos tempos de Ubá, Ary voltou a fazer o fundo musical para os filmes mudos. Das 14  às 18 h no cinema Íris; das 20 às 22 h no Odeon. O esforço rendia-lhe 24$000 por dia, uma pequena fortuna, na época.
Era 1923 e Ary, de manhã cursava o segundo ano de direito. Trabalhando o dia inteiro, não tinha tempo para estudar. Consequência: seu curso foi interrompido e retomado várias vezes.; Ary formou-se somente em 31 de janeiro de 1930, na mesma turma do cantor Mário Reis. Bom pianista, logo surgiram outras oportunidades. Ainda em 1923, tocou na orquestra da peça LUAR DE PAQUETÁ,  de Freire Júnior, encenada pela Companhia Alda Garrido no Teatro Carlos Gomes. Deixava de ser o pianista solitário das sessões de cinema para integrar-se nas grandes orquestras: a Trianon, de Alarico Paes Leme, a American-Jazz, de José Rodrigues, a Orquestra de J. Thomaz, a Jazz-Band Sul-Americana, de Romeu Silva. Esta última era a única em que os músicos vestiam casaca, tocando nos lugares frequentados pela alta sociedade do Rio, apreciadora da música americana.  O jazz dominava e Ary, de tanto ouvir, através de discos, os melhores pianistas do gênero, acabou se tornando também excelente intérprete.  Aliás, desde os tempos de Ubá que ele gostava de improvisar, nunca se limitando à linha melódica original.Saltando de orquestra em orquestra, Ary viu-se de repente sem emprego. Todas as vagas de pianista estavam ocupadas em bailes a 10$000 por hora, a metade do que ganhava em orquestras.
A situação só melhorou quando, em 1928, foi contratado pela orquestra do Maestro Spina, de São Paulo, para uma temporada em Santos e Poços de Caldas.  Ficou oito meses nas montanhas, tocando piano e fazendo estação de águas... Aproveitou também para se lançar decisivamente na composição, terreno em que já fizera alguns ensaios.

DA GROTA FUNDA AO RANCHO FUNDO

Ary  passou na Casa Carlos Wehrs (editora de músicas) para saber se alguém havia se interessado por suas composições. O gerente De  Vicenzi  informou:  “ O Dr. Olegário Mariano e o Luís Peixoto levaram algumas músicas suas, Ary.  Dê um pulo ao Teatro Recreio e fale com eles”.Lá ensaiavam Laranja da China,  revista de Olegário Mariano, dirigida por Luís Peixoto. Ary timidamente apresentou-se ao diretor, que lhe deu a boa notícia: duas músicas suas tinham sido incluídas na peça (VAMOS DEIXAR DE INTIMIDADE  e  VOU À PENHA)  e seriam interpretadas por Araci Cortes e Zaíra Cavalcanti.  Além disso, gostando da maneira de tocar piano de Ary, influenciada pelos pianistas americanos, Luís perguntou: “ Você sabe fazer foxtrotes?”  Ary disse que sabia, embora jamais houvesse feito um. Então traga-me  para o ensaio de amanhã, à 1 da tarde, seis foxtrotes.

