Catulo
da Paixão Cearense era conhecido pelos recitais e audições que dava, pelas
serestas que fazia, naquele fim de século marcado por tantos acontecimentos: a
proclamação da República, a revolta da Armada, as crises dos governos Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
Com
o começo das gravações mecânicas, o novo século aumentaria a sua fama. Em 1906,
o cantor Mário Pinheiro (1880-1921) grava TALENTO E FORMOSURA para a casa
Edison, de Fred Figner & Cia., a pioneira do mercado fonográfico do Brasil.
Tu podes bem guardar os dons da formosura
que o tempo, um dia há de implacável trucidar
tu podes bem viver ufana de ventura
que a natureza, cegamente, quis te dar
Prossegue embora em flóreas sendas
sempre ovante,
de glórias cheia no teu sólio triunfante
que antes que a morte vibre em ti
funéreo golpe seu
a natureza irá roubando o que te deu
E quanto a mim, irei cantando
o meu ideal de amor,
que é sempre novo no viçor da primavera
na lira austera em que o Senhor me faz destro
Será meu estro só do que for imortal
Tu podes bem sorrir das minhas desventuras
Pertenço à dor e gosto até de assim penar
eu tenho n'alma um grande cofre de amarguras
Eu lhe descerro as portas d'alma
que a consola
e dou-lhe as lágrimas que vão lhe mitigar o ardor
que a inspiração dos versos meus só devo à dor
Descantarei na minha lira as obras-primas do Criador
Uma color da flor desa brochando à luz do luar
O incenso d'água é que nos olhos faz a mágoa rutilar
nuns olhos onde o amor tem seu altar
e o verde mar que se debruça n'alva areia e espumejar
e a noite que soluça e faz a lua soluçar
e a estrela d'alva e a estrela vésper languescente
bastam somente para os bardos inspirar
Mas quando a morte conduzir-te à sepultura
O teu supremo orgulho em pó reduzirá
e após a morte profanar-te a formosura
dos teus encantos mais ninguém se lembrará
Mas quando Deus fechar meus olhos sonhadores
serei lembrado pelos bardos trovadores
que os versos meus hão de na lira em magos tons gemer
e eu, morto embora, nas canções hei de viver.
No mesmo ano grava também RESPOSTA
AO TALENTO E FORMOSURA; em 1907, O QUE
TU ÉS, ATÉ AS FLORES MENTEM, CLÉLIA; EM 1909, CHOÇA AO MONTE, CABOCLA
BONITA; em 1910, ADEUS DA MANHÃ e a
grande criação de Catulo: LUAR DO SERTÃO.
O
cantor gravava com o nome de Mario, só, pois já era conhecido em todo o Brasil,
graças ao prodígio que então representavam aqueles discos gravados de forma tão
rudimentar: os artistas tinham de abrir bem o peito, porque só assim se
conseguia êxito na gravação. Na voz de Mario Pinheiro – que em 1912 iria aos
Estados Unidos gravar uma série de músicas brasileiras na RCA, depois estudaria
canto em Milão para se tornar baixo-cantante e morrer pobre no Brasil – o
renome de Catulo, não parava de crescer.
No
Rio de Janeiro, o poeta conseguia o que parecia impossível: levar o violão,
instrumento até então maldito, para um salão de elite. Por intermédio do
Maestro Alberto Nepomuceno, conseguiu a 5 de Julho de 1908 a cessão do
antigo Instituto Nacional de Música,
sediado na Rua Luís de Camões, para dar uma audição. O maestro cedeu apesar dos
protestos, sobretudo do crítico Oscar Guanabarino, um dos mais respeitados
então, e que considerava uma profanação a presença de tal instrumento num salão
de música erudita.
No
prefácio de seu livro Modinhas ( Livraria Império, Rio, 1945) Catulo conta com
indisfarçável vaidade como foi aquela
sessão memorável: “Músicos, literatos, médicos, jornalistas, advogados,
engenheiros, professores, pintores, o escol de nossa sociedade, diplomatas,
como o Conde Prozoor, então ministro plenipotenciário da Rússia, tudo se
encontrava ali no meio da massa popular. Inúmeras pessoas ficaram de pé, por
não haver mais lugar. Os aplausos eram tão retumbantes que se ouviam na rua. O
crítico musical Oscar Guanabarino, que havia escrito um artigo atacando o
Maestro Nepomuceno, por haver permitido que eu introduzisse o violão naquele templo
onde só pisavam celebridades, depois do meu triunfo confessou a sua falta
saudando-me com palmas delirantes”.
