segunda-feira, 22 de maio de 2017

TRIBUTO A NOEL ROSA - O POETA DA VILA - I




Dia 11 de Dezembro de 1910-  O chalé da Rua Teodoro da Silva, 130, em Vila Isabel, bairro da classe-média  do Rio de Janeiro, estava apinhado de gente: ia nascer o primeiro filho do casal Manuel e Marta de Medeiros Rosa. Lembrando-se de sua infância cheia de trabalhos e dificuldades, certamente Manuel desejava para o filho uma vida sem preocupações. Dona Marta, entre as aflições do parto, quem sabe não pensaria num filho doutor, como fora seu pai, o médico e poeta Eduardo Correia de Azevedo? No entanto, se esses pensamentos ocorreram, logo foram superados pela preocupação do momento: o parto prolongava-se difícil, Dona Marta sofria  e os médicos José Rodrigues da Graça Melo e Heleno Brandão, amigos da família, não tinham alternativa: se não forçassem o nascimento, mãe e filho poderiam vir a morrer. E assim, nasceu Noel de Medeiros Rosa, marcado pelo fórceps que lhe fraturou e afundou o maxilar inferior, provocando também paralisia parcial no lado direito do rosto. Enfim, era até um defeito pequeno para um parto tão difícil e talvez, com o tempo, ele se recuperasse naturalmente. Mas importante era a boa saúde do menino, que aos dez meses venceria um concurso de robustez promovido pela Nestle.




O pai de Noel, por esse tempo, exercia a gerência de uma camisaria, com uma promessa: caso evitasse a falência do negócio, ganharia sociedade na firma. A falência foi evitada, mas a promessa não foi cumprida.  Desgostoso, Manuel uniu-se a um companheiro  e fundou a sua própria loja de roupas para homens. Veio a Primeira Guerra Mundial, o comércio ficou difícil e Rodrigues, Medeiros & Cia. faliram. Endividado, Manuel de Medeiros Rosa partiu para o interior de São Paulo: ia ganhar dinheiro como agrimensor nas fazendas de café de Araçatuba. Na Rua Teodoro da Silva, Dona Marta fundou uma escolinha, o Externato Santa Rita de Cássia, para sustentar os dois filhos ( a 29 de dezembro de 1914 nasceu Hélio, o único irmão de Noel).
O defeito no rosto acentuava-se à medida que o menino crescia. Aos seis anos, quando já aprendia as primeiras letras com a mãe, foi operado, o mesmo acontecendo seis anos depois. Mas a ortopedia da época não conseguiu nada. Noel estava marcado para toda a vida. Foi no Colégio São Bento, onde se matriculou a 28 de dezembro de 1923, que Noel, um menino de 13 anos, ganhou o impiedoso apelido de  “queixinho”. Ficava quieto, remoendo a amargura que lhe causava o defeito. Mas já revelava a ambiguidade do Noel adulto: em outros momentos falava pelos cotovelos, inventando brincadeiras e contando piadas. No recreio, tocava no violão as músicas recém-aprendidas. Na verdade, o primeiro instrumento que tocou foi o bandolim de Dona Marta, na mesma época em que entrava para o São Bento. E, foi graças ao bandolim que experimentou, pela primeira vez, a sensação de importância.  Tocava, e logo se reuniam ao seu redor, maravilhados com a sua habilidade, os guris da escola.
Do bandolim ensinado pela mãe, Noel passou para o violão, instrumento que o pai tocava quando vinha visitar a família. Amigos, vizinhos e parentes incentivaram o adolescente, ensinando-lhe valsa e canções. Aos quinze anos já dominava o instrumento, à sua maneira: solava a linha melódica sem introduzir acordes, tal como aprendera no bandolim. Hélio, quatro anos mais moço, acompanhava Noel, primeiro a cavaquinho, depois ao violão. Os irmãos Rosa ganhavam fama de músicos em Vila Isabel.
Aos poucos, o violão foi substituindo os livros. Noel estudava apenas o suficiente para passar de ano e fazia suas primeiras aparições no Ponto de Cem Réis, esquina da Rua Souza Franco com o Boulevard 28 de Setembro. Ali, distribuídos pelos cafés-bilhares Rio Clube e Vila Isabel, faziam ponto os “rapazes folgados” do bairro, conversando, bebendo e fazendo música. E Noel, um “menino de família”, tomando as primeiras cervejas, fazendo as primeiras serenatas, enfrentando as primeiras aventuras amorosas. Mas não deixava de enfrentar também os exames escolares. Aos dezoito anos, terminado o ginásio no São Bento, iniciou os preparatórios para a Faculdade de Medicina. Com dificuldade, Manuel, agora trabalhando na Prefeitura do Rio de Janeiro, e Dona Marta conseguiam manter o filho em casa para estudar. Reprovado em 1930, só no ano seguinte ingressaria na faculdade, para alegria dos pais: Noel ia ser doutor!