E agora, que fazer?  Ary estava com violenta furunculose e ardia em febre. Mas não podia perder a oportunidade.  Foi para casa, uma pensão da Rua André Cavalcanti, e sentou-se ao piano. Enfraquecido e tonto, esforçou-se para se concentrar.  Finalmente, já noite, começou o trabalho. Além do estado de saúde, tinha que suportar o protesto dos vizinhos, que não podiam dormir com o barulho. Ás 5 da manhã completou o último fox e à 1 em ponto, com enormes olheiras,  estava no Teatro Recreio, esperando ansioso o julgamento de Luís Peixoto.
O esforço foi compensado. Peixoto gostou das músicas e logo colocou letra nos seis foxtrotes. Um deles, FEBRE AZUL, ficou  famoso por motivos extramusicais. Durante o quadro em que era apresentado, as coristas espargiam sobre os espectadores uma colônia recém-lançada no mercado, causando protestos dos cavalheiros. 
Com Laranja da China, Ary Barroso, que fizera sua primeira música – DE LONGE – aos quinze anos, tornou-se conhecido como compositor. VOU À PENHA foi gravada, no fim de 1928, por seu colega de faculdade Mário Reis.  O Teatro Recreio  ofereceu-lhe um contrato de 1:500$000 por mês  para musicar futuras peças, como Brasil do Amor, onde estreou Sílvio Caldas, cantando Faceira, e É do balaco-baco, revista do caricaturista J. Carlos. Para esta última, Ary fez uma música que recebeu letra de J. Carlos, com o título de NA GROTA FUNDA: “ Na grota funda, na virada da montanha, só se fala na façanha do mulato da Remunda...” O compositor Lamartine Babo, assistindo à estreia, ficou impressionado com a melodia. No dia seguinte, ao se apresentar com o Bando  de Tangarás na Rádio Educadora, lançou, sem pedir licença, a composição de Ary  com nova letra: “ No Rancho Fundo, bem pra lá no fim do mundo, onde a dor e a saudade contam coisas da cidade...”  Começava a parceria Ary-Lamartine  (Palmeira triste, Na virada da montanha, Grau Dez)  e a briga com J. Carlos , pois o caricaturista pensou que Ary dera a música para Lamartine e nunca aceitou explicações. Não foi o único caso de troca de letra. Em 1932 para uma revista de Luís Peixoto e Freire Júnior, Ary apresentou uma composição que dizia: “Bahia/cheguei hoje da Bahia/ Trouxe uma figa de Guiné...”  Luís Peixoto não gostou e escreveu nova letra: “ Maria/ o teu nome principia/ na palma da minha mão...”






Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Abril Cultural – 2ª Edição – 1977
Fotos:  GOOGLE

ARY BARROSO - PARTE III - PRÊMIO DE CONCURSO: CASAMENTO - O HOMEM DOS SETE MICROFONES

 

De pensão em pensão, Ary foi parar na Rua André Cavalcanti, nº 50, e gostou muito do lugar. Não só das acomodações, mas também da filha da dona da pensão.  Era 1929 e Ary Barroso resolveu casar. Mas onde estava o dinheiro para montar a casa, se seu salário no teatro mal dava pra os gastos diários?

O compositor Eduardo Souto  - que muito influenciou a obra de Ary  -  sugeriu uma solução: ganhar o concurso de músicas carnavalescas que a Casa  Edison  estava promovendo.  Ary gostou da ideia e escreveu a marchinha DÁ NELA,  cuja letra era um violento ataque às mulheres linguarudas: “ Esta mulher há muito tempo me provoca.../ Dá nela! Dá nela! É perigosa, fala mais que pata-choca.../ Dá nela! Dá nela!.   No dia 18 de janeiro de 1930, o público que lotava o Teatro Lírico vibrava com as músicas de Pixinguinha, Sinhô, Donga.  Mas DÁ NELA sobrepujou  a todas e os novecentos votantes da plateia deram-lhe a vitória com trezentos votos de diferença para a segunda colocada.  Gravada por Francisco Alves, foi o maior sucesso do carnaval de 1930.
Os 5:000$000 de prêmio foram mais do que suficientes para Ary pagar as despesas com o diploma de bacharel em direito – recebido a 31 de janeiro – e casar com Ivone Belfort de Arantes a 26 de fevereiro. Mas o dinheiro que ganhava tocando piano e compondo não permitiria uma vida folgada para o casal. 

O HOMEM DOS SETE MICROFONES

Com o diploma debaixo do braço, Ary foi a Belo Horizonte, onde um tio, o Deputado Alarico Barroso, lhe conseguiu  uma  nomeação para juiz municipal de Nova Rezende. O futuro estava garantido. Só que quinze dias depois Ary voltou para o Rio: chegara à conclusão de que não nascera para juiz, que sua vida estava definitivamente ligada à música.

