terça-feira, 29 de maio de 2012

100 ANOS DE LUIZ GONZAGA - PARTE II

O barulho do movimento na rua juntava-se o rumor dos bares, da boêmia malandra e constante, soldados e marinheiros do mundo inteiro. Loiros, chinos, brasileiros, alemães, russos, polacos, o diabo.
Desconfiado, Luiz começou a tocar timidamente, mas logo conseguiu companheiro, o guitarrista Xavier Pinheiro, com quem passou a tocar nos bares do Mangue, nas docas do porto, nas ruas, onde houvesse alguém disposto a ouvir e jogar alguns tostões no pires. Acabou sendo convidado para tocar em festinhas de subúrbio e nos cabarés da Lapa, após a meia-noite, quando encerrava seu “expediente” nas ruas da cidade. A sanfona garantia-lhe a sobrevivência e abria-lhe novos caminhos.
No Elite, gafieira da Praça da República, Luiz teria a primeira oportunidade de conhecer uma figura do rádio, o pianista cego Amirton Valin, de tocar seus forrós e chamegos do nordeste.  Era uma exceção, pois seu repertório continuava sendo o exigido pelo público da época: fados, tangos, valsas, foxtrotes, etc..
Foi tocando esses ritmos estrangeiros que Luiz fez as primeiras tentativas no rádio, arriscando-se nos programas de calouros de Silvino Neto e Ari Barroso. Fracasso total: nunca passava de uma medíocre nota 3. Até que um dia um grupo de estudantes cearenses chamou-lhe a atenção para o erro que cometia: por que não apresentava as músicas que crescera ouvindo e tocando, as músicas gostosas dos sanfoneiros do sertão como seu pai Januário e Mestre Duda?
Luiz, dirigindo-se a Ari Barroso, disse:
- boas noite, seu Barroso.
- Rapaz, procure um emprego.
- Seu Ari, me dá licença pra eu tocar um chamego?
- Chamego? O que é isso no rol da coisa mundana?
- O Chamego, seu Barroso, é “musga” pernambucana.
- como é o nome desse negócio?
- Vira e Mexe
- pois arrivira e mexe essa danada.
Luiz virou e mexeu com todo mundo. Ari Barroso deu-lhe nota 5 e o prêmio de 15$000. O público pediu bis, entusiasmado com a descoberta. Luiz também fazia uma descoberta:
- havia ambiente para as músicas do nosso sertão, havia um filão a explorar, até então virgem, pois não passavam de contrafrações grosseiras aqueles programas sertanejos com emboladas e rancheiras.
Não deixou o pires do Mangue, mas começou a aparecer em programas de rádio, como o de Zé do Norte, e a conhecer os compositores que admirava: Augusto Calheiros, Antenógenes Silva.
Este último, ao saber que Gonzaga tocava no Mangue, profetizou:
- pois vá se aguentando lá, que seu dia chegará.
E o dia começou a chegar quando Luiz, tocando no Mangue, foi procurado por Januário França, que precisa de um sanfoneiro para acompanhar Genésio Arruda numa gravação. Luiz hesitou:
- Será que eu acerto?
- é sopa, rapaz.
Luiz saiu-se tão bem no acompanhamento que o diretor artístico da RCA, Ernesto Matos, pediu-lhe para tocar alguma coisa em solo. Luiz tocou duas valsas e uma rancheira. Matos gostou e acabou fazendo uma concessão:
- agora meta lá esse negocinho do norte que você disse que tem.
O “negocinho”: o chamego Vira e Mexe e o xótis No meu pé de Serra.
- amanhã pode vir gravar – 14 de março de 1941, Luiz Gonzaga gravou seus dois primeiros discos como solista da sanfona. No primeiro, a mazurca Véspera de São João (Luiz Gonzaga- Francisco Reis) e a valsa Numa Serenata (Luiz Gonzaga). No segundo: a valsa Saudades de São João del Rei (Simão Jandi) e Vira e Mexe (Luis Gonzaga).
“ Um dia, chegado do Recife, meu irmão ouviu meu Vira e Mexe. Ele gostou e disse: “Mano, isto é chamego...!”. chamego quer dizer um abraço bem apertado, bem amoroso. Assim nasceu o chamego.