Os
inimigos não perdiam oportunidade de malhar Catulo. do recital que ele deu para o Presidente Nilo
Peçanha, Catulo havia entrado no Palácio
do Catete, sede do governo, pela porta dos fundos. Era uma tolice, porque o
barco presidencial encostava num cais que havia na parte do palácio que dá para
a praia. Mas Catulo jurou que entraria pela porta da frente do palácio, para
responder a seus inimigos. Em maio de
1914, ele voltou ao palácio, a convite do Presidente Marechal Hermes. De fraque
forrado de seda, calças listradas,
violão debaixo do braço, subiu as escadarias do Catete para mais um momento de
glória. Dona Nair de Teffé Hermes da
Fonseca ( que se tornou conhecida como caricaturista, sob o pseudônimo de
Rian), daria seu testemunho sobre mais esse êxito de Catulo:
-“Essa
audição de Catulo, no Palácio do Catete, constituiu o maior sucesso a que um
verdadeiro artista poderia aspirar em toda a sua vida. Catulo, ao término de
cada canção que interpretava, recebia da culta assistência uma ovação
delirante. Todos o aplaudiam em pé. E ele bem o merecia pelo seu gênio e seu
irresistível poder de transmissão de sentimento”.
A
audição valeu-lhe mais que os aplausos: Catulo saiu de lá praticamente nomeado
para um cargo na Imprensa Nacional.
Depois que assumiu, seus inimigos fizeram chegar aos ouvidos do
presidente que Catulo comparecia à repartição uma vez por mês, para receber os
vencimentos. O presidente desfazia a intriga, desarmando seus autores:
-
Catulo é mesmo maluco! Quem mandou ir tanto ao serviço?
As
histórias dos empregos de Catulo formavam um verdadeiro anedotário. Conta
Bastos Tigre que certa vez o poeta foi surpreendido por um telegrama que exigia
sua presença no Ministério da Viação, para o qual fora nomeado pelo Ministro
Pires do Rio. O movimento de 1930 tinha
vencido, cuidava de moralizar o serviço público, plataforma de toda revolução
que se preza. O chefe de gabinete do Ministro José Américo quis saber tudo o
que ele fazia (ou não fazia) na repartição.
-
Qual o seu cargo aqui?
-
Datilógrafo.
-
E se fosse preciso realizarmos um teste de datilografia que máquina o senhor
escolheria?
Catulo
ficou embatucado com a última pergunta. O chefe de gabinete insistiu: cada
datilógrafo se habituava a um tipo de máquina, o mesmo devia ocorrer com
Catulo. Sem saída, o poeta encontrou esta:
-
Bem, nesse caso, prefiro uma Singer.
Além
dos aplausos e dos empregos, a glória lhe trazia aborrecimentos. Um deles foi
gerado pela autoria de Luar do Sertão e Caboca di Caxangá, que seu amigo João
Pernambuco (1883-1947) reivindicava. Pernambuco, exímio violonista, cujo nome
civil era João Teixeira Guimarães, e que viera em 1902 para o Rio, sustentava
que a música de Luar do Sertão era a do coco nordestino É DE HUMAITÁ, ao qual
Catulo adaptara a nova letra. Era uma verdade apenas parcial: realmente a
música original é a de uma embolada do folclore pernambucano, mas que não tinha
muito valor em si. Catulo modernizou a música, adaptou-a à sua letra, à base de
dois compassos de uma melodia de Beethoven. E até glosava o fato, por “ andar
em ótima companhia”.
O
paulista Roque Ricciardi (1894-1976), que ficou famoso como cantor com o nome
de Paraguaçu, contava que Catulo escreveu a amigos do Nordeste interessado em
descobrir a origem exata da música. A resposta veio dizendo que era mesmo
folclore pernambucano, e Catulo não ocultou a informação que recebera.
Paraguaçu lembrava que Catulo e João Pernambuco chegaram a fazer as pazes, a
seu pedido, quando participaram do show
promovido pela atriz Margarida em homenagem a Canhoto ( Américo Jacomino) que fora eleito o maior
violonista do Brasil. Mas a ferida aberta por Luar do Sertão jamais
cicatrizaria: Catulo e João Pernambuco voltar a brigar, e rompidos ficaram até
morrer.
Mais
que discussões, a composição ONTEM AO LUAR geraria uma ação cível. A letra, de Catulo, foi escrita em 1913 para
a música CHORO E POESIA que José Pedro de Alcântara fizera em 1907. Foi uma das mais populares criações da
segunda década do século XX, sobretudo na voz de Vicente Celestino, em disco da
Casa Edison, de 1918.
Com
o lançamento, em 1970, do filme Love Story ( dirigido por Arthur Hiller), a
imprensa brasileira acusou exagerada semelhança entre seu tema musical
(composto por Francis Lay) e ONTEM AO LUAR, de Catulo da Paixão Cearense.
Nem
se tocava no nome de José Pedro de Alcântara, o verdadeiro plagiado, pois a
tempo a composição vinha sendo divulgada como sendo exclusivamente de Catulo da
Paixão Cearense.
Em
1971, Heloísa Alcântara Bernardi, neta de José Pedro, moveu uma ação contra os
detentores dos direitos da obra de Catulo e, em 1976, foram legalmente obstados
o título Ontem ao Luar e a conhecidíssima letra do poeta maranhense. Até o ano
de 1989, subsiste apenas a obra CHORO E POESIA, ou seja: a música de José Pedro
de Alcântara com letra de Heloísa Alcântara Bernardi.
Fonte:
NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL CULTURAL - 1978
Fotos: GOOGLE
Vídeos:YOUTUBE
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