terça-feira, 21 de janeiro de 2020

CATULO DA PAIXÃO CEARENSE - III




Catulo da Paixão Cearense era conhecido pelos recitais e audições que dava, pelas serestas que fazia, naquele fim de século marcado por tantos acontecimentos: a proclamação da República, a revolta da Armada, as crises dos governos  Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
Com o começo das gravações mecânicas, o novo século aumentaria a sua fama. Em 1906, o cantor Mário Pinheiro (1880-1921) grava TALENTO E FORMOSURA para a casa Edison, de Fred Figner & Cia., a pioneira do mercado fonográfico  do Brasil. No mesmo ano grava também RESPOSTA AO TALENTO E FORMOSURA;  em 1907, O QUE TU ÉS, ATÉ AS FLORES MENTEM, CLÉLIA; EM 1909, CHOÇA AO MONTE, CABOCLA BONITA;  em 1910, ADEUS DA MANHÃ e a grande criação de Catulo: LUAR DO SERTÃO.






O cantor gravava com o nome de Mario, só, pois já era conhecido em todo o Brasil, graças ao prodígio que então representavam aqueles discos gravados de forma tão rudimentar: os artistas tinham de abrir bem o peito, porque só assim se conseguia êxito na gravação. Na voz de Mario Pinheiro – que em 1912 iria aos Estados Unidos gravar uma série de músicas brasileiras na RCA, depois estudaria canto em Milão para se tornar baixo-cantante e morrer pobre no Brasil – o renome de Catulo, não parava de crescer.
No Rio de Janeiro, o poeta conseguia o que parecia impossível: levar o violão, instrumento até então maldito, para um salão de elite. Por intermédio do Maestro Alberto Nepomuceno, conseguiu a 5 de Julho de 1908 a cessão do antigo  Instituto Nacional de Música, sediado na Rua Luís de Camões, para dar uma audição. O maestro cedeu apesar dos protestos, sobretudo do crítico Oscar Guanabarino, um dos mais respeitados então, e que considerava uma profanação a presença de tal instrumento num salão de música erudita.





