A citação abaixo é de autoria de Edigar de Alencar, que
nos conta:
“A música de
carnaval custou a aparecer, mas surgindo não demorou a tornar-se contingente de
valia da música popular brasileira.”
“Durante
anos seguidos foi, na verdade, sua força maior. No Rio de Janeiro houve a
distinção “música de carnaval” e “música do meio do ano”.
O
samba, a mais famosa modalidade músico-popular do país nasceu no carnaval.
Pelos aspectos vários de que se reveste, plenos de graça e colorido, a música
de carnaval foi sempre contagiante, de extraordinária capacidade no transmitir
e empolgar multidões. Através da cantiga de carnaval é possível reconstituir-se
algumas fases da vida brasileira, mormente da vida antiga da metrópole, tão
caracterizada pela sua vibração e alegria. Magnífico é o potencial do
cancioneiro carnavalesco, sem dúvida o ponto alto da música ligeira do Brasil.
“Embora
a canção carnavalesca se destinasse especialmente à grande festa do ano, certo
é que tão prestigiada foi sempre como manifestação do povo para o povo, que
perdia seu caráter efêmero para se perenizar na lembrança e na saudade. Os carnavais
passavam e, suas canções revivesciam todos os anos, menos pela nota nostálgica,
do que pela carga de alegria que delas transbordava.”
O
dia 9 de fevereiro de 1902 foi um domingo de carnaval: mascarados, arlequins,
pierrôs, diabinhos, colombinas e jardineiras do cordão FILHOS DA ESTRELA DOS
DOIS DIAMANTES lotavam um bonde que ia pela Rua Marquês de Abrantes, no Rio de
Janeiro. Polcas, maxixes e tangos eram berrados, atraindo crianças, moços e
velhos às janelas dos casarões. No cruzamento da praia do Botafogo, o bonde teve
de parar, pois outro cordão, o FILHOS DA PRIMAVERA, tomava conta da rua.
Ninguém deixou de cantar, mas a simples espera para a passagem do outro bloco
acabou em conflito. Em meio à confusão, uma faca: um “rei dos diabos” matou
Angelino Gonçalves, o Boi, e Jorge dos Santos, foliões do Estrela dos Dois
Diamantes.
Na
segunda-feira de carnaval, o cordão, com as mesmas fantasias e músicas,
sacolejava os dois caixões em direção ao Cemitério São João Batista, convidando
quem estivesse no caminho a aderir ao bloco. E assim invadiram a necrópole. Os
acompanhantes de última hora pararam no portão, aterrorizados, enquanto o pessoal
do Estrela dos Dois diamantes, seguia, saltitante. Só à beira da cova fez-se
silêncio. Um longo e pesado silêncio, indigno dos que haviam tombado: um surdo
vibrou e uma voz quente de pastora recomeçou tudo com a marcha “Que bela
rosa,/que lindo jasmim,/eu vi o triunfo/lá no seu jardim.”
Era
uma fase do carnaval brasileiro ainda bastante marcada pela violência.
SELVAGEM, SARCÁSTICO, ROMÂNTICO
Na
civilização cristã, a festa carnavalesca corresponde a uma espécie de subversão
dos cultos oficiais. Os rituais religiosos se inserem, tradicionalmente, no
universo da ordem, com sua carga de culpa e penitência, ou no da desordem,
onde, aparentemente não há necessidade de perdão porque nada é considerado
pecado. Durante o carnaval, estariam suspensas as divergências de ideias e as
diferenças de classes e hierarquia (governantes e governados), em função de uma
solidariedade coletiva, fundada na mesma busca de prazer e alegria.
Na
euforia mágica do carnaval desaparece o homem cotidiano, substituído pelos
próprios sonhos: rei, pirata, jardineira, odalisca, cigana, arlequim...
Contudo, o rei, o pirata, a odalisca se acabam na quarta-feira. Esse é o limite
do carnaval; encerrada a festa, a ordem reaparece, intacta e preservada.
Na
origem, o espetáculo carnavalesco abolia a distância entre o ator e o público. Todos eram, ao mesmo tempo,
personagens e assistência, foliões e espectadores, sereias e navegadores. (O
atual desfile das escolas de samba, as passarelas de fantasias, no entanto,
recriaram a distinção entre palco e plateia).
A
origem da palavra “Carnaval” sempre causou polêmicas. Para alguns, o termo é um
desdobramento da expressão latina carrum
novalis. uma espécie de barco alegórico com o qual os romanos abriam alguns festejos. Os carros eram
levados por animais cobertos de enfeites e montados por homens e mulheres,
todos nus, cantando obscenidades.
