quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

BEETHOVEN - 250 ANOS - PARTE I

 

Não é fácil sondar todos os recantos da alma de um gênio, explicar seus motivos e impulsos, justificar integralmente suas criações. Assim, para compreender a personalidade de Beethoven e o significado da revolução que imprimiu na música do século XIX, é necessário situá-lo  num conjunto de coordenadas sociais, psicológicas e culturais que marcaram sua formação.



LUDWIG VAN BEETHOVEN  nasceu em 1770, em Bonn, Alemanha, no seio de uma família  da baixa classe média, cujos membros estavam a serviço da aristocracia e dela dependiam. Seu avô paterno, com que viveu até os três anos de idade, era mestre-de-capela do Príncipe Eleitor de Colônia. Seu pai vivia dos proventos da Corte, onde ocupava o cargo de tenor. Sua mãe trabalhava como camareira na residência do Príncipe Eleitor de Trier, e o próprio Beethoven, já aos doze anos, recebia proventos como músico da Corte de Bonn.

Os Beethoven constituíam uma família infeliz, em virtude  do alcoolismo de que o pai era vítima. A avó paterna, igualmente alcóolatra, acabou seus dias num asilo de alienados. A família passou por incontáveis privações e a decadência do pai chegou a tal ponto que, ao falecer a mulher, os filhos menores ficaram sob os cuidados do jovem Ludwig, então com dezessete anos. Pouco depois, o pai foi expulso da Corte por seus excessos alcoólicos.

Os antepassados de Beethoven  viveram na Bélgica e eram de condição humilde. Seu avô era músico profissional e dedicou-se ao comércio de vinhos, para melhorar o orçamento da família; outros foram marceneiros, alfaiates, padeiros, etc. O gênio de Beethoven, no entanto, permitiu-lhe, certa vez, afirmar ao Príncipe Lichnowsky:  “Senhor, vós sois príncipe de nascença; príncipes sempre existiram e sempre existirão, mas Beethoven existe apenas um: sou eu”.

Outros fatores que podem esclarecer a vida e a obra de Beethoven são as transformações econômicas, sociais e culturais que marcaram a época. O artista viveu de 1770 a 1827 – meio século de tão radicais transformações no Ocidente que os historiadores aí situam o fim da Idade Moderna e o início da Idade Contemporânea.

No plano da economia, o período representou a transformação do capitalismo comercial em capitalismo industrial, completando-se  a derrocada do feudalismo medieval. No terreno das relações sociais, a burguesia tornou-se a classe dominante, destronando a antiga nobreza fundada na propriedade da terra; a servidão foi abolida e substituída pelo trabalho livre, surgindo o proletariado industrial como principal força de trabalho.  Do ponto de vista político, o Estado deixou de ser privilégio da aristocracia, ou do clero, e o poder passou para as mãos dos burgueses; a democracia liberal e a republica substituíram as desgastadas monarquias absolutistas. Paralelamente, no plano das ideias, a revelação e o argumento de autoridade foram mais amplamente derrotados pelo poder da razão -  afirmação do indivíduo, do sujeito pensante e livre.

A França era o centro dessas transformações, mas toda a Europa sentiu seus efeitos e foi por elas afetada. Bonn, onde Beethoven viveu até os 22 anos de idade, passou a ser governada, em 1784, por Maximilian-Franz, um dos representantes do despotismo esclarecido da época. Tolerante e aberto às novas ideias, Maximilian-Franz transformou Bonn de simples capital de província em centro de grande atividade cultural, limitando o poder de seu próprio clero (era arcebispo católico), criando uma universidade e abrindo  suas portas aos grandes nomes da literatura alemã – Lessing, Klopstock, os jovens Goethe e Schiller -  que configuraram o chamado Pré-Romantismo.

Beethoven alimentou-se de novas ideias, na casa de uma família de liberais, os Breuning. Mais importante ainda, nesse sentido, foi seu ingresso na Universidade de Bonn, em 1789, onde a Revolução Francesa era saudada com entusiasmo e fermentavam vivamente os ideais revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade. Tudo isso – a servidão aos nobres, a pobreza, a dramática constelação familiar, o caráter revolucionário da época – contribuiu bastante para fazer de Beethoven um homem atormentado, nervoso, irascível, apaixonado e, sobretudo amante da liberdade e da dignidade individual.

Outros elementos importantes para a compreensão da obra de Beethoven – os insucessos amorosos, a surdez etc... são fatores que derivam dos que marcaram  seus anos de formação ou que se acrescentaram a eles posteriormente. Neste último caso, destaca-se, sobretudo, a perda da audição, cujos primeiros sinais apareceram quando o compositor se aproximava dos trinta anos e que se agravou progressivamente, até levá-lo à surdez absoluta e definitiva.

 

FONTE:  MESTRES DA MÚSICA                                                                              ABRIL CULTURAL– 2ª EDIÇÃO – 1982                                                              IMAGENS: GOOGLE              

 

 

 

BEETHOVEN - 250 ANOS - PARTE II

 

UM SEGUNDO MOZART NA CRIAÇÃO MUSICAL

Beethoven foi batizado a 17 de dezembro de 1770. A data exata do nascimento não foi registrada, mas é quase certo que veio à luz um ou dois dias antes. Pelo lado paterno, sua família era flamenga, proveniente de Mechelen (Malines, em francês), cidade belga a poucos quilômetros de Bruxelas. O avô  que também se chamava Ludwig, foi o primeiro músico da família, iniciando sua carreira como cantor do coro Sanctum Sanctorum, em Louvain. Posteriormente, tornou-se músico  da Corte. Mudando para Bonn, em 1733, ascendeu ao cargo de mestre-de-capela do Arcebispo Eleitor de Colônia, Clemente-Augusto, o Faustoso. Estava próximo dos sessenta anos quando Beethoven nasceu.  Embora não se tenha destacado muito como compositor, era um dos poucos músicos cultos de seu tempo. Possuía a cultura  e o espírito liberal da época, cantava em italiano e francês e também falava essas duas línguas. O neto se ligara tão fortemente ao avô que, muitos anos após sua morte, continuava a falar dele com a maior ternura. E um retrato do avô, de autoria de Radoux, pintor oficial da Corte, foi o único objeto que o compositor fez vir de Bonn, quando fixou residência definitiva em Viena.

Johann van Beethoven, o pai do compositor, nasceu em 1740, em Bonn, e também foi músico, como o velho Ludwig. Mas não tinha as mesmas qualidades e deixou marcas extremamente negativas no menino. Nos primeiros anos de seu casamento, comportou-se relativamente bem, como chefe de família, garantindo o sustento da casa. Mas, com a morte do velho Ludwig, em 1773, entregou-se à bebida.