NOEL, O BANDO DE TANGARÁS E A MODA SERTANEJA

Na época em que Noel dava os primeiros passos na música, a moda nos clubes elegantes do Rio de Janeiro eram os conjuntos sertanejos. Em Janeiro de 1927, chegaram do Recife os Turunas da Mauriceia (Augusto Calheiros, João Miranda, Romualdo Miranda, João Frazão e Manuel de Lima), fazendo sucesso com suas canções, toadas e sobretudo emboladas.  Na Vila, nem só Noel se entusiasmou com os músicos nordestinos.  Um grupo de alunos do Colégio Batista, que se reunia no palacete de Eduardo Dale, diretor da Casa Pratt, acompanhou a moda, fundando seu próprio conjunto: Flor do Tempo. Os ensaios eram na casa de Carlos Braga, filho do diretor da fábrica Confiança Industrial instalada na Rua Souza Franco, perto da Teodoro da Silva.
Em 1929, os rapazes da Flor do Tempo receberam convite para gravar. Selecionaram-se então os elementos mais indicados para a tarefa: Carlos Braga, Henrique Brito, Álvaro Miranda Ribeiro (Alvinho) e Henrique Foréis Domingues, já nessa época conhecido como ALMIRANTE. Acharam, entretanto, que era pouca gente e resolveram convidar o rapaz magrinho que estava sempre no Ponto de Cem Réis tocando seu violão: NOEL ROSA. Foi Carlos Braga quem sugeriu o nome do novo grupo – BANDO DE TANGARÁS - ao mesmo tempo que adotava o pseudônimo de JOÃO DE BARRO, pois não ficaria bem para um filho de industrial andar às voltas com a música popular. Isso era coisa de malandro do morro, pensavam as famílias da época. Cantar em rádio ou gravar disco não era considerado atividade séria e responsável, mas uma brincadeira excêntrica de quem desejava aparecer, fazer-se notar.  Os Tangarás, para se diferenciar da “gente de rádio”, apresentavam-se de graça, não aceitando nem mesmo o reembolso do dinheiro gasto com a condução, quando iam cantar em clubes distantes.
Em maio de 1929 Noel participava das primeiras gravações dos Tangarás: Galo Garnizé, embolada, e Anedotas, cateretê, ambas de Almirante.  E a 27 de julho, na Noite Regional Brasileira, do Tijuca Tênis Clube, apresentava sua primeira composição, a embolada MINHA VIOLA. Em seguida fez a toada FESTA NO CÉU,  sempre influenciado pela moda sertaneja.
O Bando dos Tangarás seria sucesso por muito tempo. Apresentando-se em cinemas, rádios e teatros, contaria com a colaboração de outros artistas importantes: Carolina Cardoso de Meneses, Luperce Miranda, Hélio Rosa, amadores, só admitiram receber o dinheiro da venda de discos. E Noel estava sempre lá tocando seu violão. Mas a partir de COM QUE ROUPA?  Ele não pertencia mais ao bando, pertencia ao samba.



FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
VÍDEOS: Youtube

NOEL ROSA - MEDICINA OU SAMBA - II







Em 1931, Noel entrou para a faculdade de Medicina e alcançou sucesso na música. Mas seria impossível conciliar as duas atividades, como ele mesmo conta:
- entrei para a faculdade de medicina no firme propósito de ser médico. Mas não tardou que me convencesse de que a medicina era uma carreira absorvente. Estudos incessantes, profundos, que não poderiam ser jamais abandonados, que exigiam todas as atenções. Eu devia continuar com o samba, deixando a medicina? Ou devia renunciar ao samba? Era uma alternativa dramática (...). Colocado na contingência de optar, uma vez que as duas atividades não podiam ser conciliadas, escolhi o samba.
Em 1932 já não frequentava mais as aulas. Da medicina, a única coisa que aproveitou foi a inspiração para fazer um “SAMBA ANATÔMICO”, assim mesmo com gravíssimo erro de fisiologia:
“coração, grande órgão propulsor, transformador do sangue venoso em arterial”... Contrariando toda a tradição lírica, Noel afirmava “ sem nenhuma pretensão, que a paixão, faz dor no crânio, mas não ataca o coração”. Esse “Samba Anatômico”, um dos mais originais de Noel, contava, na segunda parte, a história do sujeito:  “com mania de grandeza” que “viajou a procurar de norte a sul alguém que conseguisse encher-lhe as veias com azul de metileno pra ficar com sangue azul”...

OS PRIMEIROS E BEM TRAÇADOS SAMBAS DO POETA DA VILA

Perdia-se um mau médico, ganhava-se um bom sambista. Mesmo em 1931 quando ainda frequentava a faculdade, Noel gravou mais de vinte músicas que já revelavam o excelente compositor e a insuperável inventividade de suas letras. Seus sambas trazem sempre alguma coisa surpreendente: em CORDIAIS SAUDAÇÕES é a letra toda, estrutura em forma de carta:
“Estimo que este mal traçado samba,
Em estilo rude, na intimidade,
Vá te encontrar gozando saúde,
Na mais perfeita felicidade(...)
Espero que notes bem:
Estou agora, sem um vintém.
Podendo, manda-me algum.
Rio, 7 de setembro de 31”.
Em MULATA FUZARQUEIRA, refere-se à própria palavra escrita: “Meu amô não tem R, mas é amô debaixo d’água”.
A propósito da hora de verão, fez os trocadilhos mais complicados em QUE HORAS SÃO?
“Minha mulher sempre quer me dar pancada,
Quando eu olho o mostrador
Do relógio da empregada.
E eu danado com intriga e com trancinha
Arranquei hoje o cabelo,
do relógio da vizinha”.
Trocadilho era o seu forte – em TIPO ZERO (1934) comete esta proeza:
“Você é um tipo, que não tem tipo,
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo,
Passou a ser um tipo que ninguém esquece (...)
Você ficou agora convencido
De que seu tipo já está batido
Pois o seu tipo é o tipo
do tipo esgotado”.




