sábado, 18 de abril de 2020

CANDIDO DAS NEVES - ÍNDIO - I


CÂNDIDO DAS NEVES




ÍNDIO: UM NOME OBRIGATÓRIO NAS ROMÂNTICAS SERESTAS DOS VELHOS TEMPOS

 Quando Cândido das Neves começou a aparecer com suas canções  românticas, em breve ele passaria  a disputar com o poeta de Luar do Sertão  a honra de maior do gênero, segundo o crítico da época, Francisco Guimarães – O Vagalume -,  que tanto contribuiu para a fixação das origens do samba, mas não vacilava em colocá-lo em plano superior.
Vagalume tinha razão: nos recitais, Cândido das Neves era obrigado a se apresentar sempre por último, porque quando cantava o público não queria deixá-lo  ir embora, fazia-o voltar à cena repetidas vezes, para cantar mais e mais. E não era apenas por seus versos apaixonados, por sua voz, mas também por seu violão. Ele tirava efeitos tais  do instrumento que parecia operar uma mágica, transformando o violão em piano. Desde cinco anos ele tocava, e não era de ouvido; escrevia e lia música, era professor. Fazia milagres com os alunos.
- Cândido era um professor enérgico – conta sua viúva, Dona Débora Pinto das Neves.  - Puxava pelo aluno, às vezes dava, em vez de uma hora, como o combinado, mais meia hora. Eu ficava boba de ver o progresso de seus alunos.
Ele não era índio, e sim negro, filho de negro. E puxava ao pai em muita coisa: no amor à música, no poder de emocionar o povo, até mesmo na forma brutal de morrer. Quando Cândido nasceu, a 24 de julho de 1899, o pai já tinha fama: Eduardo das Neves, o grande palhaço negro, arrebatava multidões com suas músicas, em que celebrava fatos da época. Uma noite, no Teatro Maison Moderne, o palco ficou juncado de chapéus e flores, Eduardo das Neves foi carregado pelo público. Ele chegara do Norte e cantava uma exaltação a Santos Dumont, que contornara a Torre Eiffel com seu balão Demoiselle. O povo delirou quando Eduardo das Neves atacou  a canção que muitas gerações entoariam:
“ A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou parabéns
Em meigo tom,
Brilhou lá no céu
Mais uma estrela:
Apareceu Santos Dumont...”


Palhaço, cantor, compositor, Eduardo das Neves (1874-1919) haveria de encaminhar o filho também pelo caminho da arte, que lhe dera tanta glória.  A resolução foi tomada no dia em que viu o pequeno Índio, como o chamava, a brincar com o violão, instrumento então considerado sem nobreza.  Ele afastou-o do violão, mas resolveu dar-lhe educação musical.  E não apenas isso: fez questão de que o filho estudasse, concluísse o ginásio, procurasse aprender muito.
A formatura no ginásio abalou muito o jovem Cândido. O pai viera de Minas, onde vivia, para assistir à diplomação. No Rio, como era natural, convidaram-no para dar ao menos um show num teatro da Praça Tiradentes. Pouco antes da meia-noite, quando voltava  do teatro e chegava à pensão onde se hospedara, Eduardo das Neves começou a passar mal. Cândido saiu para chamar uma ambulância; inútil: o pai morreu antes de receber qualquer socorro.


O episódio definiu o rumo da vida de Cândido – não seguiria a carreira circense. Começaria como o pai, sim, mas na Estrada de Ferro Central do Brasil, como praticante de agente.  E lá na Central, onde o pai fora guarda-freios, ele acabaria por levar mais longe a tradição musical da família. Primeiro, como mestre-de-harmonia do rancho O Prazer das Morenas, da Saúde.  Depois, compondo para carnaval, mas sem muito sucesso. Em sua importante obra  O Carnaval Carioca através da Música, Edigar de Alencar registra apenas uma vez o nome de Cândido das Neves, como autor  de uma marcha “bastante divulgada nesse abundantíssimo carnaval de boas marchas e belos sambas (o de 1934):  A MAIOR DESCOBERTA, gravada por Almirante e Castro Barbosa. Cândido explorava um grande filão carnavalesco – a mulata.

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
          Abril cultural – 1978
Fotos: Google


CÂNDIDO DAS NEVES -ÍNDIO - II




Mas não é esse o caminho de Cândido “Índio” das Neves. Ele vai concentrar-se em valsas e serestas, ou mesmo em tangos.  É sob a forma de tango que primeiramente aparece uma de suas obras-primas: NOITE CHEIA DE ESTRELAS.

