quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

OS PRIMITIVOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - PARTE III - JOAQUIM ANTÔNIO DA SILVA CALADO

 

JOAQUIM ANTÔNIO DA SILVA CALADO

RIO DE JANEIRO (11/7/1848-  20/3/1880)



 Até meados do Século XIX, o Brasil não possuía organizações ou grupos musicais que se pudessem chamar de populares. As camadas mais altas cultivavam principalmente a música lírica e podiam dispor das orquestras de teatro ou dos pequenos grupos de câmara que se formavam principalmente no Rio de Janeiro para atender ao refinado entretenimento das elites nos salões.  Os escravos divertiam-se com seus batuques, à base de instrumentos de percussão, e os brancos e mestiços das camadas mais baixas – cantando estribilhos ao ritmo de palmas e violas dançavam fofas, fados, miudinhos e lundus, que não passavam de misturas daqueles batuques de negros com vários gêneros de danças populares portuguesas, espanholas e até francesas (o miudinho surgira do minueto).  Assim, quando, a partir do início do Segundo Reinado, as classes sociais das principais cidades brasileiras começaram a se diversificar, a nascente classe média, não encontrando um tipo de música com que pudesse se identificar (a não ser a modinha e o lundu-canção), teve que importar gêneros europeus como a polca, em 1844, e logo depois o schottisch, a quadrilha e a mazurca. Nas fazendas mais importantes, os proprietários organizavam bandas de escravos, e mesmo em cidades como o Rio e Salvador acontecia os barbeiros formarem seus conjuntos instrumentais denominados música de barbeiros.
Mas esses grupos ou tocavam peças clássicas ou músicas importadas da Europa, geralmente para animar festas de adro das igrejas.
É então, pelos meados do século, que aparece no Rio, tocando flauta como nunca se ouvira, o mulatinho filho de um mestre de banda do mesmo nome – Joaquim Antônio da Silva Calado.  Calado Júnior (como foi conhecido até a morte do pai, em 1867), casara-se muito cedo, e ao ficar órfão, com dezenove anos, foi ganhar a vida tocando não apenas peças clássicas, mas música dançante, em bailes de casas de família e festinhas de casamento e batizado.
Ora, como nos ambientes acanhados das salas de visitas não cabia o instrumental das bandas, essa música doméstica geralmente era fornecida apenas por tocadores de violão e de cavaquinho. Segundo afirmação do Maestro Baptista de Siqueira em seu livro intitulado VULTOS HISTÓRICOS DA MÚSICA BRASILEIRA, “esses artistas aprendiam uma polca de ouvido e a executavam para que os violonistas se adestrassem nas passagens modulantes, transformando exercícios em agradáveis passatempos”.
A Calado ia caber exatamente o papel de introdutor da flauta nesses conjuntos, criando o primeiro grupo instrumental de caráter absolutamente popular e brasileiro, e cuja forma chorada de execução ia conferir ao estilo e aos grupos de músicos o nome de choro.
Explicando essa criação do ponto de vista musical, o Maestro Baptista de Siqueira, referindo-se ao grupo de Calado, escreveu que “constava ele, desde sua origem, de um instrumento solista, dois violões e um cavaquinho, onde somente um dos componentes sabia ler a música escrita: todos os demais deviam ser improvisadores do acompanhamento harmônico.
O resultado da música produzida por esses conjuntos de choro, à base de modulações, era a criação de melodias tão trabalhadas que os editores as julgavam avançada demais; e temendo o fracasso de venda obrigaram Calado a imprimir suas primeiras obras por conta própria, como aconteceu com as polcas QUERIDA POR TODOS (dedicada à sua companheira de choro Chiquinha Gonzaga), A SEDUTORA e LINGUAGEM DO CORAÇÃO.
E os editores não deixavam de ter alguma razão porque, segundo ainda observação de Baptista de Siqueira, já nessas polcas aparecia “uma espécie de introdução servindo de estribilho permanente a duas estrofes que se sucedem em alternativas na execução”.
Essa característica iria servir de base, menos de dez anos depois, para a criação de um gênero novo de música dançante, de par enlaçado, genuinamente brasileira e popular: o maxixe.  O reconhecimento da importância de Calado no meio dos próprios chorões, entretanto, foi desde logo muito grande, e pode ser medido hoje pelo levantamento da influência claramente exercida pelo flautista sobre os músicos populares da sua geração.
“O grande flautista”, escreveu a pioneira da pesquisa de música brasileira Marisa Lira num artigo sobre Calado, “criou escola, contaminando os executores da época com suas interpretações originais. Lançou, já não há mais dúvida, as bases da nacionalização da música popular brasileira. E explicando a ação de Calado como animador da formação de grupos de choro, acrescentou: “Foi seu acompanhador predileto o Saturnino, um pardo magrinho que tocava violão admiravelmente. Seus companheiros de choro: Viriato Figueira, Chiquinha Gonzaga, o Silveira, o Luisinho flautista, Rangel, Baziza, Ismael Correia, Zequinha, Leal Careca e mais alguns”.
Ao lado dessa posição de destaque na área popular, Calado alcançaria em 1871 a honra de tornar-se o terceiro professor da cadeira de flauta do Conservatório Nacional de Música, o que lhe permitiria receber de D. Pedro II, em 1879, juntamente com os demais professores daquela instituição, a Ordem da Rosa, no grau de comendador. A honraria, no entanto, como no caso de tantos outros compositores brasileiros, não o impedia de ter que continuar a tocar como músico profissional em bailes e festas para ganhar a vida.
E foi assim que, logo após o carnaval de 1880, quando ainda tocou flauta como componente de orquestra de bailes de teatro, o Comendador Joaquim Antônio da Silva Calado caiu com a febre de uma epidemia que grassava no Rio de Janeiro e morreu em março, sendo enterrado no cemitério São João Batista “com pequeno acompanhamento de amigos” – conforme esclarece seu biógrafo Baptista de Siqueira -“por haver sucumbido de doença contagiosa e estar sendo proibido qualquer tipo de aglomeração humana”.
Com a morte de Calado, a música brasileira teria que esperar alguns anos até o aparecimento de outro flautista à altura de sua arte (seria Patápio Silva, nascido na vila de Itaocara, no Estado do Rio de Janeiro, a 22 de outubro de 1881), mas as suas composições nunca chegaram a ser esquecidas.
No início do século XX, mas de vinte anos depois do desaparecimento do flautista, o pernóstico poeta Catulo da Paixão Cearense, resolveu tomar como um desafio as dificuldades musicais da última composição de Calado, a polca Flor Amorosa, e transformou-a em canção, colocando-lhe os versos que lhe garantiram a sobrevivência na memória popular:      