Em 1931 Noel gravou  GAGO APAIXONADO, onde repete cada sílaba das palavras, enquanto Luís Barbosa o acompanha, batendo com um lápis nos dentes. Foi essa música que aproximou Noel e Marília Batista, sua intérprete favorita. É Marília quem conta: “Meu pai me levou a uma festa no Grêmio Esportivo 11 de Junho, onde eu ia me apresentar na hora de arte cantando a canção de minha autoria Preta Velha. Levava comigo o violão que papai me dera, caríssimo instrumento vencedor de um concurso na Espanha. Quando terminou minha apresentação, descansei o violão sobre uma mesa. De repente, ele desapareceu. Aí me disseram que o instrumento estava com um rapaz que ia cantar naquele instante. Contendo a raiva, ouvi Lamartine Babo anunciar “ um rapaz gago, mas bom compositor”,  pedindo que a plateia não risse do coitado. Entrou Noel cantando:
“ Mu...mu...mulher em fim fi...fizeste um estrago,
eu de nervoso esto...tou fi...ficando gago”.”
A plateia louca para rir, continha-se a custo a fim de não magoar o rapaz...



E Noel divertia os frequentadores de clubes, os espectadores do cinema Eldorado e os ouvintes da nova maravilha do século XX: o rádio.
As primeiras emissoras de rádio do Brasil surgiram em setembro de 1923, Rádio Sociedade, e outubro de 1924, Radio Clube do Brasil. Sem publicidade, de baixa potencia, funcionando poucas horas por dia, sobreviviam com a abnegação dos dirigentes e a colaboração espontânea dos artistas. No início da década de 30 o panorama já era bem diferente: cinco emissoras (as pioneiras, mais a Mayrink Veiga, a Educadora e a Philips) transmitiam regularmente, mantidas por uma publicidade irregular e primária, chamada ainda de “reclame”. Faziam sucesso e Noel sabia disso:  o rádio começava a dominar. As meninas do bairro já não tinham como único e invariável assunto os galãs de cinema. Muitas já se esqueciam do Ramón Navarro, do John Gilbert e outros amantes da tela e falavam dos “ases” do rádio: - compenetrei-me de que era preciso entrar para o rádio. E não me foi difícil. Fiz minha estreia na Rádio Educadora, com o Bando de Tangarás... Era, enfim, um  “astro” do microfone. As mocinhas bonitas, e mesmo as feias, ouviam-me e, quando me encontravam, cravavam em mim um olho curioso.  Mais tarde estive na Mayrink, e por último, no Programa Casé, onde me demorei por um largo período.
O programa de Ademar Casé surgiu a 14 de fevereiro de 1932, na PRAX  Rádio Philips, e ficava no ar das 11 da manhã até meia-noite todas as terças, quintas e domingos. Numa pequena sala da Rua Sacadura Cabral comprimiam-se um piano, quatro ou cinco músicos, o locutor, o diretor, o técnico de som, e o contrarregra Noel Rosa, chamando cantores, anotando nomes de músicas e compositores, baixando e subindo o microfone e fazendo uma última correção nos versos que daí a pouco iriam para o ar...
Noel também cantava, apesar de sua voz fraca, num tempo em que reinavam os vozeirões de Francisco Alves e Vicente Celestino. Sua maneira de dizer músicas como Gago Apaixonado
agradou o público. Mas o grande sucesso eram os improvisos que fazia com a melodia  
DE BABADO, usando-a para desafios de que participavam Almirante, Patrício Teixeira, Marília Batista e João de Barro. E no meio do desafio ele improvisava jingles do patrocinador, o Dragão da Rua Larga: “você é mais conhecido, do que níquel de tostão, mas não pode ficar mais popular, do que o Dragão”...
Os artistas do Programa Casé ganhavam 25$000 por semana. Só trabalhavam com cachê tão baixo porque gostavam de se reunir na rádio.  Despreocupados, repetiam as músicas, sem renovar o repertório. Certa vez Casé deu ordem para que não houvesse repetição. Todos reclamaram, exceto Noel, que apoiou a ideia com veemência. Na semana seguinte, ele deu os títulos das músicas que cantaria e Casé ficou satisfeito ao ver que sua ordem fora acatada. O programa foi para o ar e as músicas que Noel cantou só tinham de novo os títulos. Eram as mesmas de sempre...
Em 1935, Noel passou a trabalhar na Rádio Clube do Brasil, fazendo o programa humorístico “Conversa de Esquina”, montado com piadas de revistas e almanaques. Mais original foi a paródia que fez do Barbeiro de Sevilha – “ O barbeiro de Niterói”, utilizando  músicas populares da época. O sucesso animou Noel a tal ponto que o incentivou a fazer outras revistas radiofônicas, sempre parodiando composições populares muito conhecidas e de grande sucesso, inclusive de sua autoria.  Em “LADRÃO DE GALINHA”, uma das “vitimas” era o samba “Foi Ela” de Ari Barroso: “ quem roubou o meu capão de estimação?  Foi ele... Quem abriu o portão para o ladrão? Foi ela... e ” PALPITE INFELIZ ,do próprio Noel: “ A Genoveva não sabe o que diz/, e nunca soube onde tem o nariz/. Salve as aves, os ovos, as ovas, e as cozinheiras bem novas/, às quais sempre quis um grande bem”.
Na mesma linha, Noel fez  “A NOIVA DO CONDUTOR”, desta vez com músicas originais  do maestro Arnold Glückmann, contando o acidentado e cômico namoro do condutor de bonde Joaquim com Helena, filha do Dr. Henrique. O Casé, a Conversa de esquina e as operetas foram os  programa fixos de Noel. Mas em todas as rádios, nos mais diferentes programas, o cantor da Vila se apresentou, ganhando pequenos cachês. Conhecido e admirado por todos que faziam música popular, era requisitado para parcerias e convidado para cantar  nos mais diversos conjuntos.