A princípio ele coloca letra no tango MADRE; depois, por causa dos direitos autorais sacrifica um pouco os versos e muda a melodia. Vicente Celestino grava então o que seria um dos seus maiores sucessos:
Noite alta, céu risonho
a quietude é quase um sonho
o luar cai sobre a mata
qual uma chuva de prata
de raríssimo esplendor
só tu dormes, não escutas
o teu cantor
revelando à lua airosa
a história dolorosa desse amor.
Lua...
Manda a tua luz prateada
Despertar a minha amada
Quero matar meus desejos
Sufocá-la com os meus beijos
Canto
E a mulher que eu amo tanto
Não me escuta, está dormindo
Canto e por fim
Nem a lua tem pena de mim
Pois ao ver que quem te chama sou eu
Entre a neblina se escondeu
Lá no alto a lua esquiva
Está no céu tão pensativa
As estrelas tão serenas
Qual  dilúvio de falenas
Andam tontas ao luar
Todo o astral ficou silente
Para escutar
O teu nome entre as endechas
As dolorosas queixas
Ao luar

Já é NOITE CHEIA DE ESTRELAS em sua versão definitiva.

Corpo de atleta, embora não muito alto, dentadura bonita, cuidadoso no vestir, Cândido das Neves fará do violão o elemento de identificação com outros empregados da Estrada de Ferro Central do Brasil, de pendores artísticos, principalmente Henrique de Melo Moraes (tio do poeta Vinicius de Moraes), que será padrinho de seu filho Eduardo e Uriel Lourival, que vai morrer cedo e deixar pouca coisa, mas de valor como CÉU MORENO  e o clássico, MIMI (“ dentro d’alma dolorida,/ Teu sorriso é um lindo albor,/ Uma existência, um céu/...”). Com eles Cândido vai fazer muitas serenatas pelos subúrbios e também conhecer muita gente do meio artístico.
Entre uma seresta e outra, vão surgindo as composições. Algumas estão fadadas a se tornar antológicas no gênero ,como ÚLTIMA ESTROFE:

A noite estava assim enluarada
quando a voz já bem cansada
eu ouvi de um trovador.
Nos versos que vibravam de harmonia
ele em lágrimas dizia;
 da saudade de um amor.
Falava de um beijo apaixonado
De um amor desesperado
Que tão cedo teve fim
E desses gritos de tormento
Eu guardei no pensamento
Uma estrofe que era assim:
Lua...
Vinha perto a madrugada
Quando em ânsia minha amada
Nos meus braços desmaiou
E o beijo do pecado
O teu véu estrelejado
A luzir glorificou
Lua...
Hoje eu vivo sem carinho
Ao relento tão sozinho
Na esperança mais atroz
De que cantando em noite linda
Essa ingrata volte ainda
Escutando a minha voz
A estrofe derradeira, merencória
Revelava toda a historia
De um amor que se perdeu
E a lua que rondava a natureza
Solidária com a tristeza
Entre as nuvens se escondeu
Cantor, que assim falas à lua
Minha história é igual à tua
Meu amor também fugiu
Disse eu em ais convulsos
E ele então, entre soluços
Toda a estrofe repetiu


Ou RASGUEI  O TEU RETRATO, que Vicente Celestino levou a todos os cantos do Brasil:

“Tu disseste em juramento,
Entre o véu do esquecimento,
O teu nome é uma ilusão.
Tu tiveste a impiedade
De sorrir desta saudade
Que me mata o coração...”


                                      Ou  LÁGRIMAS, criação imortal do inigualável Orlando Silva:

“Ai, deixa-me chorar
Para suavizar
O que eu não sei dizer
Mas sei sentir.
Não prantear o amor que se perdeu
É a nossa alma enganar
E ao próprio coração querer mentir...”

A produção de Cândido das Neves não vai ser numerosa, mas terá um traço muito pessoal, inconfundível: a sua marca. Ela está presente em  ÚLTIMA ESTROFE e em LÁGRIMAS, em APOTEOSE  DO AMOR  e RANCHO ABANDONADO, PÁGINA DE DOR e NÊNIAS (“murcharam no jardim os crisântemos/ e as magnólias se despetalaram”: assim ele chorou com um amigo  a morte da mulher).
E em tudo mais: PRIMAVERA ,DILETA, ENTRE LÁGRIMAS,... E NADA MAIS!, CASTELOS DE AREIA, NOITE DE SÃO PEDRO, EM DELÍRIO, NOITE CHEIA DE ESTRELAS, CINZAS,  CABOCLA SERRANA, RASGUEI O TEU RETRATO, ABISMO DE AMOR, RENÚNCIA EM PRANTOS, NAS ASAS BRANCAS DA SAUDADE, TUDO ACABADO, LUAR DE MINHA TERRA, CINZAS DE AMOR, ÍNTIMA LÁGRIMA, PARA SEMPRE ADEUS,JURA DE CABOCLO.