A mãe de Beethoven, Maria-Magdalena Kewerich, era mulher de origem humilde. Filha do cozinheiro do Príncipe Eleitor de Trier, servia na mesma casa como camareira e casou-se com um dos lacaios do príncipe, aos dezesseis anos de idade. Dois anos depois enviuvou e, um mês antes de completar 21 anos, casou-se com Johann van Beethoven. Testemunhas da época descrevem-na como mulher bonita, delgada, rosto fino, olhos grandes e vivos -  mas que jamais sorria. Quieta e parcimoniosa sabia como equilibrar o orçamento doméstico e todos a estimavam e respeitavam. Embora o sogro se opusesse ao casamento, soube conquistá-lo aos poucos, com sua natureza bondosa, doce, delicada e melancólica.  Beethoven  amou-a profunda e ternamente. Quando a perdeu em 1781, escreveria a um amigo: “Era tão boa para mim, tão meiga de amor, minha melhor amiga”.

Os pais de Beethoven tiveram sete filhos. O primogênito morreu horas depois do parto; o segundo foi o compositor. A ele seguiram-se mais três meninos e duas meninas. Se Beethoven não foi o filho que mais sofreu com os infortúnios da família, foi, certamente, aquele em quem o sofrimento teve consequências mais profundas.  Desde o momento em que seu pai descobriu sua vocação, forçou-o, muitas vezes por meio de castigos físicos, a estudar piano.  Queria fazer dele um menino prodígio como Mozart e resolver, assim, seus problemas financeiros. Aos sete anos de idade, o pequeno Ldwig era apresentado em concertos públicos como se tivesse apenas quatro. Beethoven, no entanto, não era um prodígio pianístico e o plano do pai fracassou.

Nem tudo, entretanto foi negativo nesses primeiros anos. Muitas vezes, um amigo do pai – beberrão como ele mas boa alma – dava ao menino lições de composição. Chamava-se Tobias Pfeiffer. Muitos anos depois, Beethoven lhe enviaria dinheiro de Viena, demonstrando, assim sua gratidão pelos conhecimentos que recebera.

Importantes também foram as lições de Egidius van Eeden, organista da Corte. No órgão do claustro franciscano da cidade, tomou contato com a música de Bach e Haendel e, em pouco tempo, adquiriu a habilidade necessária para encarregar-se, sozinho, da missa matinal. No teatro, ouvia Gluck e Mozart. Esses estudos, no entanto, foram muito desordenados. Somente na adolescência Beethoven conseguiria orientação sistemática e poderia canalizar seu enorme talento criativo para a composição.

                                          ANOS DE TRANQUILIDADE AFETIVA



O ano de 1782, quando o compositor contava doze anos de idade, foi particularmente importante em sua vida:  tornou-se músico da Corte, encontrou um verdadeiro mestre e ganhou  a afeição de uma família amiga, que lhe proporcionaria tranquilidade por muitos anos.

Desfeito o sonho de ganhar fortuna com o suposto prodígio do filho, um dia o pai levou-o  para fazer um teste na orquestra da Corte. Por acaso, o príncipe ali se encontrava e ouviu o menino tocar uma fuga de sua própria autoria. Impressionado com seu talento, deu ordem ao organista-chefe para que “ fizesse da educação desse menino uma questão de importância especial”. Alguns meses depois, leu num relatório oficial: “ Um filho de Beethoven (...) não recebe salário, mas tomou conta do órgão durante a ausência do organista, é muito capaz, ainda jovem, de bom comportamento e é pobre”. O príncipe não teve dúvidas: ordenou que se pagasse ao menino cem táleres por ano – a metade do que recebia o pai depois de tanto tempo de serviço.  Nesse mesmo ano, o príncipe contratou novo organista para a Corte, Christian Gottlob Neefe, conhecido como grande mestre do lied e do singspiel. Homem de grande sensibilidade, conhecedor do Iluminismo, Neefe imediatamente reconheceu o talento e o gênio de Beethoven, prognosticando que o menino estava mesmo destinado a ser um segundo Mozart, não como menino prodígio, como queria o pai, mas como compositor.

Com as sonatas de Carl Philipp Emanuel Bach, Neefe iniciou-o na música “expressiva” – aquela que exprime sentimentos e estados psicológicos; ao mesmo tempo, fê-lo estudar o Cravo Bem Temperado de Johann Sebastian Bach, desenvolvendo em Beethoven o gosto pela polifonia, que, depois de longa maturação, brilharia intensamente em suas últimas composições. Fazendo-o seu auxiliar na direção da orquestra do teatro, introduziu-o nos segredos da instrumentação e levou-o a apreciar a música ligada à literatura. O próprio Neefe musicara poemas de Klopstock, autor que Beethoven lia cotidianamente, assim como Shakespeare e Schiller, dramaturgos frequentemente encenados no teatro de Bonn.  Grétry, Cimarosa, Paisiello e sobretudo Mozart eram os compositores que Beethoven executava sob a competente direção de Neefe. Foi também Neefe o responsável pela primeira publicação de uma obra sua, as NOVE VARIAÇÕES PARA CRAVO, EM DÓ MENOR, sobre uma Marcha de Dressier (1783).


FONTE:  MESTRES DA MÚSICA                                                                              ABRIL CULTURAL– 2ª EDIÇÃO – 1982                                                              IMAGENS: GOOGLE              


 

BEETHOVEN - 250 ANOS - PARTE III

  

O terceiro fato importante ocorrido em 1782 foi o início das relações com a família Breuning, por iniciativa de um dos maiores amigos de sua vida, o jovem Franz Gerhard Wegeler, então com dezessete anos de idade. A senhora Breuning, mulher doce e afetuosa, era viúva de um conselheiro da Corte e dedicava-se a educar com muito carinhos seus três filhos (Christoph, Stephan e Lenz e uma filha Eleonore). Era uma família alegre e cultivada; todos liam os poetas da época, principalmente Klopstock, e faziam seus próprios ensaios poéticos. Beethoven dava lições de cravo para Eleonore e Lenz, fazia improvisos musicais e era tratado como se fosse da família.

A maior parte do dia, e frequentemente da noite, Beethoven passava na casa dos Breuning. Esse convívio estendeu-se por todos os anos de sua adolescência, até a partida definitiva para Viena, em 1792.  Ao contrário da infância, foram anos de relativa tranquilidade afetiva e de desenvolvimento musical. Fez tão grandes progressos como músico da Corte que o Príncipe Eleitor resolveu enviá-lo a Viena, a fim de estudar com Mozart, o maior nome da música da época. Esse contato, no entanto, duraria pouco, pois logo após chegar a Viena, em 1787, sua mãe faleceu e ele teve que retornar a Bonn. Mesmo assim, o contato foi suficiente para Mozart declarar a alguns amigos: “ Este jovem vai dar o que falar”.