Os três 78 rotações que viriam a seguir manteriam a mesma proporção de música nordestina: Nós queremos uma valsa (Nássara e Frazão), Farolito (Agustín Lara)  e só então o Pé de Serra.
Durante cinco anos Luiz Gonzaga gravaria cerca de setenta músicas, das quais apenas 10 seriam chamegos. A maior parte eram valsas, polcas, mazurcas e chorinhos, quase sempre de autoria do próprio Luiz Gonzaga.
Durante cinco anos Luiz Gonzaga faria carreira no rádio carioca. Começou com um contrato na Rádio Clube, para onde o levou Renato Murce. Tocava no teatro com Genésio Arruda e nas noites de domingo, animava os dancings do centro da cidade. Deixara de vez o Mangue e a dupla com Xavier Pinheiro. Mas não esqueceu o amigo que inclusive o abrigara em sua casa; gravou algumas músicas de Xavier, divulgando-as para além dos bares frequentados por marinheiros e prostitutas.
Bom dinheiro, título de “maior sanfoneiro do nordeste” não satisfaziam Luiz. As valsas, polcas, tangos  lhe pareceram solos desenxabidos, inautênticos. Desejava fugir do ramerrão, das valsas rancheiras. Fizera outras experiências fora do rádio, e os resultados eram animadores: aplaudiam-no tocando choros, chamegos, forrós e calangos. Luiz começava a sua luta para tocar, cantar e gravar suas músicas nordestinas. Contratado pela Rádio Nacional, Paulo Gracindo, olhando para o rosto redondo de Luiz, apelidou-o de “Luiz Lua Gonzaga”.
Luiz conhece Miguel Lima que passou a colocar letra em suas músicas e entusiasmava Luiz a gravá-las. Mas a RCA não lhe dava permissão para cantar. Luiz armou um estratagema: anunciou que fora convidado para, usando um pseudônimo, gravar cantando na Odeon.
Vitório Lattari, diretor artístico da RCA, cedeu diante da ameaça e saiu Dança Mariquinha, mazurca de Luiz e Miguel Lima.
Ao receber o dinheiro das gravações Luiz descobriu que o cantor vendia mais do que o sanfoneiro. Em 1945, ainda em parceria com Miguel Lima, lançou dois grandes sucessos: Penerô Xerém e Cortando o Pano
Apesar de ótimo compositor e de bom companheiro, Miguel Lima não dava valor àquelas ideias de Luiz em querer cantar músicas do norte, de ritmo ainda desconhecido no restante do Brasil. Luiz resolveu então procurar um parceiro nordestino. Procurou Lauro Maia, mas esse, com muita modéstia não quis tomar parte na iniciativa proposta por Luiz, mas indicou-lhe um cunhado para ajudá-lo: Humberto Teixeira.
Cearense de Iguatu, nascido aos 5 de Janeiro de 1915, onde estudou as primeiras letras e aprendeu bandolim e flauta, Humberto Teixeira fez o curso secundário em Fortaleza. Naquela época atuou como flautista-aluno durante algum tempo na Orquestra Iracema, dirigida pelo maestro Antonio Moreira.
Em 1934, dois anos após a sua chegada ao Rio de Janeiro, foi um dos vencedores do concurso de músicas carnavalescas promovido pela revista “O Malho”. Sua música, Meu pedacinho, classificou-se ao lado das de Ari Barroso, Cândido das Neves, José Maria de Abreu e Ari Kerner. Mas essa vitória não foi suficiente para que Humberto alcançasse gravação. Seu primeiro êxito em gravação foi Sinfonia do Café, feita especialmente para Muiraquitã, espetáculo encenado no Teatro Municipal.
Recém-formado pela Faculdade Nacional de Direito, Humberto ensaiava, paralelamente às atividades musicais, os primeiros passos de advogado, num escritório da Avenida Calógeras. E foi lá,  numa tarde de agosto de 1945, que recebeu o moreno simpático, de cabeça chata e sorriso rasgado, buscando um parceiro para a empreitada de lançar no Rio de Janeiro a autêntica “música do norte”.