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Fotos: Google
Vídeos: Youtube

CÂNDIDO DAS NEVES - ÍNDIO - III


                                             
 

O romantismo dos poemas de Cândido logo chamou a atenção dos grandes cantores da época. Em sua casa da Rua Torres de Oliveira, na Piedade (subúrbio onde também morou Catulo),ele recebia Orlando silva, Silvio Caldas, Almirante, Vicente Celestino, o cronista Vagalume. Muitos compositores iam lá saber sua opinião sobre uma música, outros queriam que ele corrigisse uma peça. Nessas reuniões, Índio fazia muito versos e, generoso, dava-os aos amigos.
Ele era atração não apenas nas audições dos teatros do Rio, mas também nas serestas das cidades perdidas pelo interior. Conta Henrique de Melo Moraes que, uma vez, ele e Cândido das Neves fizeram uma grande serenata na festa religiosa de Congonhas do Campo, Minas, para a qual afluíam então milhares de pessoas das cidades vizinhas. Eles foram  a pé da estação de Lafaiete até Congonhas, cantando sempre, cercados pelo carinho do povo que os acompanhava.
Nessa época, Cândido era agente da Central do Brasil na estação de Coronel Cardoso, Minas. A estada na cidade foi fatal: naquele frio, ele pegou logo um resfriado que lhe afetou a garganta, deixando-o quase mudo. Desde que se casara pela segunda vez, em 1932, havia mudado muito: raramente  ia a serestas ou festivais, que eram realizados em homenagem  a um ou outro artista, por um pretexto qualquer. Ao voltar de Minas, onde passou um ano, ele foi morar na Casa 6 da Vila da Rua Dr. Bulhões, 117, no Engenho de Dentro, subúrbio onde Catulo terminou seus dias. Nem Melo Moraes, advogado, seu compadre, percebeu o que havia com Índio. No dia do batizado do pequeno Eduardo, Cândido não apareceu. Melo Moraes ficou aborrecido, quis saber a razão. Dona Débora explicou:
- ele está encabulado, com uma rouquidão tremenda.  Nem pode falar.
Melo Moraes percebeu que não era coisa simples. A 13 de novembro de 1934, Cândido morreu. Matou-o uma tuberculose galopante na laringe.
Além da família, pouca gente foi ao enterro: o Dr Melo Moraes, o criminalista Hugo Baldessarini, o compositor Bororó, autor de Da Cor do Pecado.
Alguns meses depois começava a imortalidade de Cândido das Neves: Orlando Silva gravava em 1935 LÁGRIMAS  e ÚLTIMA ESTROFE no disco  Victor 33975, que durante muito tempo foi disputado a peso de ouro, como uma preciosidade, nos sebos de discos. ÚLTIMA ESTROFE teve gravações também  de Castro Barbosa (a primeira), Vicente Celestino, Nelson Gonçalves e Silvio Caldas.




ORLANDO SILVA - ÚLTIMA ESTROFE

Índio não suspeitaria que muitos anos depois, em 1971, um cantor moderno, Tito Madi, pudesse cantar diariamente na Bierklause, casa noturna do Rio, uma canção de sua autoria.

A posteridade teria dado razão a Orestes Barbosa? Este grande da seresta costuma dizer que só houve três cancioneiros fortes na nossa música popular Índio das Neves, Hermes Fontes e Catulo da Paixão Cearense. E ao primeiro fazia este elogio:  - ÍNDIO DAS NEVES É UM GÊNIO.


EDUARDO DAS NEVES

Eduardo das Neves deixou uma modinha dedicada a seu filho ÍNDIO DAS NEVES, autor de “ Noite Alta, Céu Risonho”,  na qual há estrofes assim:
“Não nego, pois faço alarde
E tenho pressentimento
De que ele será mais tarde
Brasileiro de talento”.

Não se enganou.
Índio das Neves é um cultor do gênero que sagrou o grande carioca que Eduardo foi.
ORESTES BARBOSA, em seu livro SAMBA (1933).




NOITE CHEIA DE ESTRELAS - VICENTE CELESTINO

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
          Abril Cultural - 1978
Fotos: Google
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