Carlos Lacerda foi o candidato
a vereador mais votado no Rio de Janeiro em 1946. Logo depois dele, Ary
Barroso, que entrara para a UDN
convidado por Heitor Beltrão e Mário Martins. Levava para a Câmara seu
talento de polemista e, para a política, a mesma paixão com que irradiava os
jogos de futebol.
A grande batalha que venceu foi
a da construção do Estádio do Maracanã. Lacerda queria que ele fosse construído
na Restinga de Jacarepaguá , obstruindo outras iniciativas. Mas Ary conseguiu
que o local aprovado fosse o do terreno do Derby Club (onde hoje está o “maior
do mundo”). As verbas eram poucas, mas
Lacerda era contra a venda de cadeiras cativas.
Ary mobilizou todas as armas
para vencer a batalha. Para obter o apoio na bancada majoritária (Partido
Comunista, dezoito vereadores) pediu, com João Lyra Filho, uma pesquisa de
IBOPE. Resultado: 88 % da população apoiava a construção do estádio. E o
Maracanã foi construído. A tempo de ver
o Brasil perder a Copa de 1950...
Ary sempre foi um batalhador,
defendendo apaixonadamente as coisas que julgava certas. Esteve sempre na linha
de frente da defesa do direito autoral.
Era conselheiro da SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais),
quando sentiu, com outros compositores, a necessidade de criar uma entidade que
cuidasse especificamente dos autores de música. Fundaram (1942) a União
Brasileira de Compositores, da qual Ary foi o primei presidente.
Em 1946 surgia a SBACEM (Sociedade Brasileira
de Autores, Compositores e Editores de Música), à qual Ary logo aderiu, sendo praticamente seu
primeiro presidente. Pelo trabalho que realizou em defesa do direito autoral,
foi aclamado Presidente de Honra e Conselheiro Perpétuo dessa entidade.
O resultado dessa luta foi
benéfico para todos os autores de música no Brasil. O próprio Ary, pela
popularidade e pelo imenso número de gravações de suas músicas, aparecia no no
anuário da SBACEM de1957 como o segundo
compositor que mais recebera direitos autorais( o primeiro: Haroldo Lobo).
Ao lado da luta pelos
compositores, Ary esteve sempre em campo para defender a própria música
brasileira. Prestigiava os calouros que cantavam nossa música, tinha horror aos
“acordes americanos em samba”, nas
várias vezes em que foi ao exterior preocupou-se em levar o samba autêntico.
Quando fez RISQUE, em 1952, música
que representava uma volta aos sambas menos pretensiosos, teve que brigar para
que não fosse gravado em ritmo de bolero.
No início da década de 60 Ary
era um homem descontente e amargurado com os ritmos da nossa música e do gosto
popular. “Nunca o samba esteve tão por baixo. Chegamos à era do bolero, do
rock, chá-chá-chá, twist e outras torceduras”.
A princípio não gostava da bossa-nova e, diante das considerações do
amigo Davi Nasser, explicando que eles estavam velhos e superados, gritava: “
Sei disso. Sei disso. Mas por que não tocam a minha música? Não é boa também?”
O que não o impediu de colocar A
FELICIDADE, de Tom e Vinicius, entre
as melhores músicas populares de todos os tempos.
Ary era assim: impulsivo,
orgulhoso, sempre pronto a criticar violentamente as coisas que julgava
erradas. Um dia, num bar do Leme, levantou-se de repente da mesa e telefonou
para casa. Eram 2 da madrugada e ele disse para Flávio Rubens, o filho
sonolento que atendeu: “ Dê um pulo aqui”. Flávio chegou correndo, imaginando
tragédias. Ary, copo de uísque na mão, ar melancólico, disse:
-Você sabe que Mariúza está
namorando o Isaac Zuckemann?
- que tem isso, papai?
-Minha filha namorando um
bêbado!
Mas o senhor também bebe,
papai.
- Mas eu não vou me casar com a
Mariúza!
E
Isaac, Ary fazia questão de citar, era um de seus melhores amigos... Outra vez
num bar da Avenida Atlântica, uma moça modesta resolveu prestar-lhe uma homenagem
cantando Risque... Quando terminou,
Ary, com a franqueza de sempre, disse: “A senhora acaba de assassinar minha
música. Se quiser me prestar uma
homenagem, por favor, nunca mais cante Risque”. Pouco depois, aconselhado pelos
amigos e dando-se conta da grosseria que cometera, Ary pediu desculpas à moça.
Seu encontro com o compositor
Heitor Villa-Lobos, também famoso pelo gênio difícil, só poderia dar no que
deu: briga. Num concurso de música, Vila não deu para Ary o primeir lugar que
todos achavam que ele merecia. E os dois temperamentais romperam relações. David Nasser, que recebera o prêmio do
concurso, tentou reaproximar os dois. “ Voltar a ouvir aquele pilantra?” protestava Vila –Lobos. “ Não quero nada com
esse maluco”, reagiu Ary. E foi assim até o dia 7 de setembro de 1955, quando
Ary e Vila-Lobos se encontraram no Palácio do Catete. Estavam lá com a mesma
finalidade: receber a Ordem do Mérito que o Presidente Café Filho lhes
concedera, Ary no grau de Oficial, Vila-Lobos no de Comendador. Diante da
expectativa geral, os dois permaneciam de cara amarrada, cada um no seu canto.
Até que David Nasser disse para
Ary: “ O Vila me deu o prêmio porque eu
precisava de dinheiro para operar meu irmão”.
“ Você jura?” inquiriu o autor da Aquarela. Nasser confirmou. Foi o
suficiente para quebrar o gelo. Ary Abraçou Vila-Lobos, que desabafou, diante
de Nasser: “ Sua letra Davi, era uma
porcaria”.
Não componho mais para o carnaval e todo mundo sabe por quê. Não sou
homem de andar por aí pedindo para tocarem as minhas músicas. Nem vou dar
dinheiro para ninguém botar meu disco na vitrola.
Autor de tanto sucessos, Ary Barroso recusava entrar no jogo desonesto
da promoção de músicas carnavalescas. Vencedor
de concurso julgado livremente pelo povo, afastava-se da indústria do
carnaval.
Não era apenas esse o motivo de sua ausência no carnaval de 1964.
Desde 1961 estava doente (cirrose hepática) e vivia afastado do Rio, em seu
sítio de Araras (RJ). Chegou a retomar seu programa na TV –
Encontro com Ary - , ainda enfrentou mais uma briga quando a Ordem dos Músicos
ameaçou proibir a execução e irradiação
de suas composições, mas a doença não o deixava.
Em fevereiro de 1964 seu estado de saúde piora e ele é recolhido ao
hospital. Telefona para David Nasser anunciando que vai morrer.
-Como é que você sabe, Ary?
- Estão tocando as minhas músicas.
José Maria Scassa, companheiro de Ary
no rádio durante vinte anos, vai visitá-lo e o encontra cantando:
- Estou cantando Scassa, porque o silêncio da morte é fogo.
Domingo, 9 de fevereiro de 1964, 21.50 horas: Ary Barroso morreu.
A notícia espalha-se de norte a
sul, paralisa bailes, silencia foliões, abala o país. Por um momento os tamborins se calam, a
multidão se entreolha. A Escola de Samba Império Serrano hesita em entrar na
avenida.
Mas o carnaval não deve parar. Os
bailes prosseguem, o povo dança e na avenida a Escola desfila a sua AQUARELA
BRASILEIRA.
É PRECISO CANTAR PARA VENCER O
SILÊNCIO DA MORTE.
Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
Abril Cultural – 2ª Edição – 1977
Fotos: GOOGLE