terça-feira, 21 de janeiro de 2020

CATULO DA PAIXÃO CEARENSE - I






Esse homem adorado pelo povo tinha muitos inimigos E foram eles por certo que difundiram uma série de adjetivos, e de histórias que os justificavam, para procurar desmerecê-lo. Apontavam-no como cabotino, mulherengo, exibicionista, vaidoso, e contavam histórias como esta: a de que Catulo encontrou um amigo na rua e narrou seu encontro com Rui Barbosa, então no apogeu da fama:
- Acabo de sair da casa do Ministro Rui Barbosa;  recitei o meu HINO ÀS AVES e o baiano chorou. Só hoje é que vim ter certeza de que ele é realmente um gênio.
Os amigos mais chegados, como o barítono Frederico Rocha, um dos intérpretes favoritos de Catulo, ainda hoje falam em sua defesa:
- Catulo podia ter milhões de defeitos, até mesmo todos os que lhe eram atribuídos. Colocados ao lado de suas qualidades de artista, porém, eles se tornavam insignificantes.
Frederico Rocha conheceu Catulo lá pelo começo do século XX, na casa do Dr. Silva Araújo, um sobrado na Rua Sete de Setembro. O poeta ainda usava vastos bigodes negros, e fora à casa do médico para fazer aquilo que durante muito tempo foi a sua especialidade: dar um recital. A partir daí, Frederico passaria a frequentar a roda de amigos de Catulo e os mesmos bares da cidade: Brahma, Nacional, Nice, Confeitaria Colombo,  e fazer serenatas com os amigos comuns: o poeta Jaime Ovalle, Rogério Guimarães, Nozinho e Sinhô, João Pernambuco e Bastos Tigre, Emílio de Menezes e Sátiro Bilhar, um exímio violonista.
Nas audições, Catulo recitava e tocava violão. Frederico Rocha cantava. A mais famosa delas foi realizada a 7 de janeiro de 1917, quando veio ao Brasil o escrete uruguaio de futebol. Depois do jogo houve um churrasco, seguido de uma récita. A atração era Catulo.
- Nesse dia – conta Frederico Rocha – Catulo cantou seu sucesso da época CABOCA DI CAXANGÁ. Todo mundo cantou o estribilho famoso, inclusive os uruguaios: ‘Caboca di Caxangá, minha caboca vem cá...”. Essa canção  chegara a ser sucesso no carnaval de 1913, mesmo contra a vontade do autor, pois o povo a cantava deturpando a letra.


CABOCA DI CAXANGÁ

Laurindo Punga, Chico Dunga, Zé Vicente
Essa gente tão valente
Do sertão de Jatobá
E o danado do afamado Zeca Lima
Tudo chora numa prima
E tudo quer te traquejá
Caboca de caxangá
Minha Caboca, vem cá
Queria ver se essa gente, também sente
Tano amor como eu senti
Atravessava um regato no Patau
E escutava lá no mato
O canto triste do urutau
Caboca, demônio mau
Sou triste como o urutau
Há muito tempo lás nas moita da taquara
Junto ao monte das coivara
Eu não te vejo tu passa
Todos os dias inté a boca da noite
Eu te canto uma toada
Lá debaixo do indaiá
Vem cá, caboca, vem cá
Rainha de Caxangá
Na noite santa do Natal na encruzilhada
Eu te esperei e descantei
Inté o romper da manhã
Quando eu saía do arraiá o sol nascia
E lá na grota já se ouvia
Pipiando a acauã
Caboca, toda a manhã
Som triste de acauã.


Nota: Originalmente, a composição possui dez estrofes; aqui apresenta-se apenas as quatro estrofes iniciais e os quatro estribilhos.