Voltando a Bonn, chocado pela morte da mãe, Beethoven teve de se encarregar, sozinho, da subsistência e da educação de dois irmãos mais jovens, Karl e Johann, enquanto o pai consumia-se na bebida. Apesar disso, ou por isso mesmo, Beethoven não cessava de dar aulas e compor. Suas duas primeiras obras importantes são desses anos: CANTATA PELA MORTE DE JOSÉ II, imperador da Áustria, e outra para celebrar a ascensão de Leopoldo II ao trono austríaco. Haydn, em rápida passagem por Bonn, leu a partitura de uma dessas obras e elogiou-a, colocando-se à disposição do jovem para lhe dar aulas.

A 14 de maio de 1789, antes mesmo de compor a primeira dessas duas cantatas, Beethoven ingressou na Universidade de Bonn, onde assistiu às aulas de Literatura Alemã, dadas por Euloge Schneider, e procurou pôr alguma ordem em sua formação intelectual. Na universidade, as ideias revolucionárias fervilhavam, sobretudo entre os estudantes, e Beethoven, provavelmente, participou com entusiasmo da comemoração da queda da Bastilha.

Outra relação importante desses anos de adolescência foi a que manteve com o Conde Ferdinand von Waldstein, grande amante da música. Waldstein conheceu o compositor na casa da família Breuning, no ano de 1788, e logo tornou-se seu grande admirador. Foi ele que sugeriu a Beethoven que compusesse as cantatas em homenagem a José II e Leopoldo II. Quando o compositor, em 1792, deixou a cidade natal para fixar-se definitivamente em Viena, Waldstein escreveu em seu álbum de recordações: “ [...] receba o espírito de Mozart das mãos de Haydn”. O conselho era, ao mesmo tempo, uma profecia.




A EXPLOSÃO DE UM ESPÍRITO RENOVADOR

A partir do ano em que Beethoven se instalou em Viena (1792), os biógrafos costumam distinguir três períodos em sua vida. O primeiro estende-se até os dois primeiros anos do século XIX, época em que chegou à conclusão de que sua surdez era incurável, escreveu o famoso “ TESTAMENTO  DE HEILIGENSTADT” e concluiu  a SEGUNDA SINFONIA (1802).  O limite final do segundo pode ser situado em 1812, quando, provavelmente, redigiu outro documento famoso – a  “ CARTA À BEM-AMADA IMORTAL”-, concluiu  a SÉTIMA SINFONIA  e encontrou-se com Goethe. O terceiro corresponde a seus últimos anos – de 1812 a 1827.

Ao se iniciar o primeiro período, Francisco II ascende ao trono, no qual permanece até o fim da vida do compositor. Durante seu reinado, a Áustria tronou-se obscurantista e policial; a Igreja Católica era todo-poderosa; os jornais, raros; os livros, proibidos. Tentava-se impedir, desse modo, a livre circulação das ideias revolucionárias que agitavam o resto da Europa. O prazer, no entanto era tolerado – e a rainha das artes era a música.  Em Viena, todos – de uma forma ou de outra – dedicavam-se a ela: na Corte, nos palácios, no teatro de ópera, nas reuniões familiares. Beethoven detestava a falta de liberdade política e intelectual imperante na cidade, mas seu modo de expressão era a música, e lugar algum do mundo proporcionava tão boas condições para os intérpretes e compositores quanto a capital austríaca. Nesse quadro favorável, do ponto de vista estritamente profissional, Beethoven aprofundou seus estudos de composição, fez carreira como intérprete e criou grande número de obras.

Ao contrário do que programara ao sair de Bonn, os estudos não foram feitos apenas com Haydn. Bem cedo percebeu que o famoso compositor não era o mestre ideal para ele. Suas relações continuaram cordiais, mas, secretamente, Beethoven procurou  orientação de Johann Georg Albrechtsberger, organista da Catedral de Santo Estêvão, compositor e um dos maiores conhecedores, na época, da técnica do contraponto. Ao mesmo tempo, estudava composição vocal com Antonio Salieri, compositor e diretor da Ópera de Viena.

Como intérprete, Beethoven obteve grande sucesso em sua primeira apresentação na capital austríaca (1795), tocando seu CONCERTO PARA PIANO E ORQUESTRA Nº 2,  OPUS 19.  A esse recital, seguiram-se vários outros, inclusive em Berlim e Praga, sempre apresentando, ao lado das obras de compositores como Mozart e Haydn, as de sua autoria. Estas, com exceção das duas primeiras sinfonias e dos dois primeiros concertos para piano, são todas composições de câmara. a maior parte baseada em seu próprio instrumento, o piano.  Em geral, são obras ainda ligadas ao classicismo musical da segunda metade do século XVIII, com marcada influência de Haydn e Mozart. A esse período (1792 a 1802) pertencem, entre as mais importantes, os três TRIOS PARA VIOLONCELO, VIOLINO E PIANO, OPUS I, o TRIO DE CORDAS, OPUS 3, os três TRIOS DE CORDAS, OPUS 9, a SONATA OPUS 13 (“PATÉTICA”), os SEIS QUARTETOS DE CORDAS, OPUS 18, o SEPTETO, OPUS 20, e a PRIMEIRA E SEGUNDA SINFONIAS.

Nos primeiros anos desse período, a vida pessoal de Beethoven transcorreu sem maiores problemas. Até 1794, recebia anualmente um subsídio do Príncipe Eleitor de Bonn, que, juntamente com o que conseguia ganhar dando aulas, permitia-lhe viver com relativa tranquilidade.  Naquele mesmo ano, devido à queda de Bonn diante das tropas francesas, o subsídio foi suspenso, mas o Príncipe Lichnowsky garantiu-lhe casa e comida. Beethoven, durante toda a vida, recebeu subsídios de nobres da época – Príncipes Lobkowitz e Kinsky, Arquiduque Rodolfo e outros -,  o que poderia parecer em contradição com seus ideais. Na verdade, Beethoven jamais se submeteu a esses protetores;  eles simplesmente admiravam o gênio do compositor - quase  todos era músicos amadores -, e este nunca foi obrigado a lhes dar algo em troca dos benefícios concedidos.