                      

                                                           FLOR AMOROSA

                                         Música: Joaquim Antonio da Silva Calado Jr.

                                          Letra: Catulo da Paixão Cearense

Flor amorosa, compassiva, sensitiva, vem, porquê?

És, uma rosa orgulhosa, presunçosa, tão vaidosa
Pois olha a rosa tem prazer em ser beijada, é flor, é flor
Oh! Dei-te um beijo, mas perdoa, foi à toa, meu amor
Em uma taça perfumada de coral
Um beijo dar não vejo mal
É um sinal de que por ti me apaixonei
Talvez em sonhos foi que te beijei.
Se tu puderes extirpar dos lábios meus
Um beijo teu, tira-o por Deus
Vê se me arrancas esse odor de resedá
Sangra-me a boca é um favor, vem cá!
Não deves mais fazer questão
Já pedi, queres mais? Toma o coração
Oh, tem dó dos meus ais, perdão
Sim ou não? Sim ou não?
Olha que eu estou ajoelhado
A te beijar, a te oscular os pés
Sob os teus, sob os teus, olhos tão cruéis
Se tu não me quiseres perdoar
Beijo algum em mais ninguém eu hei de dar.
Se ontem beijavas um jasmim do teu jardim, a mim, a mim
Oh! Por quê juras, mil torturas?
Mil agruras, por quê juras?
Meu coração delito algum por te beijar não vê, não vê
Só, por um beijo, um gracejo, tanto pejo
Mas porquê?

 

Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira

            Abril Cultural - 1978
Fotos –Letra da música - Google

 

 

 

 

 

 

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