Dias depois, um churrasco no sítio de Paulo Rudge terminou de forma imprevista por culpa de Catulo. Ele chegou atrasado, os convidados já estavam comendo. Recebido com palmas, dirigiu-se para o centro do terreno gramado, a fim de iniciar a parte artística do programa. Deu então de cara com a cabeça do boi, ainda ensanguentada e com os olhos esbugalhados. Ficou uma fera: atirou fora o violão e abandonou o local protestando:
- Festim de bárbaros, irracionais!
Depois ele se desculparia aos amigos Carlos Maul, jornalista e escritor, e Guimarães Martins, advogado
- Sei que estraguei a festa. Mas que hei de fazer! Eu sou assim mesmo. Comer churrasco eu comeria, mas sem um espetáculo daqueles. A minha alma de poeta não suportou a tristeza daquele olhar do boi morto.
Catulo tinha esses rompantes de prima-dona. Virar as costas e ir embora era quase um hábito dele. Exigia silêncio absoluto quando ele ou qualquer outro artista cantava. Frederico Rocha foi testemunha de muitas grosserias de Catulo. Em Casa, quando cantava ou recitava, ou quando um amigo tocava violão, não raro ele se dirigia assim a algum visitante:
- Por favor, retire-se. Só volte quando meu amigo acabar de cantar.
A gloria só fez aumentar a vaidade de Catulo. Querido pelo povo, era também admirado e estimado pelas figuras famosas da época: Coelho Neto, Humberto de Campos, Edmundo Bittencourt, Irineu Marinho, Assis Chateaubriand, Monteiro Lobato,  Rui Barbosa, Pedro Lessa, Rocha Pombo, José do Patrocínio (pai e filho), José Oiticica, João Ribeiro.
No final da vida, ele próprio cobrava homenagens à sua grandeza. Quando se fez a campanha “O Tostão do Povo”,  para construção da sua herma,  Catulo angariou adesões. Em Memórias do café Nice, Nestor de Holanda conta como foi apresentado ao poeta. Catulo não disse o protocolar  “prazer em conhecê-lo”. Foi direto ao único assunto que o interessava:
- O Senhor contribuiu para a minha herma?




Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
            ABRIL CULTURAL -  1978
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CATULO DA PAIXÃO CEARENSE - II






Catulo da Paixão Cearense era maranhense de São Luís, onde nasceu a 8 de outubro de 1863, no sobrado de número 66 da antiga rua Grande, hoje Rua Osvaldo Cruz. Alguns de seus biógrafos inclusive Ary Vasconcelos, em Panorama da Música Popular Brasileira, dão seu nascimento a 31 de janeiro de 1866, mas por equívoco; essa data foi arranjada para uma nomeação no serviço público, pois ele precisava remoçar três anos.
Ainda menino, com dez anos, Catulo mudou-se com o pai, o ourives Amâncio José da Paixão Cearense, a mãe, Maria Celestina Braga da Paixão, e os irmãos Gil e Gerson para o sertão do Ceará, que deixaria marcas profundas em seu espírito e seria o tema de sua principal peça, LUAR DO SERTÃO,  durante muitos anos considerada pelo povo como uma espécie de segundo hino nacional.  Aos dezessete anos, a família seguiu para o Rio de Janeiro , onde foi morar na Rua São Clemente, 37, numa casa quase igual à de São Luís, com fachada forrada de azulejos, três portas no térreo e três janelas em cima, com sacadas. Ali mesmo funcionava a relojoaria e ourivesaria do Sr. Amâncio.
Logo que chegou, Catulo passou a frequentar uma república de estudantes na Rua Barroso, em Copacabana. Seus companheiros eram os flautistas Calado e Viriato, o estudante de música Anacleto de Medeiros, o violonista Quincas Laranjeiras, o cantor Cadete e um estudante de medicina que ensinaria Catulo a tocar violão: até então, sua paixão era a flauta. Uma noite, numa seresta em que Catulo apresentava pela primeira vez sua primeira modinha AO LUAR, o velho Amâncio quebrou-lhe o violão na cabeça: seguira-o e resolvera castigá-lo.