O tenor Machado del Negri, pronto para ensaiar um trecho de Marta, ópera de Flotow, perguntou para Renato Murce, produtor do programa Horas do Outro Mundo:
- Onde está o pianista?
Renato apresentou Ary e o tenor não gostou:  -Este rapaz é do samba. Ele não conhece música clássica! - Coloca a partitura no piano que ele acompanha.
Ary tocou perfeitamente e o tenor teve que pedir desculpas. Era 1932 e Ary  Barroso ingressava na Rádio Philips a convite de Renato Murce.  A princípio simples pianista, logo se tornaria  locutor, humorista, animador e locutor esportivo.
Tudo começou com o terceiro lugar conseguido num concurso de locutores. Ficou trabalhando na Philips e logo arranjou briga: criticou pelo microfone Sodré Viana e Henrique Pongetti, que haviam elogiado um filme em que a rumba aparecia como música brasileira. Formou-se uma polêmica, como tantas outras que Ary  promoveria mais tarde.
Depois da Philips, Ary foi para a Mayrink Veiga, e de lá para a Cosmos, em São Paulo.  Relembrando o tempo em que contava piadas no intervalo das revistas que musicava, transformou-se em humorista, trabalhando com Luís Peixoto e Gagliano Netto. Voltando para o Rio, foi para a Cruzeiro do Sul. Seus companheiros:  Heber de Bôscoli, Paulo Roberto e Edmundo Maia, que era o “sonoplasta”, imitando trovão, latido de cachorro, etc...
Os programas de calouros de Ary Barroso ficaram famosos pelos disparates que os candidatos diziam e pelo gongo, inovação de Ary que, no princípio, quando o programa começou na Rádio Cruzeiro do Sul (1937), era um sino.  Ary brincava com os calouros, fazendo os ouvintes se divertirem com os absurdos ditos ao microfone. Quando passou para a Tupi, instituiu o gongo, que era tocado pelo auxiliar de portaria da rádio, Macalé. O calouro desafinava e Ary fazia um discreto gesto – coçar a cabeça, segurar o botão do paletó – e Macalé já sabia: gongo nele!
Preocupado em defender a música brasileira, não gostava quando um calouro cantava Fox, bolero ou tango. E exigia que anunciassem o autor da música, procurando prestigiar os compositores. Essa exigência motivou várias confusões engraçadas, algumas com seus próprios sambas. O calouro anunciava que ia cantar um “sambinha” de autor desconhecido: AQUARELA DO BRASIL... Ou se espantava: “ Ué, RISQUE não é da Linda Batista?” . Outro, que ia cantar composição de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, anunciou apenas o nome do poeta. Ary perguntou: “ e o Tom?”  Resposta: “ Sol maior”. 
Cantores famosos, como Angela Maria e Lúcia Alves começaram em seu programa, que chegou a ser transmitido pela televisão. Mas, Ary, desgostoso com o pouco tempo que lhe davam na TV Tupi (25 minutos), acabou encerrando o programa definitivamente.





Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Abril Cultural – 2ª Edição – 1977
Fotos:  GOOGLE

 



ARY BARROSO - PARTE IV- UM SAMBA CHEIO DE INOVAÇÕES

 