FONTE:  MESTRES DA MÚSICA                                                                              ABRIL CULTURAL– 2ª EDIÇÃO – 1982                                                              IMAGENS: GOOGLE              

 

BEETHOVEN - 250 ANOS - PARTE IV



O DESESPERO ANTE UM MAL INCURÁVEL

Nos últimos anos do século, Beethoven foi abalado pelos primeiros sintomas da surdez. Em carta de 29 de junho de 1801, lamenta-se ao amigo Wegeler: “[ ...] Há três anos que meu ouvido vem enfraquecendo cada vez mais  [...] evito toda sociedade, porque não posso dizer aos outros: estou surdo!”. Pouco mais de um ano depois, a consciência de que o mal era irremediável leva-o a escrever o “Testamento de Heiligenstadt”,  carta dirigida a seus dois irmãos, mas jamais remetida. Descoberta após sua morte, revela  seu desespero e a ideia de suicídio: “[...] que humilhação, quando alguém a meu lado ouvia o som de uma flauta ao longe ou o canto do pastor e eu não percebia nada. Experiências como essa quase me levaram ao desespero. E pouco me faltou para pôr termo à vida”. Isso só não aconteceu graças à música. “ Foi a Arte, ela só, que me reteve”. Encerrou-se,  assim,  o período provavelmente mais feliz de sua vida. O que se iniciava foi, sem dúvida, o mais fecundo, embora profundamente atormentado.

A vida amorosa de Beethoven não é bem conhecida, mas sabe-se que de suas diversas ligações afetivas, nenhuma teve desfecho feliz; seus vários projetos de casamento ou foram recusados ou não se concretizaram. O documento mais famoso sobre esse aspecto da vida do grande compositor é a "CARTA À BEM-AMADA IMORTAL", encontrada após a sua morte, sem destinatária e jamais remetida. Terá sido Josephine von Brunswick ou sua irmã Marie-Therese, Bettina von Arnim ou Giulietta Guicciardi, Amalie Sebald ou Teresa Malfatti?

O período da vida de Beethoven que se estende de 1802, ano em que redigiu o Testamento de Heilingenstadt”, até 1812, quando concluiu a SÉTIMA SINFONIA,  foi marcado pelo progresso contínuo e inexorável da surdez, que se tornaria absoluta em 1819. Se isso não bastasse, ao infortúnio físico vieram juntar-se os males do coração: o desfecho infeliz de suas paixões amorosas. A primeira, ao que tudo indica, foi uma condessa de origem italiana, Giulietta Guicciardi, a aluna de piano a quem Beethoven dedicou a SONATA OPUS 27, Nº 2 (“AO LUAR”),  composta em 1801. Giulietta, no entanto, casou-se, em 1803, com o conde Gallemberg e mudou-se para Nápoles. A segunda paixão é uma incógnita. Para alguns biógrafos, trata-se de Josephine von Brunswick; para outros Marie-Therese von Brunswick, irmã de Josephine. Segundo André  Maurois, o compositor não só amou Josephine, como teve um filho com ela. Aluna de piano do mestre de Bonn,  juntamente com sua irmã e sua prima, Giulietta Guicciardi, Josephine enviuvou do Conde Von Deym, ainda jovem, em 1804. Beethoven propôs-lhe então casamento – que não se consumou, provavelmente por oposição da família Von Brunswick. Mais tarde ela se casaria com o Conde Stackelberg – mas as relações com o compositor permaneceram e eles teriam tido uma filha, chamada Minona, nascida em abril de 1813.  Outros autores, porém, afirmam que o caso amoroso de Beethoven no seio da família Von Brunswick foi com Marie-Therese, a quem dedicou a SONATA OPUS 78,  conhecida como Sonata “ a Teresa”, e em quem se teria inspirado para compor a QUARTA e a SEXTA SINFONIAS, bem como a SONATA OPUS 57 (“APASSIONATA”). O casamento dos dois teria sido impedido pela família Von Brunswick, que desejava para a moça um marido da mesma classe social. Seja como for, Marie-Therese jamais se casou, o que fez crescer a lenda sobre a existência do romance entre ela e o compositor.

Outras mulheres marcaram a vida de Beethoven nesses anos, embora, ao que tudo indica, sem a mesma profundidade. A Teresa Malfatti ele teria proposto casamento, em maio de 1810, mais uma vez sendo recusado; em Marie von Erdödy, encontrou uma substituta da figura da mãe, a partir de 1802; outra foi Bettina von Brentano  (ou Bettina von Arnim), mulher muito admirada por seus vários talentos e uma das principais figuras do Romantismo alemão, juntamente com Achim von Arnim, com quem se casou ainda em 1810.

A lista das mulheres que passaram pela vida de Beethoven poderia ser acrescida de outros nomes. Mas as fontes sobre sua vida amorosa são insuficientes, o que tem dado  margem a suposições frequentemente infundadas. Parece certo, porém,  que suas relações com as mulheres foram marcadas pela decepção e pelo desgosto. Seja como for, o insucesso amoroso não lhe abateu o ânimo de artista e, sobretudo, não lhe diminuiu a capacidade criativa. Pelo contrário, esses anos de primeira década do século XIX  constituíram a fase mais produtiva de toda sua vida. Neles, Beethoven explodiu como um gênio inteiramente original, compondo obras que constituem um marco na história da música. A grande maioria das composições  que o público, hoje, imediatamente reconhece como sendo de Beethoven são desses anos de infortúnios amorosos e de progressiva surdez: a QUINTA SINFONIA,  a SONATA ‘AO LUAR’, A SEXTA SINFONIA (“PASTORAL”), a SONATA “à KREUTZER”, a  “APPASIONATA”, entre muitas outras.

Da mesma forma, sua vida social não foi muito afetada. Sabendo esconder a surdez, frequentemente era visto discutindo assuntos políticos, religiosos, filosóficos e, sobretudo, Shakespeare, uma de suas maiores paixões. Brigava muito, seja pelos ideais republicanos e igualitários, seja para defender sua posição e a do artista criador, o que às vezes  se confundia numa coisa só. Em 1808, por exemplo, ameaçou deixar Viena de uma vez por todas. Imediatamente, o Arquiduque Rodolfo, o Príncipe Lobkowitz e o Príncipe Kinsky prontificaram-se a lhe conceder uma pensão anual de 4000 florins, com a condição de permanecer na cidade e continuar compondo como e quando quisesse. Beethoven conheceu, então, o prestígio e a glória. Mas tempos de depressão e sofrimento o aguardavam.