Catulo era autodidata. Aprendeu português e matemática, depois se aperfeiçoou em francês, língua que conhecia profundamente, a ponto de fazer boas traduções de poetas famosos (Lamartine, por exemplo), em moda no fim do século XIX e começo do século XX. Mas o gosto pela literatura francesa não lhe deu maneirismos e hábitos importados, como era comum nos poetas da época. Catulo guardava a influência do contato com os cantadores do nordeste, com quem passara boa parte da juventude, e ele próprio chegou a fazer literatura de cordel. Ao contrário do que então se cantava, fez modinhas bem brasileiras, muitas delas compostas no linguajar caboclo.
Os primeiros anos de Rio de Janeiro não foram apenas de alegrias, serestas, descoberta de novas amizades.  Logo depois que chegaram, morreu-lhe a mãe. Ele ficou  tão traumatizado, que chegou a pensar em se suicidar.  Três anos depois,  morria o velho Amâncio. De repente, a vida sofria uma mudança brutal: Catulo tinha que trabalhar, e só arranjou vaga no cais do porto, como estivador, pegando no pesado. Passou a levar uma  vida dividida: de dia, tamancos nos pés, marmita e os livros que nunca abandonava: de noite, fraque forrado de seda, calça listrada – para as serestas.
Numa dessas noitadas, a vida de Catulo mudou. Convidado para uma festa na casa do Senador Gaspar da Silveira Martins, conselheiro do Império, ele foi centro da festa, os convidados aplaudiram-no de pé. A mulher do conselheiro interessou-se muito por ele, quis saber como poderia ajudá-lo.  O poeta arriscou um pedido de emprego; em resposta, recebeu convite para ser explicador dos filhos de Silveira Martins. Catulo não vacilou: aceitou o emprego e mudou-se para a chácara do conselheiro, na Gávea.  Enfim, uma vida digna de ser vivida: de dia aulas; de noite, serestas.
Mas não durou muito tempo: uma madrugada, ao voltar para o quarto, teve a surpresa de encontrar em sua cama uma jovem semi-vestida; Ela começou a gritar por socorro, dizendo-se violentada pelo poeta; os outros empregados acudiram, Catulo viu-se cercado, acabou na delegacia e depois na igreja, onde foi obrigada a se casar com a moça. Anos depois, viu que tudo passara de uma farsa: na certidão de casamento e nos assentamentos da igreja paroquial não havia assinaturas dele e da noiva.
Ele era mesmo mulherengo. O crítico literário Agripino Grieco, seu amigo, diz que Catulo era um “navio negreiro”: tinha “um coração carregado de cativas negras”. Esta imagem foi deturpada a tal ponto que ele teve de renunciar ao único amor de sua vida, a “Coleira”, cujo nome se perdeu nos anos. Dela ficou apenas o retrato traçado por Catulo: moça linda, de olhos angelicais e que usava no pescoço uma fita de veludo de onde pendia um camafeu. Filha do Senador Hermenegildo de Morais, de Goiás, o poeta conheceu-a numa festa patrocinada pelo pai. Para ela Catulo escreveu vários sonetos e canções, entre os quais AVE MARIA HUMANA e IMORTALIDADE.
Outras mulheres passaram pela vida de Catulo. Para uma delas fez uma de suas canções mais famosas, TALENTO E FORMOSURA. Era uma moça enciumada com as atenções que ele dava à “Coleira” e que um dia lhe disse:
- Fique com ela, que não tem olhos senão para ver a sua feiura.
- Sei que sou feio, não precisava dizer. Uma dia responderei à sua beleza vaidosa o que ela merece ouvir – retrucou Catulo, que algumas semanas mais tarde se vingou:
“tu podes bem guardar os dons da formosura, que o tempo um dia há de, implacável, trucidar...”.
Para a atriz Apolônia Pinto, sua conterrânea, ele escreveu OS OLHOS DELA, que acabou por dedicar a outra mulher, Maria Augusta, esposa de um amigo que numa noite chegou em casa em hora além da conta. Catulo acompanhou-o e, para aplacar a ira da mulher, cantou a canção OS OLHOS DELA. Seu gesto valeu como habeas corpus para o amigo:
 - Fiz esta música especialmente para a senhora.
Ao ver que a “Coleira” lhe era negada, ele tomou a decisão  de se afastar. Isolou-se na Piedade, subúrbio do Rio, onde passou a lecionar, num colégio que fundou. Dava aulas de manhã, de tarde e de noite, procurando criar métodos que tornassem o ensino mais agradável. Para alfabetizar meninos e adultos, adotou um sistema visual: escrevia letras coloridas em rodelas de cartolina e as jogava para os alunos, para que cada um encontrasse a inicial do seu nome. Assim, brincando, mostrava as letras do alfabeto. Para as classes mais adiantadas lecionava português, matemática e francês.

Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
            ABRIL CULTURAL -  1978
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CATULO DA PAIXÃO CEARENSE - III




Catulo da Paixão Cearense era conhecido pelos recitais e audições que dava, pelas serestas que fazia, naquele fim de século marcado por tantos acontecimentos: a proclamação da República, a revolta da Armada, as crises dos governos  Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
Com o começo das gravações mecânicas, o novo século aumentaria a sua fama. Em 1906, o cantor Mário Pinheiro (1880-1921) grava TALENTO E FORMOSURA para a casa Edison, de Fred Figner & Cia., a pioneira do mercado fonográfico  do Brasil. No mesmo ano grava também RESPOSTA AO TALENTO E FORMOSURA;  em 1907, O QUE TU ÉS, ATÉ AS FLORES MENTEM, CLÉLIA; EM 1909, CHOÇA AO MONTE, CABOCLA BONITA;  em 1910, ADEUS DA MANHÃ e a grande criação de Catulo: LUAR DO SERTÃO.