Do longo bate-papo que se prolongou noite adentro, surgiram os primeiros compassos de Pé de Serra e a “sanfonização” de uma linda peça que viria a se transformar na imortal Asa-Branca. O mais importante daquele encontro, porém, foi o comum acordo a que chegaram a respeito do baião: entre os inúmeros ritmos nordestinos, aquele era o mais “estilizável” e “urbanizável”. O mais apropriado, portanto, em suas características e tipicidade, para lançamento da campanha musical que os dois resolveram deflagrar a partir daquele momento.
Assim nasceu o Baião (“eu vou mostrar pra vocês como se dança um baião...”) primeiro desse gênero gravado em todo o mundo. Numa batida uniforme do princípio ao fim, o baião de Humberto e Luiz substituía os instrumentos originais (viola, pandeiro, botijão e rabeca) pelo acordeão, triângulo e zabumba. Resultado: uma melodia singela, de sabor gregoriano, com versos simples e impregnados de modismos tipicamente nordestinos.
Foi uma revolução. A música popular brasileira, que então oscilava entre o samba-canção e os ritmos importados, foi surpreendida por algo completamente novo e gostoso –o baião – que deu uma sacudida em quatro séculos de nossa música.
Os êxitos da dupla se sucederam: MANGARATIBA, JUAZEIRO, PARAÍBA, QUI NEM JILÓ, XANDUZINHA, BAIÃO DE DOIS e muitos outros. Em toda parte só se ouvia o baião e compositores do sul como Hervê Cordovil e Waldir Azevedo, logo aderiram. Mas em 1950 a parceria se desfez: Luiz deixou a UBC e foi para a SBACEM. Humberto elegia-se deputado federal, passando a lutar pelo direito autoral e fazendo aprovar pelo Congresso a Lei Humberto Teixeira, possibilitando as excursões das célebres “caravanas” musicais por todo o mundo.
Humberto Teixeira divide com Luiz Gonzaga a glória do lançamento do baião.  Eleito em 1950, 1951 e 1952 “o melhor compositor nacional”, pela Revista do Rádio”, foi recebido pelo então Presidente Getúlio Vargas. Em 1956 com o compositor João de Barro fundou a Academia Brasileira de Música Popular.
Em 1949, em sua segunda viagem ao Recife, Luiz Gonzaga foi abordado por um estudante de medicina que sabia todas as suas músicas e conhecia muito bem os costumes do sertão. Além disso, cantarolou algumas composições suas que deixaram Luiz “arrepiado”. Este estudante era José de Souza Dantas filho, o Zé Dantas.
Luiz resolveu na mesma hora gravar as coisas de Zé Dantas. O moço só fez uma exigência: que seu nome não aparecesse, pois sua família não iria gostar. Luiz não atendeu ao pedido do novo amigo, que em 1950 vinha para o Rio de Janeiro fazer  estágio em obstetrícia, logo tornando-se médio efetivo.  A família também não ficou zangada, pois sabia que Zé Dantas continuava um moço sério.
Foi na mesma época em que gravava suas últimas composições com Humberto Teixeira que Luiz lançou Zé Dantas: Vem Morena (outubro de 1949), A dança da moda (abril de 1950), Cintura fina (maio de 1950), A volta da Asa-branca (agosto de 1950). Com o novo parceiro faria música brejeiras, como o Xótis das Meninas, mas principalmente, reafirmando sua intenção de cantar o nordeste em seus aspectos curiosos: ABC do Sertão, Vozes da Seca, Algodão, Paulo Afonso, músicas voltadas para os problemas sociais do nordeste e do país, hoje são encaradas como precursoras da chamada “música de protesto”. Um “protesto lírico”, nas palavras de Luiz Gonzaga.
Essa música revela tendências pioneiras do cancioneiro popular, no sentido do “protesto social”. Feita na época que uma grave seca assolava o nordeste, criticava as campanhas do sul angariando ajuda em gêneros alimentícios, roupas, etc... enquanto se desenvolvia uma “indústria da seca”, com muita gente enriquecendo graças aos desvios de verbas e nada se fazia para resolver o problema.