FONTE:  MESTRES DA MÚSICA                                                                              ABRIL CULTURAL– 2ª EDIÇÃO – 1982                                                              IMAGENS: GOOGLE              

BEETHOVEN - 250 ANOS - PARTE V

  

NA COMPLETA SURDEZ,  ABATIMENTO E DESILUSÃO



Nos primeiros anos da segunda década do século XIX , Beethoven entra em profundo abatimento e desilusão. Testemunhas da época retratam-no  como um homem desanimado, enfermo, obcecado pela morte e com ideias suicidas.  Problemas materiais o assaltam, em virtude da desvalorização do florim, o que afeta consideravelmente a pensão anual recebida de seus patronos. Embora eles se proponham a valorizá-la, isso não se concretiza, pois o príncipe  Lobkowitz está arruinado financeiramente e o príncipe Kinsky morre em um acidente de cavalo.  Além disso, a “Carta à Bem-Amada Imortal”, escrita provavelmente em 1812, exprime seu desencanto com o sonho da realização amorosa. No mesmo ano, em Teplitz, conhece Goethe, a quem devotava grande admiração. Mas o encontro, promovido por Bettina von Arnim,  é decepcionante. Conta-se que os dois, passeando em Teplitz, encontram a família real. O poeta ter-se-ia inclinado respeitosamente, sendo, por isso, recriminado por Beethoven. Mais tarde, o compositor escreveria: “ Goethe aprecia a atmosfera da Corte mais do que convém a um poeta.”

Pouco depois, toda a Europa entra em fase de contra-revolução; o congresso de Viena (1814) restaura as monarquias derrotadas por Napoleão e ocasiona a volta dos antigos privilégios feudais. Beethoven se desiludira com Napoleão, mas seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade continuam vivos. A Europa da Santa Aliança, dominada pelo conservadorismo político e religioso, não é aquela que seu republicanismo convicto esperava ver realizada.

Sobre esse sombrio pano de fundo, delineiam-se novos infortúnios familiares. O irmão Karl falece em 1815 e lhe deixa recomendações para que se torne tutor do filho, então com nove nãos de idade. Segue-se uma longa e desgastante disputa judicial  com a mãe do menino, que Beethoven só consegue vencer em 1820. Afeiçoa-se profundamente ao sobrinho e transfere para ele seus sentimentos paternais.  Em troca, só desgostos. O jovem Karl passa a explorar a disputa entre a mãe e o tio, cria problemas e expressa publicamente a falta de afeto em relação ao compositor. Deixando tudo mais triste, a surdez torna-se absoluta ao findar a segunda década do século. Beethoven não escuta mais nada. No lugar da música, o silêncio. E vê-se obrigado a usar pequenos cadernos de conversação, onde os amigos fazem perguntas e observações, que ele lê para depois responder oralmente.  Envelhecido e doente, nem o êxito retumbante de suas composições em toda a Europa serve para lhe despertar qualquer emoção de júbilo.

 Nem o alegra a medalha de ouro que o rei da França manda cunhar para homenageá-lo pela profunda beleza da MISSA SOLENE EM RÉ MAIOR, composta entre 1818 e 1822. Sua produtividade, do ponto de vista quantitativo, cai consideravelmente, mas a qualidade cresce na mesma proporção. As obras desse período são extremamente interiorizadas, abstratas e de extraordinária densidade musical, como as quatro últimas SONATAS PARA PIANO (OPUS106, 109, 110 E 111), OS QUARTETOS DEDICADOS AO PRÍNCIPE GALITZINE, as VARIAÇÕESSOBRE UMA VALSA DE DIABELLI, OPUS 120, e  a NONVA SINFONIA (“CORAL”), verdadeiro testamento sinfônico.

O fim se aproxima. Os problemas com o sobrinho chegam ao auge no verão de 1826. Karl tenta o suicídio e põe a culpa no compositor:  “tornei-me pior porque meu tio queria me tornar melhor”.  Os amigos de Beethoven o aconselham a se desfazer da tutela do sobrinho – e ele concorda, com profunda tristeza. Em dezembro, do mesmo ano, contrai a pneumonia dupla, que não mais o deixará, complicando-se com cirrose hepática e hidropisia. Em março do ano seguinte, seu estado torna-se desesperador. No dia 23, diz a Stephan Breuning, velho amigo desde os tempos da adolescência em Bonn:

“Plaudite amici, comoedia finita est” - “Aplaudi, amigos, a comédia terminou).  A 26, expira. Três dias depois, seu funeral é acompanhado por uma multidão de vinte mil pessoas. Franz Grillparzer, o maior dramaturgo austríaco da época, faz a oração fúnebre. E Schubert carrega uma tocha.

 



A  Natureza esteve sempre presente na vida de Beethoven, até seus últimos anos. Com frequência, o compositor se refugiava nos arredores de Viena, onde encontrava paisagens campestres que lhe reconfortavam o espírito. Por isso mesmo, a natureza lhe inspirou algumas de suas composições, entre as quais o exemplo mais conhecido é a Sinfonia “Pastoral”. Beethoven, porém, fazia questão de frisar que não pretendia pintar a natureza, mas expressar os sentimentos despertados por ela.

 

“ O fim último da verdadeira música é a expressão da essência das coisas. Penetrar profundamente a essência íntima das coisas, até extrair-lhe um raio de luz, isto é, penetrar, em seu íntimo significado, as paixões do coração humano e as maravilhas da natureza – esse foi o objetivo do nosso grande Beethoven e sua obra.” – RICHARD WAGNER.


FONTE:  MESTRES DA MÚSICA                                                                                ABRIL CULTURAL– 2ª EDIÇÃO – 1982                                                                IMAGENS: GOOGLE              

domingo, 28 de junho de 2020

MORAES MOREIRA E OS NOVOS BAIANOS - I




Era o caos. Superboy cruzava o Teatro Vila Velha, traçando vôos rasantes sobre a plateia, suspenso num trapézio. Duas meninas tinham seu corpo pintado de branco, em padrões “absurdistas”, para que brilhassem quando fosse acionada a luz negra, enquanto guitarras apunhalavam junto ao coro rosnado de “É BARRA LÚCIFER!”. No dia seguinte, um crítico baiano afirmaria: “Se isso for arte, eu me suicido”.
           Nome do espetáculo: DESEMBARQUE DOS BICHOS DEPOIS DO DILÚVIO.

Os ousados  participantes: Luiz Dias Galvão, engenheiro agrônomo formado e praticante, poeta, aficionado de música, cinema e teatro, 32 anos; Antônio Carlos de Morais Pires (Moraes Moreira), 21 anos de audição do alto-falante (porta-voz de políticos, Ãngela Maria, Roberto Carlos e Beatles), da cidade de Ituaçu, no interior da Bahia; Paulo Roberto de Figueiredo, 23 anos,egresso da cidade de Santa Inês e ex-crooner da Orquestra Avanço, presença obrigatória nos bailes da região de Salvador, 
 apelidado “La Bouche” ou “Paulinho Boca-de-Cantor”; a niteroiense Bernadete Dinorah de Carvalho Cidade, recém-chegada a Salvador, onde comemoraria seus dezessete anos morando debaixo da ponte; Jorginho, Carlinhos, Lico e Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, o “Pepeu”, que integravam a banda de apoio, os Leif”s. À exceção de Bernadete, todos baianos e todos ilustres desconhecidos, estranhos, radicais, acintosos e novos.  Era o início dos NOVOS BAIANOS,  em pleno caos de 1969.