FELICIDADE

FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
VÍDEOS: Youtube

NOEL ROSA E "OS BAMBAS DO ESTÁCIO" - "ASES DO SAMBA" - e "GENTE DO MORRO" -III





O grande cartaz da época era Francisco Alves. Com Ismael Silva e Nilton Bastos, formou os “Bambas do Estácio”, responsáveis, entre outros, pelo famoso SE VOCÊ JURAR.           Nilton faleceu em setembro de 1931, e o conjunto terminou. Em março de 1932, Chico Alves formava com Mário Reis e Lamartine Babo, os “Ases do Samba”. O sucesso conseguido em São Paulo levou-os a programar uma excursão ao Rio Grande do Sul. Mas surgiram problemas na escolha dos acompanhantes. Finalmente no dia 29 de abril, apresentaram-se em Porto Alegre, no Cine-Teatro Imperial:  Chico Alves, Mário Reis, Noel Rosa, o pianista Nonô (Romualdo Peixoto) e o bandolinista Peri Cunha. A temporada estendeu-se por várias cidades do interior gaúcho, Florianópolis e Curitiba. Só voltaram ao Rio em Junho, momento em que Chico Alves resolveu criar novo trio de compositores, com Ismael Silva e Noel Rosa. ADEUS,  GOSTO MAS... NÃO É MUITO, ASSIM, SIM e PARA ME LIVRAR DO MAL foram as primeiras composições dos novos parceiros.
A relação entre Noel e Francisco Alves não eram apenas musicais. Noel comprou de Chico um Chevrolet usado, e, para pagar, fez o seguinte trato: Chico controlaria seus rendimentos com shows e direitos autorais das gravadoras, separando 50% para pagamento da dívida.  Além disso, algumas composições do trio eram apenas de Noel  e Ismael, entrando Chico Alves apenas com o nome e a fama.  Alguns versos de Noel revelam o clima da parceria:
 “antes da vitória/ não se deve cantar glória./ Você criou fama,/ deitou-se na cama./ Eu que não estou dormindo/vou subindo.../ vou subindo.../ enquanto você vai decaindo (VITÓRIA, de Noel e Nonô).  Ou estes versos inéditos “ e no fim da irradiação/ Vem a voz do violão/ que é mais antiga que o Casé/ Dona da minha vontade/ saiba Vossa Majestade/ que cantarei o que quiser”. “A VOZ DO VIOLÃO “ é referência a Chico Alves.
Cantaria o que quisesse e com que quisesse, tanto que, em março de 1934, integrava, com Benedito Lacerda, Russo do Pandeiro, Canhoto e outros, o grupo “Gente do Morro”, numa excursão  a Campos, Muquie Vitória. A viagem fracassou, Noel Rosa ficou algum tempo na capital do Espírito Santo e só voltou quando acabou o pouco dinheiro  que ganhara na excursão (pois sua mãe suspendera definitivamente as remessas).






                                                                 AS PASTORINHAS

“Noel era o tipo de sujeito que se dava com todo mundo”, afirma seu amigo e caricaturista Antônio Nássara. Além disso, sua facilidade para fazer versos e rimas atraía sempre novos parceiros. Obras-primas surgiram de seu único trabalho  com Heitor dos Prazeres ( PIERRÔ APAIXONADO), com Orestes Barbosa (POSITIVISMO),  com André Filho (FILOSOFIA), e Rubens Soares (É BOM PARAR). Hervê Cordovil, Lamartine Babo e João de Barro (PASTORINHAS) foram constantes parceiros em músicas de carnaval. Mesmo com Kid Pepe, boxeador famoso por ameaçar locutores de rádio, Noel fez  O ORVALHO VEM CAINDO e TENHO RAIVA DE QUEM SABE,  esta última , ao ser gravada, foi apresentada como sendo de Pepe e Zé Pretinho. Por ter reclamado,  Almirante conta que “Noel acabou levando um bofetão de Pretinho”.  A resposta não demorou: Noel fez o samba SÉCULO DO PROGRESSO, onde “o revólver teve ingresso pra acabar com a valentia”.