No prefácio de seu livro Modinhas (Livraria Império, Rio, 1945) Catulo conta com indisfarçável  vaidade como foi aquela sessão memorável: “Músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados, engenheiros, professores, pintores, o escol de nossa sociedade, diplomatas, como o Conde Prozoor, então ministro plenipotenciário da Rússia, tudo se encontrava ali no meio da massa popular. Inúmeras pessoas ficaram de pé, por não haver mais lugar. Os aplausos eram tão retumbantes que se ouviam na rua. O crítico musical Oscar Guanabarino, que havia escrito um artigo atacando o Maestro Nepomuceno, por haver permitido que eu introduzisse o violão naquele templo onde só pisavam celebridades, depois do meu triunfo confessou a sua falta saudando-me com palmas delirantes”.
Os inimigos não perdiam oportunidade de malhar Catulo.  do recital que ele deu para o Presidente Nilo Peçanha,   Catulo havia entrado no Palácio do Catete, sede do governo, pela porta dos fundos. Era uma tolice, porque o barco presidencial encostava num cais que havia na parte do palácio que dá para a praia. Mas Catulo jurou que entraria pela porta da frente do palácio, para responder a seus inimigos.  Em maio de 1914, ele voltou ao palácio, a convite do Presidente Marechal Hermes. De fraque forrado  de seda, calças listradas, violão debaixo do braço, subiu as escadarias do Catete para mais um momento de glória.  Dona Nair de Teffé Hermes da Fonseca (que se tornou conhecida como caricaturista, sob o pseudônimo de Rian), daria seu testemunho sobre mais esse êxito de Catulo:
-“Essa audição de Catulo, no Palácio do Catete, constituiu o maior sucesso a que um verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida. Catulo, ao término de cada canção que interpretava, recebia da culta assistência uma ovação delirante. Todos o aplaudiam em pé. E ele bem o merecia pelo seu gênio e seu irresistível poder de transmissão de sentimento”.
A audição valeu-lhe mais que os aplausos: Catulo saiu de lá praticamente nomeado para um cargo na Imprensa Nacional.  Depois que assumiu, seus inimigos fizeram chegar aos ouvidos do presidente que Catulo comparecia à repartição uma vez por mês, para receber os vencimentos. O presidente desfazia a intriga, desarmando seus autores:
- Catulo é mesmo maluco! Quem mandou ir tanto ao serviço?
As histórias dos empregos de Catulo formavam um verdadeiro anedotário. Conta Bastos Tigre que certa vez o poeta foi surpreendido por um telegrama que exigia sua presença no Ministério da Viação, para o qual fora nomeado pelo Ministro Pires do Rio. O movimento  de 1930 tinha vencido, cuidava de moralizar o serviço público, plataforma de toda revolução que se preza. O chefe de gabinete do Ministro José Américo quis saber tudo o que ele fazia (ou não fazia) na repartição.
- Qual o seu cargo aqui?
- Datilógrafo.
- E se fosse preciso realizarmos um teste de datilografia que máquina o senhor escolheria?
Catulo ficou embatucado com a última pergunta. O chefe de gabinete insistiu: cada datilógrafo se habituava a um tipo de máquina, o mesmo devia ocorrer com Catulo. Sem saída, o poeta encontrou esta:
- Bem, nesse caso, prefiro uma Singer.
Além dos aplausos e dos empregos, a glória lhe trazia aborrecimentos. Um deles foi gerado pela autoria de Luar do Sertão e Caboca di Caxangá, que seu amigo João Pernambuco (1883-1947) reivindicava. Pernambuco, exímio violonista, cujo nome civil era João Teixeira Guimarães, e que viera em 1902 para o Rio, sustentava que a música de Luar do Sertão era a do coco nordestino É DE HUMAITÁ, ao qual Catulo adaptara a nova letra. Era uma verdade apenas parcial: realmente a música original é a de uma embolada do folclore pernambucano, mas que não tinha muito valor em si. Catulo modernizou a música, adaptou-a à sua letra, à base de dois compassos de uma melodia de Beethoven. E até glosava o fato, por “ andar em ótima companhia”.
O paulista Roque Ricciardi (1894-1976), que ficou famoso como cantor com o nome de Paraguaçu, contava que Catulo escreveu a amigos do Nordeste interessado em descobrir a origem exata da música. A resposta veio dizendo que era mesmo folclore pernambucano, e Catulo não ocultou a informação que recebera. Paraguaçu lembrava que Catulo e João Pernambuco chegaram a fazer as pazes, a seu pedido, quando participaram do  show promovido pela atriz Margarida em homenagem a Canhoto  (Américo Jacomino) que fora eleito o maior violonista do Brasil. Mas a ferida aberta por Luar do Sertão jamais cicatrizaria: Catulo e João Pernambuco voltaram a brigar, e rompidos ficaram até morrer.
Mais que discussões, a composição ONTEM AO LUAR geraria uma ação cível.  A letra, de Catulo, foi escrita em 1913 para a música CHORO E POESIA que José Pedro de Alcântara fizera em 1907.  Foi uma das mais populares criações da segunda década do século XX, sobretudo na voz de Vicente Celestino, em disco da Casa Edison, de 1918.
Com o lançamento, em 1970, do filme Love Story (dirigido por Arthur Hiller), a imprensa brasileira acusou exagerada semelhança entre seu tema musical (composto por Francis Lay) e ONTEM AO LUAR, de Catulo da Paixão Cearense.
Nem se tocava no nome de José Pedro de Alcântara, o verdadeiro plagiado, pois a tempo a composição vinha sendo divulgada como sendo exclusivamente de Catulo da Paixão Cearense.
Em 1971, Heloísa Alcântara Bernardi, neta de José Pedro, moveu uma ação contra os detentores dos direitos da obra de Catulo e, em 1976, foram legalmente obstados o título  ONTEM AO LUAR e a conhecidíssima letra do poeta maranhense. Até o ano de 1989, subsiste apenas a obra CHORO E POESIA, ou seja: a música de José Pedro de Alcântara com letra de Heloísa Alcântara Bernardi.

Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
            ABRIL CULTURAL -  1978
Fotos:  GOOGLE
Vídeos:YOUTUBE

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