Caetano e Gil levavam malas, violões e dores para Londres, rumo a um exílio que duraria quase três anos, deixando os remanescentes escombros do tropicalismo para músicos, poetas, sábios e pirados a granel, que não sabiam o que fazer dos  dois anos de repressão e censura que praticamente não permitiam qualquer acontecimento artístico.
No meio do torvelino de indecisões e indefinições, os “ripis” de Salvador, Galvão, Moraes Moreira, Paulinho Boca-de-Cantor, Baby Consuelo e Pepeu, nada tinham a perder, tratando de seguir à risca as palavras do mestre Caetano: “ Por que não? Por que não?”.
Baby, menina-problema de Niterói, costumava estudar no telhado de sua casa de vila e, à noite, ficava admirando em seu quarto um pôster de Brigite Bardot, remoendo silenciosa um desejo de ter iniciais tão marcantes: BB. Sonhava, como tantas de sua idade, ser artista, cantora, merecer pôster com suas iniciais. O nome não ajudava e o ginásio atrapalhava ainda mais. Num rasgo de libertação, vai com uma amiga, Ediane, passar as férias em Salvador, onde conhece Galvão e Moraes, “no bar mais quente de lá, o Brasa”.  Galvão e Moraes haviam sido apresentados pelo cantor e compositor Tom Zé, amigo de Galvão desde que este lhe fez um projeto para o jardim de sua casa. Moraes, saído de um curso de percussão no Seminário de Música da Bahia (não havia vaga no de violão, seu instrumento), também conhecia Tom Zé, com quem fazia um show no Teatro Vila Velha.
Paulinho La Bouche, interiorano sedento de chances novas na música, também conhece a tríade baiana e junta-se a eles na pensão de Dona Maritó. E de todos que formariam mais tarde os Novos Baianos, Pepeu era indiscutivelmente o músico, mestre da guitarra, dono de um estilo desde então inconfundível, genuinamente brasileiro.  E era ainda, o único veterano no sentido estrito da palavra, pois já passara por três grupos: aos onze anos, formou Os Gatos, ou melhor, The Cat’s (“A maior esculhambação: eu cantava em inglês sem saber falar”); aos doze mudou o nome e a formação, criando Os Minos, patrocinados pelo dono de uma loja de roupas do mesmo nome que trocava o dinheiro e a vestimenta pela promoção de seus produtos. O grupo durou quatro anos e Pepeu, que até essa época tocava contrabaixo – momento raro registrado em compacto pela Copacabana em 1966: Febre de Minos e Fingindo me amar --, saca pela primeira vez da guitarra. Junto com seu irmão Jorginho e os amigos Lico e Carlinhos, funda Os Leif’s.
Pepeu já sentira o gosto sedutor do sucesso com Os Minos, apresentando-se em São Paulo, nos programas de TV de Eduardo Araújo e do infante Ed Carlos. Entretanto, tudo não passava de pão, circo e energia, ao som de muito Renato e seus Blue Caps e Hermann Hermits – até aparecerem Gilberto Gil e o Tropicalismo.
- “Foi Gil quem me lançou realmente como guitarrista, me chamando para tocar com ele e Caetano no show de despedida no Teatro Casto Alves,  o Barra 69. Ele me viu em um programa da TV Salvador acompanhando Moraes Moreira em São Paulo, Meu Amor, de Tom Zé. Ligou para a estação, achou meu endereço e foi me buscar em casa”.
E em pleno caos de 1969, em meio à ruínas das bananas e da antropofagia  renascentista  do tropicalismo, que surgem os malandros, loucos, imprevisíveis  NOVOS BAIANOS. Novos porque pós-Gil e Caetano; baianos porque sim. Ou, como conta Pepeu, porque o grupo ia se apresentar na Record e ainda não tinha nome; então, na hora de eles  entrarem em cena, um funcionário da emissora gritou:
--  CHAMA AÍ ESSES NOVOS BAIANOS!


Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL CULTURAL - 1978
Fotos: GOOGLE



MORAES MOREIRA E OS NOVOS BAIANOS - II





No início, apenas um quarteto – Moraes, Galvão, Paulinho e Baby (cujo novo e celebrado nome nasceu de uma personagem de filme) – que era acompanhado pelos Leif’s. Galvão, o poeta e mentor era obrigado a fazer mímica no palco, porque na época os empresários não admitiam trios de cabeludos e só Moraes,  o parceiro de Galvão, a voz agridoce, o violão sutil. Paulinho era o malandro, o Lúcifer, o mandingueiro.  Pepeu era o músico. Baby, a menina.
Depois do reboliço do DILÚVIO em Salvador, os Novos Baianos vão para São Paulo, onde se apresentam em inúmeros programas de TV, sempre ultrapassando o número previsto de músicas e encerrando expedientes absurdos, como fizeram ao terminar seu showzinho no programa  de Hebe Camargo, dançando tango com a animadora. Começa aí uma extensa lista de empresários, gravadoras,  úlceras e dores de cabeça para quem quer que ousasse contratar os Novos Baianos.
O primeiro empresário foi o poderoso marcos Lázaro e a primeira contratação foi pela RGE, através de João Araujo. Lançam, em 1970, um compacto (De vera: “De Vera estou falando de vera/,  de vera, da primavera/ da prima Vera, deveras”,  e  Colégio de Aplicação) e em seguida um LP cáustico, sardônico, ameaçador (É ferro na boneca: “Não olhe, ande, olhe./ O produssumo queima a bagagem./ Necas de olhar pra trás./ O quente, o veneno./ É pluft, pluft, pluft, pluft, pluft./ É ferro na boneca./É o gogó, neném »), que incluía as faixas do compacto e uma cornucópia de estilos e títulos: Outro mambo, outro mundo;  A casca de banana que eu pisei; Dona Nita e Dona Helena (homenagem às mães de Moraes e Galvão).
Como o sucesso em São Paulo não fosse dos mais estimulantes, como ficou comprovado na desclassificação de De Vera durante o Festival da Record de 69,  os Baianos buscam público no Rio de Janeiro, levando consigo o Dilúvio e Pepeu, com seu novíssimo grupo de Ribeirão Pires, interior de São Paulo,  Os Enigmas, de onde saiu também Odair  Cabeça-de-Poeta, que muitos insistem em confundir  com um ex-Novo Baiano, mas que, segundo negativa veemente de Pepeu, nunca fez parte do grupo.
A mise-en-scéne  foi a mesma do Teatro Vila Velha, só que, dessa vez, no Teatro Casa Grande. Como precisavam de um baixista (o efetivo dos Enigmas ficara em São Paulo), eles buscam um substituto nas ruas de Ipanema e acabam achando Dadi, roqueiro de 18 anos, cuja única experiência  verdadeira como músico vinha de tardes e noites aprendendo a última dos Rolling Stones com seus amigos. Pepeu se dispõe a “criar” Dadi e lhe dá a vaga. Novas mudanças no grupo: Pepeu se desliga definitivamente dos Enigmas, chama seu irmão Jorginho para ser baterista, convida dois amigos percussionistas de São Paulo, Bola e Baixinho.
A farra estava formada. O LP pela RGE não vendera grande coisa, servindo apenas de hóstia àqueles que, pouco a pouco, iam transformando os Novos Baianos em banda cultuada, com um número determinado de adoradores profanos que os seguiam onde quer que estivessem.