Para
Petrônio, o observador arguto e sarcástico dos banquetes e bacanais da
decadente Roma do século I d.C, o carnaval era uma espécie de encontro entre
Deus e o Diabo: sem distinção de classe ou idade, cidadãos e escravos romanos
se abraçavam nessa festa dissoluta.
Outros
estudiosos insistem que o termo “carnaval” é uma síntese da expressão carnem levare ou carevale, que significa
“adeus à carne”, suspensão do uso da carne. Seria uma referência ao complemento e antítese do carnaval, que é
a Quaresma, período de privação que vai da quarta-feira de Cinzas ao domingo de
Páscoa.
Não
falta quem afirme que o carnaval é tão antigo quanto a primeira ordem social
surgida entre os homens. Outros afirmam
que o berço do carnaval está nos rituais agrários da antiguidade, 10 mil anos
antes de Cristo, em honra do ressurgimento da primavera, quando homens e
mulheres com os corpos e rostos pintados, cobertos de pelos ou penas,
embriagavam-se e entregavam-se a celebrações gritando: “afastai-vos, demônios”.
Para
alguns estudiosos, o carnaval origina-se nas alegres festas pagãs como as de
Isis (lua) e de Ápis (boi sagrado), entre os egípcios. Mas poderia ser também
originário das bacanais (festas em homenagem a Baco), as lupercais (festas
anuais em honra do deus Pã, comemoradas a 15 de fevereiro, ou das saturnais
(oferecidas a Saturno), da Roma antiga. Estas últimas, sobretudo, eram
consagradas à farra destemperada e a Capital do Império se transformava num
local de esbaldamento libertino extensivo aos escravos.
Ainda
se podem observar traços carnavalescos entre os gregos antigos (festas
consagradas a Dionísios), entre os hebreus bíblicos, entre os teutões (nas
honras à deusa Herta ou Nerta, a “terra-mãe”), e, mesmo na Idade Média. Segundo
o ensaísta José Guilherme Merquiro, em seu livro dedicado ao carnaval, este –
como uma espécie de válvula de escape das repressões da sociedade – “ocupava o
lugar de tal relevo na cultura tradicional que, tudo bem contado, as grandes
cidades medievais dedicavam aos festejos de estilo carnavalesco cerca de três
meses por ano.”
O
carnaval que se desenvolveu na Europa preservou certas influências das diversas
festas antigas, tais como a data em que é celebrado, a tradição do uso da
máscara (reminiscência da personificação dos espíritos dos mortos) e a aspersão
com água e farinha, símbolos de purificação. Por outro lado, o carnaval sempre
privilegiou o prazer, a música, a dança, a dissolução e a libertinagem.
Oriundo
do paganismo, a Igreja o combateu, mas acabou, num esforço para manter sua
hegemonia espiritual, regularizando-o.
Como
conta Eneida de Morais (1903-1971), respeitada historiadora do carnaval
carioca, “alguns pais da Igreja, como Tertuliano, S. Cipriano, São Clemente de
Alexandria ou como o Papa Inocêncio II, foram inimigos do carnaval, mas o Papa
Paulo II, no século XV, preocupou-se tanto porque a Via Lata, que desembocava, em
frente ao seu palácio, permanecia silenciosa e deserta durante o ano todo, que
conseguiu fazer com que as festas do carnaval romano tivessem como sede
principal aquela rua: corrida de cavalos, carros alegóricos, confetes, uma
extraordinária luminária de tocos de vela (molcoletti) e mais a corrida de
corcundas, o lançamento de ovos, etc.: o carnaval que divertiu os romanos
durante quatro séculos tinha como cenário a VIA LATA.”
O
carnaval pagão foi assimilado, com algumas alterações, pela comunidade
católica. Uma batalha de flores assinalava o carnaval espanhol da Idade Média;
na França Napoleônica, na Alemanha e na Rússia, a festa transcorria alimentada
pelos sussurros políticos, além de se tornar ocasião para ótimos negócios. Na
Itália, nos séculos XV e XVI, eram moda as mascaradas públicas, como já havia
ocorrido nos bailes parisienses, desde a época medieval. Mas os bailes foram
proibidos em Paris depois que Carlos VI, fantasiado de urso, foi vítima de um
atentado. Entre os italianos, os foliões se mascaravam a partir de um tema
quase sempre mitológico, revivendo características de velhos festejos
populares.
No
final do século XIX o carnaval europeu entrou em decadência. O brilho do
festejo começou a se ofuscar em cidades como Roma, Colônia, Veneza, Munique,
Londres, Nápoles e Florença. Restavam apenas a chuva de confetes e o desfile
alegórico de Nice. Inversamente o carnaval brasileiro se arraigava, cresciam
sua euforia, seu luxo e sua importância na vida cultural do país.
Fonte:
NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL
CULTURAL - 1979
IMAGENS: GOOGLE
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