                                                          PIERRÔ APAIXONADO


 FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
VÍDEOS: Youtube



NOEL ROSA E VADICO - IV




                                                            FEITIO DE ORAÇÃO


Mas o grande parceiro de Noel foi Osvaldo Gogliano, o Vadico. Conheceram-se em 1932 no estúdio da Odeon apresentados  por Eduardo Souto.  E logo frutificou o encontro do Poeta da Vila com o compositor paulista. Vadico tocou uma melodia que compusera e Noel escreveu  FEITIO DE ORAÇÃO:
Quem acha vive se perdendo
Por isso agora vou me defendendo
Da dor tão cruel desta saudade
Que por infelicidade
O meu pobre peito invade.

Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
E sorrir de nostalgia
Dentro da melodia.

Por isso agora lá na Penha eu vou mandar
Minha morena pra cantar com satisfação
E com harmonia essa triste melodia
Que é meu samba em feitio de oração.

O samba, na realidade,
Não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Sentirá que o sambo então,
Nasce do coração.


A segunda música de Vadico e Noel foi uma segunda obra-prima:

“Quem nasce lá na Vila,
Nem sequer vacila
Ao Abraçar o samba,
Que faz dançar os galhos do arvoredo
E faz a lua nascer mais cedo”







Esse FEITIÇO DA VILA, verdadeiro  hino de Vila Isabel, acabou inserido no que se chamou  “polêmica Noel  x Wilson Batista”. Tudo começou quando Noel ouviu o samba  Lenço no Pescoço: “meu chapéu  de lado,/ tamanco arrastando,/ lenço no pescoço,/ navalha no bolso,/ eu passo gingando./  Provoco desafio,/ eu tenho orgulho de ser vadio.”  Noel não gostou da exaltação da malandragem e, sem conhecer Batista, compôs  RAPAZ FOLGADO:

“Deixa de arrastar o teu tamanco,
Pois tamanco nunca foi sandália.
Tira do pescoço o lenço branco.
Compra sapato e gravata,
Joga fora essa navalha
Que te atrapalha.
Com chapéu de lado desta rata,
Da polícia quero que te escapes
Fazendo um samba-canção
Já te dei papel e lápis;
Arranja um amor e um violão”.

Tempos depois quando Noel e Vadico  lançara m FEITIÇO DA VILA, Batista voltou à carga com Conversa Fiada: “ é conversa fiada/ dizerem que os sambas/ na Vila têm feitiço:/eu fui ver pra crer/ e não vi nada disso”.  A reposta de Noel foi o famoso PALPITE INFELIZ:

“ Quem é você que não sabe o que diz?
“Meu Deus do Céu que palpite infeliz”.

Wilson Batista ainda fez Frankstein da Vila e Terra de cego, atacando Noel pessoalmente. Mas tudo não passou de brincadeira de sambistas e os dois “adversários” tornaram-se grandes amigos.
A parceria com Vadico ainda produziu oito sambas, entre os melhores de Noel:
MAIS UM SAMBA POPULAR - PRA QUE MENTIR - CONVERSA DE BOTEQUIM – SÓ PODE SER VOCÊ – TARZAN, O FILHO DO ALFAITATE – CEM MIL RÉIS – PROVEI – QUANTOS BEIJOS,  todos demonstrando perfeito entrosamento entre letra e música.
O fato de, em geral, ser impossível distinguir os sambas de parceria dos sambas unicamente de Noel, mostra que o autor da letra influenciava o parceiro músico, Noel não era apenas um excelente  letrista: era um compositor popular completo.  Com música e poesia ele se despede da amada:
“Até amanhã, se Deus quiser
Se não chover eu volto pra te ver, ó mulher
De ti gosto mais que outra qualquer.
Não por gosto, o destino é que quer”

Samba que deu forma definitiva à despedida. Em versos simples e perfeitos, que definem sua maneira romântica de encarar a vida e a morte ele falou  da despedida definitiva:

                                                               FITA AMARELA
 Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela, gravada com o nome dela.
Se existe alma, se há outra encarnação,
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão
Não quero flores, nem coroas com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho.”

Meus inimigos
Que hoje falam mal de mim
vão dizer que nunca viram
uma pessoa tão boa assim.




 NOEL ROSA  -FRANCISCO ALVES - MARIO REIS - 


Observando a alta sociedade:  “que promove festivais de caridade em nome de qualquer defunto ausente”, Noel pergunta: ONDE ESTÁ A HONESTIDADE?  Parece que não a encontrou, pois ao relacionar as coisas típicas do país ela não foi incluída:
 “ baleiro, jornaleiro, motorneiro, condutor e passageiro, prestamista e vigarista.../ E o bonde que parece uma carroça... /coisa nossa.../ Muito nossa/  O samba, a prontidão e outras bossas são nossas coisas,.../ são coisas nossas!”.
A relação inclui ainda a “ menina que namora na esquina e no portão”, o “rapaz casado com dez filhos, sem tostão”, esquecendo de mencionar quase que somente o futebol...
Coisa nossa é ainda JOÃO NINGUÉM, “que não é velho, nem moço./Come bastante no almoço/ para esquecer do jantar” e “ não trabalha um só minuto/, mas joga sem ter vintém e vive a fumar charuto”.  Noel Rosa retratou esse tipo humano que “nunca se expôs ao perigo, nunca teve um inimigo, nunca teve opinião”.
A música de Noel adequava-se perfeitamente ao espírito das letras:
Ela é brejeira em COM QUE ROUPA? MULHER INDIGESTA. VOCÊ VAI SE QUISER. MULATO BAMBA, versos que fazem a caricatura de tipos ou situações. Ela é lenta e melancólica em ÚLTIMO DESEJO e SILÊNCIO DE UM MINUTO. EU SEI SOFRER, letras tristes e sentimentais, que são a característica principal de suas últimas composições.
Fazendo caricaturas, exaltando seu bairro, criticando a sociedade, descrevendo tipos e situações urbanas, falando de seus encontros e desencontros amorosos, Noel é sempre o mesmo poeta inovador. Rompe as convenções poéticas, renova o vocabulário, encontra rimas surpreendentes, traz novos temas, permanecendo como um dos maiores letristas na história da nossa música popular.





FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
VÍDEOS: Youtube

NOEL ROSA - SEUS AMORES RETRATADOS EM SAMBA -V






Noel era feio, baixo e magro, mas sua inteligência e seus sambas cativavam as mulheres. Primeiro foram as meninas “sérias” dos bairros: Clara, que não durou muito, pois descobriu que Noel sai de sua casa na Rua Barão de Bom Retiro, para a de Fina (Josefina), na Rua Moju.  Inspirado em Fina, Noel fez dois sambas SEU RISO DE CRIANÇA:  “ seu riso de criança/ que me enganou/ está num retratinho/ que eu guardo e não dou”; e TRÊS APITOS , quando  ela se tornou operária  da fábrica de botões Hachiya. Como Fina escondesse sua profissão, Noel mal informado, achou que ela trabalhava numa fábrica de tecidos.



                                          A MUSA INSPIRADORA DE "TRÊS APITOS"


Em 1932, a vida de Noel já estava mais ligada aos cabarés da Lapa do que às casas simples de Vila Isabel. Lá conheceu Julinha Bernardes, mulher mais velha, mais alta, elegante, cabelo oxigenado e rosto doce, que morava na Penha. Mais tarde Noel confessaria: “ faz hoje quase um ano que eu não vou visitar meu barracão lá da Penha, que me faz sofrer e até mesmo chorar por lembrar a alegria com que eu sentia o forte laço de amor que nos prendia” (MEU BARRACÃO).  O laço era frágil: Julinha era possessiva e maternal com Noel , mas bebia muito fazendo escândalos, tentando suicídio e ligando-se indiscriminadamente a outros homens.  E Noel, sempre atento ao que pudesse dar samba, ordenava VAI PRA CASA DEPRESSA:  “Se a mulher desequilibra/ dois malandros que têm fibra/, só há uma solução:/ para que brigar à toa?/ Vou tirar cara ou coroa/ com um níquel de tostão”. Diante da tentativa de suicídio, embora não fosse culpado, fez outro samba COR DE CINZA: “A poeira cinzenta da dúvida me atormenta, nem sei se ela morreu”.

                                                   
                                                                          NOEL E CECI

Uma festa no Cabaré Apolo, da Lapa, véspera de São João, 1934,  o principal convidado: Noel Rosa.  Juraci Correia de Morais, moça de dezesseis anos, modelo da Escola de Belas-Artes, ficou muito lisonjeada quando o famoso cantor veio tirá-la para dançar. Noel também gostou da menina e gravou todos os acontecimentos daquele dia: o samba que dançaram, o tango interrompido para conversar, o champanha derramado no vestido. Ceci recusando o carro e indo a pé para casa. Um novo samba estava nascendo, feito com descrição quase jornalística do encontro com a DAMA DO CABARÉ. Marcaram encontro, Ceci não apareceu. Mandou uma carta dizendo que não queria compromisso. O samba estava pronto: “você nela me dizia que quem é da boemia usa e abusa da diplomacia, mas não gosta de ninguém”. Noel transformava sua vida em música.
Ceci passou a trabalhar como dançarina nos cabarés da Lapa e Noel sentiu ciúme: “pra que mentir, se tu ainda não tens esse dom de saber iludir?”  Discutiam, brigavam, coisa que evidentemente desagradava sobremaneira a Noel, pois “o maior castigo que eu te dou, é não te bater, pois sei que gostas de apanhar/ Não há ninguém mais calmo do que eu sou, nem há maior prazer do que te ver me provocar”.  Mas Ceci tentava fugir da ligação com Noel, afinal, ele era um homem...como se diz?... casado!
A 1º de dezembro de 1934, seis meses depois de conhecer Ceci, Noel casou-se com Lindaura Pereira da Mota. Enlace precipitado que provocou apenas uma mudança na vida de Noel: de seu quarto saiu uma cama de solteiro e entrou outra de casal, e          quem fez a troca foi Dona Marta, a mãe de Noel, pois ele não se lembrara disso...