Um dos grandes atrativos dos Novos Baianos era seu estilo até então inusitado de vida: todos moravam juntos, em comunidade, em Botafogo: quatro cômodos divididos entre doze pessoas.
- Morar junto era ótimo para todos nós, porque aumentava o nível de relacionamento pessoal e, também, o de relacionamento musical  -- explica Pepeu.  – Assim, nos conhecíamos cada vez melhor e, consequentemente, sabíamos tocar melhor um com o outro.
A grande interação, além de provocar um perfeito entrosamento entre os músicos, gera subgrupos dentro dos Novos Baianos, como o trio Dadi (baixo), Pepeu (guitarra) e Jorginho (bateria), que passa a se chamar A Cor do Som e a apresentar um repertório elétrico-eclético que deixava entrever a destacada direção musical de Pepeu, guitarrando feroz, misturando Trio Elétrico e Jimi Hendrix num fraseado só.
Em 1971, a segunda gravadora e o segundo compacto ( Dê um rolé,  Risque, Você me dá um disco e Caminho de Pedro),  produzido  por Nélson Motta e lançado pela Philipps. Segundo Moraes, um disco ruim, mal gravado, aquém do esperado.
No mesmo ano, a quebra total. João Gilberto vem ao Brasil e vai se confraternizar com os Novos Baianos em Botafogo. –Foi aí que tudo mudou – Moraes recorda – João nos fez ver com outros olhos a música brasileira. Pela primeira vez pegamos num cavaquinho, num pandeiro, para tocar samba. Foi  João quem disse para gente que Brasil pandeiro, de Assis Valente, era a nossa cara.
O ritmo de composição da dupla Galvão-Moraes sobe muito. Da efervescência saem sons cada vez mais brasileiros:
PRETA PRETINHA
“ Enquanto eu corria,
Assim eu ia lhe chamar,
Enquanto corria a barca,
Lhe chamar
Por minha cabeça não passava,
Só, somente só, assim vou lhe chamar
Assim você vai ser,”
Preta, preta, pretinha
Abre a porta e a janela
E vem ver o sol nascer
 Eu sou um pássaro
Que vivo avoando
Vivo avoando
Sem nunca mais parar
Ai-ai, ai-ai, saudade
Não venha me matar






Acabou chorare  (“ ficou tudo lindo/ de manhã cedinho/ Tudo cá,cá,cá/ Na fé, fé, fé/ No bu-bu li-li/ No bu-bu-li-lindo/ No bu-bu bolinho”),  Swing de Campo Grande. Os papéis  dos músicos ficam cada vez mais multifacetados, e surge dentro do próprio grupo, um regional.
Com todas as inovações, os Novos Baianos fazem um temporada na boate Carioca Number One, que deveria ter durado um mês, mas que acabou se estendendo por dois mais por exigência do dono da casa, estimulado pela boa lotação que o grupo trazia com sua nova direção musical.  O público de meia-idade que frequentava o Number One não podia deixar de se surpreender com “um bando de cabeludos” fazendo um puro e sonoro samba.
Em sua terceira gravadora, os NB,  recém-saídos  desse vigoroso banho de brasilidade, gravam seu mais consistente álbum, ACABOU CHORARE,  lançado em 1972 pela Sigla.  O álbum mostrava todas as nuanças do novo trabalho baiano: o grupo todo, o regional e o power-trio da COR DO SOM.  Exaustivamente tocado nas rádios, celebrado pela crítica e pelo público – que, de início, se assustou com uma presumida bande de rock, esquentando seus pandeiros, mostrando que o Tio Sam é quem queria conhecer a batucada brasileira.







Fonte: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL CULTURAL - 1978
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MORAES MOREIRA E OS NOVOS BAIANOS - III


  