As múltiplas atividades que desenvolvia para se sustentar não sufocaram o compositor Ary Barroso. Pelo contrário: tornou-se um dos mais férteis criadores de nossa música, revelando a cada ano novos sucessos. Em 1931, Silvio Caldas gravava FACEIRA, BAHIA, UM SAMBA EM PIEDADE. Nos anos seguintes, o mesmo cantor lança MARIA, SEGURA ESTA MULHER, EU VOU PRO MARANHÃO, TU, POR CAUSA DESSA CABOCLA.  Outras músicas surgiam na voz de Elisinha Coelho, cuja interpretação de NO RANCHO FUNDO Ary considerava das melhores feitas com suas composições, ao lado de CAMISA AMARELA, por Aracy de Almeida. 
Em 1934, Ary foi à Bahia como pianista da Orquestra Napoleão Tavares e ficou encantado com a “boa terra”. Baianas, comidas, ladeiras seriam revividas mais tarde em algumas de suas músicas mais conhecidas: NO TABULEIRO DA BAIANA, QUANDO EU PENSO NA BAHIA, NA BAIXA DO SAPATEIRO, OS QUINDINS DE IAIÁ.  Exceção desta última, gravada por Ciro Monteiro, as outras foram interpretadas por Carmen Miranda, a “baianinha” que dividia com Francisco Alves a preferência do público da época.  BONECA DE PIXE (letra de Luís Iglesias) e COMO “VAES” VOCÊ  também foram gravadas por Carmen Miranda, que se tornara uma grande amiga de Ary. 
Numa noite chuvosa de 1939, Ary conversava com a esposa e um casal de cunhados quando se dirigiu para o piano, dizendo: “ Vou fazer um samba cheio de inovações...” Começou imitando no teclado a batida de um tamborim e meia hora depois música e letra estavam prontas. O cunhado não gostou da letra: “ COQUEIRO QUE DÁ COCO” QUE QUERIA QUE ELE DESSE?”  Ary não se importou com a crítica. Estava satisfeito com a letra que exaltava o bom e o belo do Brasil, contrapondo-se às tradicionais estórias de malandragem, bebida, dinheiro, amores fracassados que dominavam o samba. Levou a nova composição para uma peça de Edmundo Lys. Cantada por Aracy Cortes, passou despercebida. Pouco depois Aracy de Almeida desistia de gravá-la  porque exigia grande orquestra em vez de regional. A música voltou ao teatro em Joujoux e Balangandãs, de Henrique Pongetti, interpretada por Cândido Botelho. Desta vez foi muito bem recebida pelo público e logo levada a disco por Francisco Alves, ocupando os dois lados de um 78 rotações. Era outubro de 1939.  Desde então  AQUARELA DO BRASIL  tornou-se sucesso, tendo mais de cem gravações no Brasil, sem falar nas do exterior, dos Estados Unidos à França, do México às Filipinas, da Alemanha à Nova Zelândia.
- Naturalmente em princípio eu sofria influência do Sinhô. Seguida pela fase que eu chamo de Eduardo Souto. Foram estes dois que me acompanharam musicalmente no começo da minha carreira.  Depois eu consegui me libertar e criei um estio todo pessoal, cujo início poderá ser marcado com FACEIRA (...) . Nessa fase eu era mais ingênuo, mais puro, mais autêntico. Depois vim a criar um estilo que chamaram de “exaltação”.  Por que, não sei. É a fase em que falo do Brasil grandioso, nas suas várias facetas, de beleza, de riquezas. Não tem nada de exaltação. Começa naturalmente com Aquarela do Brasil.
NA BAIXA DO SAPATEIRO, gravado  antes, já prenunciava o estilo grandiloquente das novas composições de Ary, como  Brasil Moreno  e Terra Seca, samba que considerava sua obra-prima. 
Mas, foi Aquarela do Brasil  que lhe deu fama e... dólares. Uma história que começa em Belém do Pará quando um grupo de americanos quis ouvir música brasileira e fez o pedido para o péssimo quarteto que tocava no restaurante do hotel. Saiu uma Aquarela meio deformada, mas o suficiente para que o americano mais importante do grupo saísse assobiando trechos da melodia e não a esquecesse até chegar ao Rio de Janeiro.