                                                              NOEL E  LINDAURA


Lindaura suportou estoicamente a vida do marido, embora de vez em quando tentasse reivindicar seus privilégios de esposa. Mas Noel não tinha cura: várias vezes saia com ela, mas a deixava  no meio do caminho, desaparecendo  com amigos ou amigas.  O pouco dinheiro que ganhava não chegava às mãos de Lindaura. Em vez de viver sustentada pela mãe de Noel, ela resolveu trabalhar.  O sambista não perdeu a oportunidade: “você vai se quiser, pois a mulher não se deve obrigar a trabalhar. Mas não vá dizer depois que você não tem vestido, que o jantar não dá prá dois”.
Um morador da Rua Teodoro da Silva encontrou no lugar das garrafas de leite, outra de cerveja. Um bilhete explicava: “Meu vizinho, envenene-se com a minha bebida enquanto vou me envenenando com seu leite. Noel Rosa”. Outro vizinho que não gostava de serenatas, acordou um dia com a casa explodindo:  da esquina, João de  Barro, Henrique Brito e outros apreciavam os foguetes de São João no porão do rabugento. Ideia de Noel.
Entrevista a “O Cruzeiro”, em 1932:  - Que relação julga que existe entre o amor e a música?
- Romeu e Julieta morreram ignorando-a; acho, porém que a relação seja a mesma que existe entre a casca de banana e o escorregão.
São incontáveis as histórias de Noel, todas revelando seu humor, sua mania de implicar com os outros e colocá-los no ridículo. Também não se preocupava com  aparências; andava sempre mal vestido, com roupas amarrotadas e sapatos sujos. Um dia, entretanto, arrumou-se melhor para tirar fotografia.  O fotógrafo ponderou que ficaria bem um lenço escuro no bolsinho do paletó. Noel, tranquilo tirou a meia preta que vestia e colocou no bolso. Mas o detalhe não apareceu: Noel fez pose acendendo o cigarro  e o braço escondeu a meia-lenço.
Noel era um despreocupado com as coisas formais. Seu dia começava à tarde, quando acordava e ficava compondo. Mostrava para a mãe a música recém-feita e saía. O rumo podia ser o Café Nice, na Avenida Rio Branco, esquina da Bethencourt Silva. Era o ponto obrigatório dos artistas de rádio que se espalhavam pelas mesas de vime da calçada, ou de mármore, no setor reservado para cafezinhos e médias Lá dentro ainda havia mesas forradas e cadeiras estofadas para chá e bebidas caras. A turma do rádio  ficava mesmo na calçada, em pequenos grupos, comentando as novidades, fazendo um verdadeiro  mercado da música popular. Depois Noel ia para o rádio cantar sua última composição. Na Educadora conheceu Aracy de Almeida, que estreava cantando uma música do repertório de Carmen Miranda, e diz ela:  –  Noel me cumprimentou dizendo ter gostado muito da minha maneira de cantar e me convidou para sair. E lá fui eu com ele e os malandros seus conhecidos, para a Taberna da Glória, onde bebemos até às quatro da manhã. Naquele dia, quando cheguei em casa estava realmente bêbada e levei uma tremenda bronca.
Noel gostou mesmo da maneira de cantar de Aracy, pois das músicas de Carmen Miranda costumava dizer : - Isso é samba ou aquilo que a Carmen Miranda canta? ... E andar com Noel só podia dar em bebedeira. Fumando Odalisca e bebendo cerveja  Cascatinha, ou uma preta, em garrafa bojuda,  que Noel chamava de “barriguda”, ele passava a noite nas leiterias da Lapa, atrás da Central do Brasil, em companhia dos “Pintas-Bravas” Zé Pretinho, Zeca Meia-Noite, Saturnino, Brancura e outros.
- A barra era pesada – lembra Aracy de Almeida, mas Noel  nunca se meteu em brigas ou confusões. – Primeiro porque era um tímido e depois porque seu físico franzino não lhe permitia. De fato, pelo menos enquanto sóbrio,  Noel era acanhado. Levava  uma tarde inteira para pedir algum dinheiro a Vicente Mangione, o editor  de suas músicas e enrubescia quando alguém elogiava suas composições.  Evitava comer perto dos outros, pois mastigava com dificuldade. Por isso mesmo, alimentava-se apenas de caldos, ovos e comidas leves. Passando a noite em claro, comendo pouco e bebendo muito, não é de admirar que já em 1934 apresentava manchas ameaçadoras nos dois pulmões. Noel precisava mudar de vida se quisesse sobreviver.
O Dr. Graça Melo, o mesmo que assistiu a seu nascimento, aconselhou uma temporada no clima seco de Belo Horizonte. Foi com uma contribuição de amigos que Noel e Lindaura puderam viajar no início de 1935.
O tratamento não deu samba, mas motivou uma brincadeira. Escreveu para o médico dando notícias de suas condições:  -  já apresento melhoras: pois levanto muito cedo... deitar às 9 horas, para mim é brinquedo. A injeção me tortura e muito medo me mete, mas... minha temperatura não passa de 37. Nessas balanças mineiras de variados estilos trepei de várias maneiras e...pesei 50 quilos. Deu resultado comum meu exame de urina. Meu sangue...91% de hemoglobina. Que meu amigo Edgar arranque deste papel o abraço que vai mandar o seu amigo, Noel -.
As notícias eram boas, mas passageiras. Belo Horizonte também tinha emissoras de rádio, cafés, botequins, cervejas, gente querendo ouvir Noel cantar...





FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
VÍDEOS: Youtube


NOEL ROSA E O CINEMA - VI




Em setembro,  voltou para o Rio:  saíra com 45 quilos , voltava com 57. Por que não retomar a antiga vida? O médico advertiu: se não continuasse o tratamento, teria apenas dois anos de vida. Para Noel era o suficiente; preferia dois anos bem vividos, do que sobreviver sem cigarros, bebidas, mulheres e samba. Havia também trabalho para fazer. Surgiram os primeiros filmes musicais brasileiros, produzidos pelo americano W. Downey: “Alô, Alô Brasil” e  “Alô, Alô Carnaval”.  Neste, lançado em fevereiro de 1936, estavam incluídas duas músicas de Noel:  NÃO RESTA A MENOR DÚVIDA,  com Hervê Cordovil (você é uma pequena que não resta a menor dúvida?/Oh, dúvida./ E eu por sua causa já não pago a minha dívida/ oh, dívida?) e PIERRÔ APAIXONADO, com Heitor dos Prazeres. Deveria entrar também PALPITE INFELIZ, cantado por Aracy de Almeida, mas numa época que os cenários eram todos “tropicais”, cheios de palmeiras, bananas e abacaxis, Noel surpreendeu com suas imposições: queria Aracy lavando roupa no tanque, tendo ao fundo um humilde quintal cheio de roupas no varal. A cantora, embora muito amiga de Noel, não gostou da ideia  e Palpite infeliz foi excluído do filme.
Para louvar o Rio, Carmen Santos produziu e Humberto Mauro dirigiu, em1936, Cidade Mulher.  Noel fez seis músicas para o filme, inclusive a marcha CIDADE MULHER. Gozando a moda dos paletós com enchimentos, escreveu com Vadico  TARZAN, O FILHO DE ALFAIATE:
 Quem foi que disse que eu era forte?
Nunca pratiquei esporte.
 Nem conheço futebol.
O meu parceiro
 Sempre foi o travesseiro,
E eu passo um ano inteiro;
Sem ver um raio de sol.
 A minha força bruta reside
 Em um clássico cabide.
Já cansado de sofrer.
Minha armadura
 É de casimira dura
Que me dá musculatura
    Mas que pesa e faz doer.”

Fez ainda MORENA SEREIA  e  NA BAHIA, ambas com  José Maria de Abreu. NUMA NOITE A BEIRA MAR  e DAMA DO CABARÉ, a música inspirada por Ceci.
O prazo de dois anos do Dr.  Graça Melo se escoava. Para cúmulo, em novembro de 1936 surgiu-lhe um  doloroso abscesso na face esquerda, operado pelo vizinho, o dentista Bruno de Morais. Precisava novamente de ares da serra, e precisava novamente da ajuda dos amigos para poder viajar.
Em Janeiro de 1937 foi para Nova Friburgo, mas voltou vinte dias depois por causa do frio. Estava fraco, sem ânimo para a boemia e ficou alheio mesmo ao carnaval.
Em abril, nova viagem, para Barra do Piraí. Sofria sem queixas: “para que incomodar os outros?”  Melhor fazer um samba :” quem  é que já sofreu mais do que eu?  Quem é que já me viu chorar? Sofrer foi um prazer que Deus me deu, eu sei sofrer sem reclamar. (...) Saber sofrer é uma arte e pondo a modéstia à parte eu posso dizer que sei sofrer”  ( EU SEI SOFRER).




EU SEI SOFRER - ARACY DE ALMEIDA

A 25 de abril escreveu uma carta para a mãe, assinada apenas com seu perfil, que ele tanto gostava de desenhar. No dia 29 compôs uma embolada: CHUVA DE VENTO ,  o mesmo ritmo de sua primeira composição. 
A 1º de maio, visitando a represa do Ribeirão das Lajes, Noel sentiu violentos arrepios de frio; sobreveio a febre e a hemoptise. Lindaura resolver voltar para o Rio. No dia 4, na Rua Teodoro da Silva, enquanto na festinha do nº 385, casa de Vicente Gagliano, tocavam animadamente De Babado, no nº 392, Noel dizia para Helio, o irmão que velava à sua cabeceira: “ Estou me sentindo mal; quero virar para o outro lado”. Ao virar, sua mão tamborilou alguns momentos sobre a mesinha de cabeceira. Depois as batidas foram esmorecendo, e seu coração parou.



ARACY DE ALMEIDA 

Estava morto Noel Rosa, o cantor da Vila. Pouco depois chegaram Aracy de Almeida e Benedito Lacerda para anunciar a gravação de EU SEI SOFRER. Era a primeira gravação póstuma, de uma série infindável. Músicas como FEITIÇO DA VILA e FEITIO DE ORAÇÃO,  que venderam apenas duzentas e poucas cópias enquanto Noel era vivo, se transformariam em clássicos da música popular.
Como ele disse em QUEM DÁ MAIS, seu samba, “feito nas regras da arte”, “exprime dois terços”, não do Rio de Janeiro, mas do Brasil inteiro.


                                    BETH CARVALHO - ONDE ESTÁ A HONESTIDADE

FONTE: Nova História da Música Popular Brasileira –
              Abril Cultural – 1976
FOTOS: Google
VÍDEOS: Youtube