Os Novos Baianos alugam um sítio na Estrada dos Bandeirantes, na zona industrial de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, que foi apelidado de “Cantinho da Vivó” e viu-se tomado por fanzocas exaltados, amigos de longa data, curiosos e, algumas inesperadas vezes, policiais.
Começa um roteiro extensivo de excursões pelo país, a reboque da imensa repercussão de Acabou Chorare. Como era de se esperar, os Novos Baianos mudam, mais uma vez, de gravadora. Numa espécie de consagração de seu alter ego favorito, gravam na Som Livre N.B. Futebol Club, um disco intimista, pessoal, como se refletiria no show seguinte, com o palco enfeitado de bandeirolas de São João e repleto de filhos dos membros do grupo e de seus acólitos.
A essa altura o sítio de Jacarepaguá já havia sido tomado por pessoas completamente estranhas ao grupo.
A convite de um executivo da Continental, os Novos Baianos vão morar em uma fazenda em São Paulo, onde gravam seu terceiro álbum, ALUNTI. Joãozinho Trepidação (ex-Galvão) explica o título: - é tudo que não tem explicação, que está pra lá de alucinação.
Talvez pela capa feia, de cores berrantes, talvez pela má divulgação da Continental, Alunti não chega a vender tanto quanto seus predecessores. O grupo se desentende com a gravadora, seguindo a tradição de contratos a curto prazo e estrepolias com seus contratantes. 
 - Uma vez – conta Pepeu -, a gravadora não nos tinha pago e estávamos no estúdio para gravar. Nossa reação foi deitar no chão do estúdio  e dizer que iríamos dormir lá, porque nosso aluguel já tinha vencido e a grana não tinha pintado.
E vem a crise. Na procura de seus caminhos próprios e inconformado com a despropositada estagnação musical do grupo, Moraes Moreira sai dos Novos Baianos para fazer carreira solo. Desfalcados de um compositor, os Baianos encarregam Pepeu de compor, dando-lhe carta branca para redirecionar o grupo.
Praticamente no mesmo período, Dadi deixa os Novos Baianos, aparentemente sem planos de trabalho individual.
– Dai saiu no dia de um show na Bahia, e tive que chamar meu irmão Didi para substituir Dadi. Não foi uma grande mudança: só trocamos o A pelo I. O pobre do Didi teve que aprender quinze músicas em menos de 24 horas.
O público está curioso. A crítica desorientada. Seria esse o final dos Novos Baianos? Muitos viam em Moraes a figura do líder, do leme da bainave.
Sublime surpresa quando em 1975, Moraes lança seu primeiro disco, com um estilo completamente diverso do padrão NB de brasilidade, apoiado por um trio que seria o embrião do hoje próspero COR DO SOM: Dadi no baixo, Gustavo na bateria e Armandinho nas guitarras, no bandolim e no cavaquinho. Inicia-se um profundo envolvimento  de Moraes com o Trio Elétrico de Dodô e Osmar, a começar pelo uso de Armandinho e Aroldo, filhos de Osmar, em gravações e espetáculos e, mais tarde, iniciando uma série de LPs com o Trio Elétrico, como produtor, compositor, cantor e músico: O Jubileu de prata do trio elétrico, em 75,  e É a massa, no começo de 77, justamente durante o carnaval.
E os Novos Baianos, por onde andavam? Por dedução, poderia ser o ocaso, o fim. Mas como todo malandro joga bem com seu melhor elemento, a surpresa, os NB lançam, no fim de 76, novo LP em nova gravadora, a Tapecar, com a qual assinaram  o maior contrato de suas vidas: dois anos. Caia na Estrada e perigas ver traz o grupo revitalizado e totalmente nas mãos vulcânicas e irrequietas de Pepeu. Músicas desenfreadas no ritmo, de um pique de locomotiva. Os NB-safra 76 estão mais energizados do que nunca, adrenalina pura. Pepeu roncando feroz sua guitarra, Jorginho e Didi indo atrás e o grupo faiscando.



Em 1977 duas novidades, postas no mercado quase simultaneamente: os LPs Praga de Baiano, dos NB, e Cara e Coração, de Moraes Moreira. Cada vez mais os NB eram de Pepeu. Quase todo instrumental, Praga de Baiano  traz a primeira gravação do Trio Elétrico dos Novos Baianos, que ocupa 85% do disco, dando pouco espaço às vozes de Baby e Paulinho.
Cara e Coração mostra um Moraes Moreira amadurecido, uma integrada Cor do Som.
(Pepeu já havia cedido o nome ao grupo, que ganhara Mu, irmão de Dadi nos teclados e Ari na percussão). Moraes começa a se apresentar com o Trio Elétrico, mostrando seu pouco conhecido lado de “freveiro”. Os Novos Baianos reduzem o número de seus espetáculos, ficando praticamente incomunicáveis com o público, que passa a se indagar sobre a dissolução do grupo. A ausência é justificada por Pepeu: - Os Novos Baianos nunca acabaram. O que houve é que cada um começou a tratar de seu projeto individual, coisa pouco feita aqui no Brasil e que, por isso, gera boatos de fim do grupo.
O primeiro passo desses projetos é do próprio Pepeu, que gravou um álbum Geração de Som PELA CBS, “de nível”, como desejava, com os músicos que escolheu – Márcio Montarroyos, Ed Maciel, Jorginho, seu irmão – e, usando recursos de estúdio que não conseguia com os Novos Baianos, como o Aphex Aural Exciter, uma maravilha eletrônica que consegue recriar no disco o “ambiente musical, a atmosfera” que se perde nas paredes estéreis do estúdio.
Baby também prepara um disco seu, pela WEA, e Paulinho Boca-de-Cantor faz uma triagem para escolher sua etiqueta. Galvão reúne material para um livro. Moraes segue sua carreira, gravando novo disco, Alto-Falante, que recria a parceria Moraes-Galvão em uma faixa.
Para 1979, os NB preparam – pela CBS – um álbum comemorativo de seus dez anos, e a presença de Moraes está confirmada. Um disco de camaradagem, checando velhos pontos. Os rumores são falsos – os NB não acabaram, e provam que  “quem nasceu para Barra Lúcifer/ Não foge/Nunca some” (Barra Lúcifer).





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MORAES MOREIRA E O PÚBLICO INFANTIL

Em 1975, Moreira saiu do grupo para se lançar em carreira solo.  
Em 1980, no LP Bazar Brasileiro em parceria com Jorge Mautner lança a“LENDA DO PÉGASO”, fábula mitológica: Um passarinho feio que vivia a sonhar em ser o que não era e virou Pégaso, o cavalo voador.
No projeto de  Vinicius de Moraes em parceria com Toquinho, Moreira participou do  musical “A Arca de Noé” incluindo  a gravação dos dois LPs.     
 No  álbum “ Casa de Brinquedos” (1983) de Toquinho,  interpretou  A Bola.  


13 DE ABRIL 2020 – MORRE NO RIO DE JANEIRO , AOS 72 ANOS DE IDADE, MORAES MOREIRA.


LENDA DO PÉGASO


Era uma vez, vejam vocês, um passarinho feio
Que não sabia o que era, nem de onde veio
Então vivia, vivia a sonhar em ser o que não era
Voando, voando com as asas, asas da quimera 

Sonhava ser uma gaivota porque ela é linda e todo mundo nota
E naquela de pretensão queria ser um gavião
E quando estava feliz, feliz, ser a misteriosa perdiz
E vejam, então, que vergonha quando quis ser a sagrada cegonha

E com a vontade esparsa sonhava ser uma linda garça
E num instante de desengano queria apenas ser um tucano
E foi aquele, aquele ti-ti-ti quando quis ser um colibri
Por isso lhe pisaram o calo e aí então cantou de galo

Sonhava com a casa de barro, a do joão-de-barro, e ficava triste
Tão triste assim como tu, querendo ser o sinistro urubu
E quando queria causar estorvo então imitava o sombrio corvo
E até hoje ainda se discute se é mesmo verdade que virou abutre

E quando já estava querendo aquela paz dos sabiás
Cansado de viver na sombra, voar, revoar feito a linda pomba
E ao sentir a falta de um grande carinho então cantava feito um canarinho
E assim o passarinho feio quis ser até pombo-correio

 Aí então Deus chegou e disse:  
Pegue as mágoas e apague-as, tenha o orgulho das águias
Deus disse ainda: é tudo azul, e o passarinho feio
Virou o cavalo voador, esse tal de Pégaso.