O cantor gravava com o nome de Mario, só, pois já era conhecido em todo o Brasil, graças ao prodígio que então representavam aqueles discos gravados de forma tão rudimentar: os artistas tinham de abrir bem o peito, porque só assim se conseguia êxito na gravação. Na voz de Mario Pinheiro – que em 1912 iria aos Estados Unidos gravar uma série de músicas brasileiras na RCA, depois estudaria canto em Milão para se tornar baixo-cantante e morrer pobre no Brasil – o renome de Catulo, não parava de crescer.
No Rio de Janeiro, o poeta conseguia o que parecia impossível: levar o violão, instrumento até então maldito, para um salão de elite. Por intermédio do Maestro Alberto Nepomuceno, conseguiu a 5 de Julho de 1908 a cessão do antigo  Instituto Nacional de Música, sediado na Rua Luís de Camões, para dar uma audição. O maestro cedeu apesar dos protestos, sobretudo do crítico Oscar Guanabarino, um dos mais respeitados então, e que considerava uma profanação a presença de tal instrumento num salão de música erudita.





No prefácio de seu livro Modinhas (Livraria Império, Rio, 1945) Catulo conta com indisfarçável  vaidade como foi aquela sessão memorável: “Músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, pintores, o escol de nossa sociedade, diplomatas, como o Conde Prozoor, então ministro plenipotenciário da Rússia, tudo se encontrava ali no meio da massa popular. Inúmeras pessoas ficaram de pé, por não haver mais lugar. Os aplausos eram tão retumbantes que se ouviam na rua. O crítico musical Oscar Guanabarino, que havia escrito um artigo atacando o Maestro Nepomuceno, por haver permitido que eu introduzisse o violão naquele templo onde só pisavam celebridades, depois do meu triunfo confessou a sua falta saudando-me com palmas delirantes”.
Os inimigos não perdiam oportunidade de malhar Catulo.  do recital que ele deu para o Presidente Nilo Peçanha,   Catulo havia entrado no Palácio do Catete, sede do governo, pela porta dos fundos. Era uma tolice, porque o barco presidencial encostava num cais que havia na parte do palácio que dá para a praia. Mas Catulo jurou que entraria pela porta da frente do palácio, para responder a seus inimigos.  Em maio de 1914, ele voltou ao palácio, a convite do Presidente Marechal Hermes. De fraque forrado  de seda, calças listradas, violão debaixo do braço, subiu as escadarias do Catete para mais um momento de glória.  Dona Nair de Teffé Hermes da Fonseca (que se tornou conhecida como caricaturista, sob o pseudônimo de Rian), daria seu testemunho sobre mais esse êxito de Catulo:
-“Essa audição de Catulo, no Palácio do Catete, constituiu o maior sucesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida. Catulo, ao término de cada canção que interpretava, recebia da culta assistência uma ovação delirante. Todos o aplaudiam em pé. E ele bem o merecia pelo seu gênio e seu irresistível poder de transmissão de sentimento”.
A audição valeu-lhe mais que os aplausos: Catulo saiu de lá praticamente nomeado para um cargo na Imprensa Nacional.  Depois que assumiu, seus inimigos fizeram chegar aos ouvidos do presidente que Catulo comparecia à repartição uma vez por mês, para receber os vencimentos. O presidente desfazia a intriga, desarmando seus autores:
- Catulo é mesmo maluco! Quem mandou ir tanto ao serviço?
As histórias dos empregos de Catulo formavam um verdadeiro anedotário. Conta Bastos Tigre que certa vez o poeta foi surpreendido por um telegrama que exigia sua presença no Ministério da Viação, para o qual fora nomeado pelo Ministro Pires do Rio. O movimento  de 1930 tinha vencido, cuidava de moralizar o serviço público, plataforma de toda revolução que se preza. O chefe de gabinete do Ministro José Américo quis saber tudo o que ele fazia (ou não fazia) na repartição.
- Qual o seu cargo aqui?
- Datilógrafo.
- E se fosse preciso realizarmos um teste de datilografia que máquina o senhor escolheria?
Catulo ficou embatucado com a última pergunta. O chefe de gabinete insistiu: cada datilógrafo se habituava a um tipo de máquina, o mesmo devia ocorrer com Catulo. Sem saída, o poeta encontrou esta:
- Bem, nesse caso, prefiro uma Singer.
Além dos aplausos e dos empregos, a glória lhe trazia aborrecimentos. Um deles foi gerado pela autoria de Luar do Sertão e Caboca di Caxangá, que seu amigo João Pernambuco (1883-1947) reivindicava. Pernambuco, exímio violonista, cujo nome civil era João Teixeira Guimarães, e que viera em 1902 para o Rio, sustentava que a música de Luar do Sertão era a do coco nordestino É DE HUMAITÁ, ao qual Catulo adaptara a nova letra. Era uma verdade apenas parcial: realmente a música original é a de uma embolada do folclore pernambucano, mas que não tinha muito valor em si. Catulo modernizou a música, adaptou-a à sua letra, à base de dois compassos de uma melodia de Beethoven. E até glosava o fato, por “ andar em ótima companhia”.
O paulista Roque Ricciardi (1894-1976), que ficou famoso como cantor com o nome de Paraguaçu, contava que Catulo escreveu a amigos do Nordeste interessado em descobrir a origem exata da música. A resposta veio dizendo que era mesmo folclore pernambucano, e Catulo não ocultou a informação que recebera. Paraguaçu lembrava que Catulo e João Pernambuco chegaram a fazer as pazes, a seu pedido, quando participaram do  show promovido pela atriz Margarida em homenagem a Canhoto  (Américo Jacomino) que fora eleito o maior violonista do Brasil. Mas a ferida aberta por Luar do Sertão jamais cicatrizaria: Catulo e João Pernambuco voltaram a brigar, e rompidos ficaram até morrer.
Mais que discussões, a composição ONTEM AO LUAR geraria uma ação cível.  A letra, de Catulo, foi escrita em 1913 para a música CHORO E POESIA que José Pedro de Alcântara fizera em 1907.  Foi uma das mais populares criações da segunda década do século XX, sobretudo na voz de Vicente Celestino, em disco da Casa Edison, de 1918.
Com o lançamento, em 1970, do filme Love Story (dirigido por Arthur Hiller), a imprensa brasileira acusou exagerada semelhança entre seu tema musical (composto por Francis Lay) e ONTEM AO LUAR, de Catulo da Paixão Cearense.
Nem se tocava no nome de José Pedro de Alcântara, o verdadeiro plagiado, pois a tempo a composição vinha sendo divulgada como sendo exclusivamente de Catulo da Paixão Cearense.
Em 1971, Heloísa Alcântara Bernardi, neta de José Pedro, moveu uma ação contra os detentores dos direitos da obra de Catulo e, em 1976, foram legalmente obstados o título  ONTEM AO LUAR e a conhecidíssima letra do poeta maranhense. Até o ano de 1989, subsiste apenas a obra CHORO E POESIA, ou seja: a música de José Pedro de Alcântara com letra de Heloísa Alcântara Bernardi.

Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
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CATULO DA PAIXÃO CEARENSE -IV






Catulo da Paixão Cearense era conhecido pelos recitais e audições que dava, pelas serestas que fazia, naquele fim de século marcado por tantos acontecimentos: a proclamação da República, a revolta da Armada, as crises dos governos  Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
Com o começo das gravações mecânicas, o novo século aumentaria a sua fama. Em 1906, o cantor Mário Pinheiro (1880-1921) grava TALENTO E FORMOSURA para a casa Edison, de Fred Figner & Cia., a pioneira do mercado fonográfico  do Brasil. 


Tu podes bem guardar os dons da formosura
que o tempo, um dia há de implacável trucidar
tu podes bem viver ufana de ventura
que a natureza, cegamente, quis te dar
Prossegue embora em flóreas sendas
sempre ovante,
de glórias cheia no teu sólio triunfante
que antes que a morte vibre em ti
funéreo golpe seu
a natureza irá roubando o que te deu
E quanto a mim, irei cantando 
o meu ideal de amor, 
que é sempre novo no viçor da primavera
na lira austera em que o Senhor me faz destro
Será meu estro só do que for imortal
Tu podes bem sorrir das minhas desventuras
Pertenço à dor e gosto até de assim penar
eu tenho n'alma um grande cofre de amarguras
Eu lhe descerro as portas d'alma
que a consola
e dou-lhe as lágrimas que vão lhe mitigar o ardor
que a inspiração dos versos meus só devo à dor
Descantarei na minha lira as obras-primas do Criador
Uma color da flor desa brochando à luz do luar
O incenso d'água é que nos olhos faz a mágoa rutilar
nuns olhos onde o amor tem seu altar
e o verde mar que se debruça n'alva areia e espumejar
e a noite que soluça e faz a lua soluçar
e a estrela d'alva e a estrela vésper languescente
bastam somente para os bardos inspirar
Mas quando a morte conduzir-te à sepultura
O teu supremo orgulho em pó reduzirá
e após a morte profanar-te a formosura
dos teus encantos mais ninguém se lembrará
Mas quando Deus fechar meus olhos sonhadores
serei lembrado pelos bardos trovadores
que os versos meus hão de na lira em magos tons gemer
e eu, morto embora, nas canções hei de viver.