O americano era Walt Disney, que vinha fazer um desenho num país tropical. E, para fundo musical das aventuras de Zé Carioca em Alô, Amigos, escolheu a composição que ouvira primeiro em Belém e depois no Rio.  Entusiasmado com  as músicas de Ary, mais tarde, incluiu NO TABULEIRO DA BAIANA  e  OS QUINDINS DE IAIÁ no desenho VOCÊ JÁ FOI À BAHIA?.   
Foi o suficiente para que Ary ganhasse notoriedade internacional e fosse chamado a Hollywood para fazer a música de outros filmes. Em princípios de 1944 ia pela primeira vez aos Estados Unidos, compondo RIO DE JANEIRO para o filme BRASIL,  música que chegou a ser indicada para o Oscar. No fim do mesmo ano voltou à América do Norte, onde permaneceu oito meses ganhando mil dólares por semana. Desta vez compôs a canção-tema do filme TRÊS  GAROTAS DE AZUL.
E jamais esqueceu um telefone de Los Angeles CR-52354. Através dele ouviu a voz inconfundível da velha amiga Carmen Miranda, que se instalara nos Estados Unidos havia cinco anos. Ary voltaria ainda uma vez, em 1948, para musicar O TRONO DAS AMAZONAS, filme que não chegou a ser completado.

 


 
Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA   
Abril Cultural- 2ª edição - 1977
Fotos:  GOOGLE

ARY BARROSO - PARTE V - ARY - HOMEM PÚBLICO - EM HOLLYWOOD COMPOSITOR, VEREADOR NO RIO.


 

Carlos Lacerda foi o candidato a vereador mais votado no Rio de Janeiro em 1946. Logo depois dele, Ary Barroso, que entrara para a UDN  convidado por Heitor Beltrão e Mário Martins. Levava para a Câmara seu talento de polemista e, para a política, a mesma paixão com que irradiava os jogos de futebol. 
A grande batalha que venceu foi a da construção do Estádio do Maracanã. Lacerda queria que ele fosse construído na Restinga de Jacarepaguá , obstruindo outras iniciativas. Mas Ary conseguiu que o local aprovado fosse o do terreno do Derby Club (onde hoje está o “maior do mundo”).  As verbas eram poucas, mas Lacerda era contra a venda de cadeiras cativas.
Ary mobilizou todas as armas para vencer a batalha. Para obter o apoio na bancada majoritária (Partido Comunista, dezoito vereadores) pediu, com João Lyra Filho, uma pesquisa de IBOPE. Resultado: 88 % da população apoiava a construção do estádio. E o Maracanã foi construído.  A tempo de ver o Brasil perder a Copa de 1950...
Ary sempre foi um batalhador, defendendo apaixonadamente as coisas que julgava certas. Esteve sempre na linha de frente da defesa do direito autoral.  Era conselheiro da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), quando sentiu, com outros compositores, a necessidade de criar uma entidade que cuidasse especificamente dos autores de música. Fundaram (1942) a União Brasileira de Compositores, da qual Ary foi o primei presidente.
Em 1946 surgia a SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Editores de Música), à  qual Ary logo aderiu, sendo praticamente seu primeiro presidente. Pelo trabalho que realizou em defesa do direito autoral, foi aclamado Presidente de Honra e Conselheiro Perpétuo dessa entidade.
O resultado dessa luta foi benéfico para todos os autores de música no Brasil. O próprio Ary, pela popularidade e pelo imenso número de gravações de suas músicas, aparecia no no anuário  da SBACEM de1957 como o segundo compositor que mais recebera direitos autorais( o primeiro: Haroldo Lobo).
Ao lado da luta pelos compositores, Ary esteve sempre em campo para defender a própria música brasileira. Prestigiava os calouros que cantavam nossa música, tinha horror aos “acordes americanos em samba”,  nas várias vezes em que foi ao exterior preocupou-se em levar o samba autêntico. Quando fez RISQUE, em 1952, música que representava uma volta aos sambas menos pretensiosos, teve que brigar para que não fosse gravado em ritmo de bolero.
No início da década de 60 Ary era um homem descontente e amargurado com os ritmos da nossa música e do gosto popular. “Nunca o samba esteve tão por baixo. Chegamos à era do bolero, do rock, chá-chá-chá, twist e outras torceduras”.  A princípio não gostava da bossa-nova e, diante das considerações do amigo Davi Nasser, explicando que eles estavam velhos e superados, gritava: “ Sei disso. Sei disso. Mas por que não tocam a minha música? Não é boa também?” O que não o impediu de colocar A FELICIDADE,  de Tom e Vinicius, entre as melhores músicas populares de todos os tempos.
Ary era assim: impulsivo, orgulhoso, sempre pronto a criticar violentamente as coisas que julgava erradas. Um dia, num bar do Leme, levantou-se de repente da mesa e telefonou para casa. Eram 2 da madrugada e ele disse para Flávio Rubens, o filho sonolento que atendeu: “ Dê um pulo aqui”. Flávio chegou correndo, imaginando tragédias. Ary, copo de uísque na mão, ar melancólico, disse:

-Você sabe que Mariúza está namorando o Isaac Zuckemann?

- que tem isso, papai?
-Minha filha namorando um bêbado!
Mas o senhor também bebe, papai.
- Mas eu não vou me casar com a Mariúza!

E Isaac, Ary fazia questão de citar, era um de seus melhores amigos... Outra vez num bar da Avenida Atlântica, uma moça modesta resolveu prestar-lhe uma homenagem cantando Risque... Quando terminou, Ary, com a franqueza de sempre, disse: “A senhora acaba de assassinar minha música.  Se quiser me prestar uma homenagem, por favor, nunca mais cante Risque”. Pouco depois, aconselhado pelos amigos e dando-se conta da grosseria que cometera, Ary pediu desculpas à moça.

Seu encontro com o compositor Heitor Villa-Lobos, também famoso pelo gênio difícil, só poderia dar no que deu: briga. Num concurso de música, Vila não deu para Ary o primeir lugar que todos achavam que ele merecia. E os dois temperamentais romperam relações.  David Nasser, que recebera o prêmio do concurso, tentou reaproximar os dois. “ Voltar a ouvir aquele pilantra?”  protestava Vila –Lobos. “ Não quero nada com esse maluco”, reagiu Ary. E foi assim até o dia 7 de setembro de 1955, quando Ary e Vila-Lobos se encontraram no Palácio do Catete. Estavam lá com a mesma finalidade: receber a Ordem do Mérito que o Presidente Café Filho lhes concedera, Ary no grau de Oficial, Vila-Lobos no de Comendador. Diante da expectativa geral, os dois permaneciam de cara amarrada, cada um no seu canto. Até que David Nasser  disse para Ary:  “ O Vila me deu o prêmio porque eu precisava de dinheiro para operar meu irmão”.  “ Você jura?” inquiriu o autor da Aquarela. Nasser confirmou. Foi o suficiente para quebrar o gelo. Ary Abraçou Vila-Lobos, que desabafou, diante de Nasser:  “ Sua letra Davi, era uma porcaria”.

Não componho mais para o carnaval e todo mundo sabe por quê. Não sou homem de andar por aí pedindo para tocarem as minhas músicas. Nem vou dar dinheiro para ninguém botar meu disco na vitrola. 
Autor de tanto sucessos, Ary Barroso recusava entrar no jogo desonesto da promoção de músicas carnavalescas. Vencedor  de concurso julgado livremente pelo povo, afastava-se da indústria do carnaval.
Não era apenas esse o motivo de sua ausência no carnaval de 1964. Desde 1961 estava doente (cirrose hepática) e vivia afastado do Rio, em seu sítio  de Araras (RJ).  Chegou a retomar seu programa na TV – Encontro com Ary - , ainda enfrentou mais uma briga quando a Ordem dos Músicos ameaçou  proibir a execução e irradiação de suas composições, mas a doença não o deixava.
Em fevereiro de 1964 seu estado de saúde piora e ele é recolhido ao hospital. Telefona para David Nasser anunciando que vai morrer.
-Como é que você sabe, Ary?
- Estão tocando as minhas músicas.
José Maria Scassa, companheiro de Ary  no rádio durante vinte anos, vai visitá-lo e o encontra cantando:
- Estou cantando Scassa, porque o silêncio da morte é fogo.

Domingo, 9 de fevereiro de 1964, 21.50 horas: Ary Barroso morreu.