VOZES DA SECA
Seu douto os nordestino
Têm muita gratidão
Pelo auxílio dos sulista
Nessa seca do sertão
Mais douto uma esmola
A um home qui é são
Ou lhe mata de vergonha
Ou vicia o cidadão.

É por isso que pidimo
Proteção a vosmicê
Home pur nóis escuído
Para as rédias do pudê
Pois douto dos vinte estado
Temos oito sem chuvê
Veja bem, quase a metade
Do Brasil tá sem cume

Dê serviço a nosso povo
Encha os rio de barrage
Dê cumida a preço bom
Não esqueça a açudage
Livre assim nóis da ismola
Que no fim dessa estiage
Lhe pagamo até os juru
Sem gastar nossa corage

Se o douto fizer assim
Salva o povo do sertão
Se um dia a chuva vim
Que riqueza pra nação
Nunca mais nóis pensa em seca
Vai dá tudo nesse chão
Cúmu vê, nosso distino
Mecê tem na vossa mão.

A parceria com Zé Dantas terminaria com a morte prematura do médico pernambucano em 1962 aos 41 anos. Morria numa época em que o baião e a música sertaneja não mais dominavam as grandes cidades, permanecendo vivos, entretanto, no interior do país.
Compositor, sanfoneiro, cantor famoso, Luiz não tinha quem cuidasse de suas roupas e lhe fizesse o jantar. Remediava a situação morando com a família de seu irmão Zé, que também fazia carreira na música popular.  Mas queria mesmo casar, ter uma família e sua vida sossegada. Namorou algumas colegas de rádio e em 1948 casou-se com a pernambucana Helena das Neves, contadora de um laboratório do Rio de Janeiro. O casal teve dois filhos Rosinha e Luiz Gonzaga Jr.
Segundo a Enciclopédia Wikipédia, Rosinha e Luiz Gonzaga Jr. eram filhos adotivos do casal, uma vez que Helena não podia engravidar.
Em 1945 uma cantora de coro chamada Odaléia Guedes dos Santos deu à luz um menino, no Rio. Luiz Gonzaga mantinha um caso há meses com a moça - iniciado quando ela já estava grávida. Luiz, sabendo que sua amante ia ser mãe solteira, assumiu a paternidade da criança, adotando-o e dando-lhe seu nome: Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior. Odaléia, que além de cantora de coro era sambista, foi expulsa de casa por ter engravidado do namorado, que não assumiu a criança. Ela foi parar nas ruas, sofrendo muito, até que foi ajudada e descobriu-se seu talento para cantar e dançar, e ela passou a se apresentar em casas de samba no Rio, quando conheceu Luiz.  A relação de Odaléia, conhecida por Léia, e Luiz, era bastante agitada, cheia de brigas e discussões, e ao mesmo tempo muita atração física e paixão. Após o nascimento do menino, as brigas pioraram, já que havia muito ciúmes entre os dois. Eles resolveram se separar com menos de 2 anos de convivência. Léia ficou criando o filho, e Luiz,às vezes, ia visitá-los.
Em 1948 Léia morreu de tuberculose, para desespero de Luiz. O filho deles, apelidado de Gonzaguinha, ficou órfão com 2 anos e meio. Luiz queria levar o menino para morar com ele e Helena, e pediu para a mulher criá-lo como se fosse dela, mas Helena não aceitou, juntamente com sua mãe, Marieta, que achava aquilo um absurdo, já que nem filho verdadeiro de Luiz era. Luiz não viu saída: Entregou o filho para os padrinhhos da criança, Leopoldina e Henrique Xavier Pinheiro, criá-lo, no Morro do São Carlos. Luiz sempre visitava a criança e o menino era sustentado com a assistência financeira do artista. Luizinho foi criado como muito amor. Xavier o considerava filho de verdade, e lhe ensinava viola, e o menino teve em Dina um amor verdadeiro de mãe.

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural - 2ª Edição-  1977



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