No mesmo ano grava também RESPOSTA AO TALENTO E FORMOSURA;  em 1907, O QUE TU ÉS, ATÉ AS FLORES MENTEM, CLÉLIA; EM 1909, CHOÇA AO MONTE, CABOCLA BONITA;  em 1910, ADEUS DA MANHÃ e a grande criação de Catulo: LUAR DO SERTÃO.
O cantor gravava com o nome de Mario, só, pois já era conhecido em todo o Brasil, graças ao prodígio que então representavam aqueles discos gravados de forma tão rudimentar: os artistas tinham de abrir bem o peito, porque só assim se conseguia êxito na gravação. Na voz de Mario Pinheiro – que em 1912 iria aos Estados Unidos gravar uma série de músicas brasileiras na RCA, depois estudaria canto em Milão para se tornar baixo-cantante e morrer pobre no Brasil – o renome de Catulo, não parava de crescer.
No Rio de Janeiro, o poeta conseguia o que parecia impossível: levar o violão, instrumento até então maldito, para um salão de elite. Por intermédio do Maestro Alberto Nepomuceno, conseguiu a 5 de Julho de 1908 a cessão do antigo  Instituto Nacional de Música, sediado na Rua Luís de Camões, para dar uma audição. O maestro cedeu apesar dos protestos, sobretudo do crítico Oscar Guanabarino, um dos mais respeitados então, e que considerava uma profanação a presença de tal instrumento num salão de música erudita.
No prefácio de seu livro Modinhas ( Livraria Império, Rio, 1945) Catulo conta com indisfarçável  vaidade como foi aquela sessão memorável: “Músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, pintores, o escol de nossa sociedade, diplomatas, como o Conde Prozoor, então ministro plenipotenciário da Rússia, tudo se encontrava ali no meio da massa popular. Inúmeras pessoas ficaram de pé, por não haver mais lugar. Os aplausos eram tão retumbantes que se ouviam na rua. O crítico musical Oscar Guanabarino, que havia escrito um artigo atacando o Maestro Nepomuceno, por haver permitido que eu introduzisse o violão naquele templo onde só pisavam celebridades, depois do meu triunfo confessou a sua falta saudando-me com palmas delirantes”.
Os inimigos não perdiam oportunidade de malhar Catulo.  do recital que ele deu para o Presidente Nilo Peçanha,   Catulo havia entrado no Palácio do Catete, sede do governo, pela porta dos fundos. Era uma tolice, porque o barco presidencial encostava num cais que havia na parte do palácio que dá para a praia. Mas Catulo jurou que entraria pela porta da frente do palácio, para responder a seus inimigos.  Em maio de 1914, ele voltou ao palácio, a convite do Presidente Marechal Hermes. De fraque forrado  de seda, calças listradas, violão debaixo do braço, subiu as escadarias do Catete para mais um momento de glória.  Dona Nair de Teffé Hermes da Fonseca ( que se tornou conhecida como caricaturista, sob o pseudônimo de Rian), daria seu testemunho sobre mais esse êxito de Catulo:
-“Essa audição de Catulo, no Palácio do Catete, constituiu o maior sucesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida. Catulo, ao término de cada canção que interpretava, recebia da culta assistência uma ovação delirante. Todos o aplaudiam em pé. E ele bem o merecia pelo seu gênio e seu irresistível poder de transmissão de sentimento”.
A audição valeu-lhe mais que os aplausos: Catulo saiu de lá praticamente nomeado para um cargo na Imprensa Nacional.  Depois que assumiu, seus inimigos fizeram chegar aos ouvidos do presidente que Catulo comparecia à repartição uma vez por mês, para receber os vencimentos. O presidente desfazia a intriga, desarmando seus autores:
- Catulo é mesmo maluco! Quem mandou ir tanto ao serviço?
As histórias dos empregos de Catulo formavam um verdadeiro anedotário. Conta Bastos Tigre que certa vez o poeta foi surpreendido por um telegrama que exigia sua presença no Ministério da Viação, para o qual fora nomeado pelo Ministro Pires do Rio. O movimento  de 1930 tinha vencido, cuidava de moralizar o serviço público, plataforma de toda revolução que se preza. O chefe de gabinete do Ministro José Américo quis saber tudo o que ele fazia (ou não fazia) na repartição.
- Qual o seu cargo aqui?
- Datilógrafo.
- E se fosse preciso realizarmos um teste de datilografia que máquina o senhor escolheria?
Catulo ficou embatucado com a última pergunta. O chefe de gabinete insistiu: cada datilógrafo se habituava a um tipo de máquina, o mesmo devia ocorrer com Catulo. Sem saída, o poeta encontrou esta:
- Bem, nesse caso, prefiro uma Singer.
Além dos aplausos e dos empregos, a glória lhe trazia aborrecimentos. Um deles foi gerado pela autoria de Luar do Sertão e Caboca di Caxangá, que seu amigo João Pernambuco (1883-1947) reivindicava. Pernambuco, exímio violonista, cujo nome civil era João Teixeira Guimarães, e que viera em 1902 para o Rio, sustentava que a música de Luar do Sertão era a do coco nordestino É DE HUMAITÁ, ao qual Catulo adaptara a nova letra. Era uma verdade apenas parcial: realmente a música original é a de uma embolada do folclore pernambucano, mas que não tinha muito valor em si. Catulo modernizou a música, adaptou-a à sua letra, à base de dois compassos de uma melodia de Beethoven. E até glosava o fato, por “ andar em ótima companhia”.
O paulista Roque Ricciardi (1894-1976), que ficou famoso como cantor com o nome de Paraguaçu, contava que Catulo escreveu a amigos do Nordeste interessado em descobrir a origem exata da música. A resposta veio dizendo que era mesmo folclore pernambucano, e Catulo não ocultou a informação que recebera. Paraguaçu lembrava que Catulo e João Pernambuco chegaram a fazer as pazes, a seu pedido, quando participaram do  show promovido pela atriz Margarida em homenagem a Canhoto  ( Américo Jacomino) que fora eleito o maior violonista do Brasil. Mas a ferida aberta por Luar do Sertão jamais cicatrizaria: Catulo e João Pernambuco voltar a brigar, e rompidos ficaram até morrer.
Mais que discussões, a composição ONTEM AO LUAR geraria uma ação cível.  A letra, de Catulo, foi escrita em 1913 para a música CHORO E POESIA que José Pedro de Alcântara fizera em 1907.  Foi uma das mais populares criações da segunda década do século XX, sobretudo na voz de Vicente Celestino, em disco da Casa Edison, de 1918.
Com o lançamento, em 1970, do filme Love Story ( dirigido por Arthur Hiller), a imprensa brasileira acusou exagerada semelhança entre seu tema musical (composto por Francis Lay) e ONTEM AO LUAR, de Catulo da Paixão Cearense.
Nem se tocava no nome de José Pedro de Alcântara, o verdadeiro plagiado, pois a tempo a composição vinha sendo divulgada como sendo exclusivamente de Catulo da Paixão Cearense.
Em 1971, Heloísa Alcântara Bernardi, neta de José Pedro, moveu uma ação contra os detentores dos direitos da obra de Catulo e, em 1976, foram legalmente obstados o título Ontem ao Luar e a conhecidíssima letra do poeta maranhense. Até o ano de 1989, subsiste apenas a obra CHORO E POESIA, ou seja: a música de José Pedro de Alcântara com letra de Heloísa Alcântara Bernardi.


Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
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CATULO DA PAIXÃO CEARENSE - V






Catulo jamais escondeu seus parceiros, fazia questão de citá-los: Alcino Artidoro da Costa, oficial do Exército e excelente violonista; Alfredo Dutra, autor da música de  TU PASSASTE POR ESTE JARDIM; Luís de Souza, autor da música da valsa CLÉLIA; Edmundo Otávio Ferreira, que musicou TALENTO E FORMOSURA; Cupertino de Meneses, autor da melo de FASCINAÇÃO POR TEUS OLHOS.
Outro a quem Catulo Exaltava, como parceiro e como mestre era Anacleto de Medeiros  (1866-1907), filho de uma negra liberta e criado pelo Dr. Pinheiro Flores na ilha de Paquetá, onde o músico nasceu e morreu. Anacleto foi organizador e regente da Banda do Corpo de Bombeiros, posto que assumiu sem qualquer ato de nomeação, por volta de 1901, e  no qual só foi efetivado dois meses antes de morrer. Com Anacleto, que tocava com perfeição todos os instrumentos de uma banda, afora alguns de corda, Catulo compôs RASGA O CORAÇÃO, POR UM BEIJO, PALMA DE MARTÍRIO, O QUE TU ÉS, PERDOA, NASCI PARA TE AMAR, O BOÊMIO, CORAÇÃO OCULTO.
Catulo não só citava como parceiro como tinha veneração por ele do que é prova esta declaração em versos:
“Anacleto de Medeiros,
ingratamente olvidado,
que nunca apagaste incêndios,
mas com teu fogo sagrado,
acendias harmonias
regendo a banda gloriosa
dos invencíveis bombeiros”.
E não se limitava a isto, muitas vezes tocando  violão para amigos, Catulo dizia:
- Aprendi este acorde com Anacleto.
Nos últimos anos de vida, Catulo morou num barracão na Rua Francisco Méier, 21, hoje Rua Catulo da Paixão Cearense, no Engenho de Dentro, subúrbio carioca. Ao barracão deu o nome de  “palácio choupanal”; ali recebia velhos amigos, antigos companheiros da estiva, visitantes ilustres, entre eles Monteiro Lobato (1882-1948), o poeta espanhol Salvador Rueda (1861-1933), o mexicano Alfonso Ortiz Tirado (1893-1960), tenor e médico, conhecido como “ a voz romântica do México”.
Grande conversador, bom bebedor, capaz de tomar litros de cerveja sem se alterar, Catulo mantinha sempre a casa cheia, e recebia as visita de pijama e chinelos. Só conhecia dois trajes: ou o pijama ou o terno com gravata, nada de meio-termo. Logo que a calvície começou a aparecer, resolveu se antecipar, raspando a cabeça. Fazia a barba e o cabelo sem auxílio de espelho, “de cabeça” (de cor), como dizia. Se a lâmina era nova, cortava-se todo e quando isso acontecia, esquentava água, lavava-se enrolava uma toalha na cabeça, passava talco. Ao ver Catulo com a cabeça cheia de traços brancos, o irreverente Bastos Tigre o gozava:
- Lá vai o mapa-mundi com todos os rios da Terra.
Em 1939, Paraguaçu promoveu uma série de recitais de Catulo em São Paulo, onde o poeta cantou na Rádio Cosmos (depois Rádio América) e no Palácio dos Campos Elísios, a convite de Ademar de Barros (1901-1969). Foi um sucesso absoluto: seus livros desapareceram das livrarias e sebos, comprados pelo público ávido de obter seu autógrafo. Para dar um exemplar à mulher do interventor, Dona Leonor Mendes de Barros, o poeta teve que mandar buscar o livro no Rio de Janeiro.
Poucos sabiam que antes de ir a São Paulo ele havia mandado uma patética carta a Paraguaçu: “ a minha situação é crítica, muito crítica, e só pessoalmente poderei explicar a você. Preciso que me arrume alguma coisa em são Paulo para melhorar a minha situação”.
Após o show  no palácio, o interventor mando entregar a Paraguaçu um envelope com 20 contos – uma fábula, na época-, destinados a Catulo, que ficou feliz:
- Eu sabia que Sua Excelência não ia fazer por menos!
Era tarde demais: Catulo fora perdulário, tinha cedido seus direitos autorais por uma ninharia a seu amigo Guimarães Martins. Acabaria morrendo pobre, a 10 de maio de 1946. Seu corpo foi embalsamado por iniciativa de amigos. Antes de ser sepultado, três dias depois, o escultor Flory Gama modelou-lhe a máscara mortuária. Conduzido ao saguão do edifício da Associação Brasileira de Imprensa, na Praça da República, seu corpo foi levado em corteja a pé para o Cemitério de São Francisco de Paula, em Catumbi.
- O sepultamento de Catulo, conta seu amigo Carlos Mau, não foi um fato comum na vida da cidade. A Banda do Corpo de Bombeiros ia tocando a Marcha Fúnebre; atrás da carreta com o corpo ia a grande massa popular. À passagem do féretro, as casas comerciais cerravam as portas; as bandeiras estavam em funeral. Quando o corpo chegou ao cemitério, havia milhares de pessoas à espera.
Os discursos de personalidades fizeram a cerimônia entrar pela noite. Uma lua imensa começou a luzir no céu, e espontaneamente o mexicano Alfonso Ortiz Tirado começou a cantar baixinho Luar do Sertão. Em pouco o rumor de milhares de vozes a acompanhá-lo dominou a noite: Não há, ó gente, Oh, não, luar como este, do sertão..”
Toda a fortuna de Catulo era isto: a adoração popular.

LUAR DO SERTÃO

Não há, ó gente, oh não
Luar como este do sertão
Oh que saudade do luar da minha terra
Lá na serra branquejando
Folhas secas pelo chão
Esse luar cá da cidade tão escuro
Não tem aquela saudade
Do luar lá do sertão

Se a lua nasce por detrás da verde mata
Mais parece um  céu de prata
Prateando a solidão
A gente pega na viola que ponteia
E a canção é lua cheia
A nos nascer do coração.
Se Deus me ouvisse
Com amor e caridade
Me faria essa vontade
O ideal do coração:
Era que a morte
A descantar me surpreendesse
E eu morresse numa noite
De luar do meu sertão

Nota: música lançada em disco ainda nos primeiros anos do século XX, receberia posteriormente, centenas de gravações, nos estilos mais diversos.
Originalmente, Luar do Sertão tem doze estrofes com rimas emparelhadas e compostas, mas, na letra acima, selecionaram-se apenas a primeira, segunda e nona estrofes, as mais divulgadas.



Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
            ABRIL CULTURAL – 1978
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