A notícia espalha-se de norte a sul, paralisa bailes, silencia foliões, abala o país.  Por um momento os tamborins se calam, a multidão se entreolha. A Escola de Samba Império Serrano hesita em entrar na avenida.

Mas o carnaval não deve parar. Os bailes prosseguem, o povo dança e na avenida a Escola desfila a sua AQUARELA BRASILEIRA.

                É PRECISO CANTAR PARA VENCER O SILÊNCIO DA MORTE.


 
Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
Abril Cultural – 2ª Edição – 1977
Fotos:  GOOGLE


ARY BARROSO - PARTE VI -ABRAM ALAS PARA AQUARELA BRASILEIRA

 A avenida está colorida de luzes e fantasias. A batida dos tamborins abafa o vozerio da multidão. O suor escorre no rosto sorridente dos sambistas. 

                             É CARNAVAL. É DOMINGO, 9  DE FEVEREIRO DE 1964.

Os diretores da Escola de Samba Império Serrano correm de lá para cá tentando reunir o pessoal.  Está quase na hora de entrarem na avenida. Aproxima-se o momento decisivo do desfile diante do público e da Comissão Julgadora.  São mais de 2 mil figurantes espalhados na multidão , que é preciso distribuir, ordenar. O marquês come tranquilamente seu cachorro-quente. As damas da corte não descobrem maneira de descansar sem estragar os imenso e rendados vestidos.

As alas se misturam, alguns não sabem seu lugar na sequência de quadros. E os diretores frenéticos, pra lá e pra cá, que a hora se aproxima.  A turma da “cozinha” cantarola a música do enredo:

“ Vejam esta maravilha de cenário

É um episódio relicário

Que o artista, num sonho genial

Escolheu para este carnaval.

E o asfalto, como passarela,

Será a tela

Do Brasil em forma de Aquarela...”

AQUARELA DO BRASIL chama-se o enredo. Como o famoso samba de Ary Barroso, procura exaltar as belezas e grandezas do país. É um samba- exaltação,  como o de Ary Barroso.  O desfile da Império Serrano não deixará de ser uma homenagem ao compositor brasileiro mais conhecido no país e no exterior.

                           Quase 11 horas. A escola finalmente está pronta  para desfilar.

 Soam os primeiros surdos. Ensaiam-se os primeiros passos. 

                                                            De repente, silêncio.

 Ficam todos atarantados, ninguém sabe o que fazer: a notícia caiu como um raio; 

                                                   ‘’ARY BARROSO MORREU”.  


Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
Abril Cultural – 2ª Edição – 1977
Fotos:  GOOGLE

Brasil

Meu Brasil brasileiro

Meu mulato inzoneiro

Vou cantar-te nos meus versos

O Brasil, samba que dá

Bamboleio que faz gingar

       O Brasil, do meu amor        

Terra de Nosso Senhor

Brasil, Brasil

Pra mim, pra mim

Ah, abre a cortina do passado

Tira a Mãe Preta, do cerrado

Bota o Rei Congo, no congado

Brasil, Brasil

Pra mim, pra mim

Deixa, cantar de novo o trovador

A merencória luz da lua

Toda canção do meu amor

Quero ver essa dona  caminhando

Pelos salões arrastando

O seu vestido rendado

Brasil, Brasil

Pra mim, pra mim

Brasil

Terra boa e gostosa

Da morena sestrosa

De olhar indiscreto

Oh Brasil, samba que dá

Bamboleio, que faz gingar

Oh Brasil, do meu amor

Terra de Nosso Senhor

Brasil, Brasil

Pra mim, pra mim

Oh, esse coqueiro que dá coco

Onde eu amarro a minha rede

Nas noites claras de luar

Brasil, Brasil

Pra mim, pra mim

Ah, ouve essas fontes murmurantes

Onde eu mato a minha sede

E onde a lua vem brincar

Ah, este Brasil lindo e trigueiro

É o meu Brasil, brasileiro

Terra de samba e pandeiro

Brasil, Brasil pra mim, pra mim.