quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

OS PRIMITIVOS NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA - PARTE II - XISTO BAHIA - CALDAS BARBOSA -LAURINDO RABELO

  

XISTO DE PAULA BAHIA 


(SALVADOR, BAHIA 6/8/1841 – CAXAMBU, MG- 30/10/1894)

Por volta de 1860, quando o jovem filho de um oficial veterano das lutas da Independência e da Cisplatina começou se tornar conhecido nas rodas boêmias de Salvador sob o estranho nome de Xisto Bahia, as velhas modinhas sentimentais viviam um curioso momento. Divulgada em meados do século XVIII em Portugal pelo mulato carioca Domingos Caldas Barbosa, (Rio 1740 – Lisboa 9/11/1800),  a modinha passara a ser cultivada nos salões por compositores eruditos influenciados pela música italiana. Lereno Selinuntino, como era conhecido, é considerado nome importante na música popular brasileira. Patrono da cadeira nr. 3 da Academia Brasileira de letras.  Sacerdote, poeta e músico

                                                                     


Assim, já no início do século XIX, quando o Príncipe Regente Dom João se transportou com toda a corte portuguesa para o Brasil, as modinhas algo irônicas e espontâneas de Caldas Barbosa tinham-se transformado em verdadeiras árias de óperas. Como a produção dessas modinhas se circunscrevia aos meios do Paço e da Capela Real (onde até o Padre José Mauricio, compositor de missas e de réquiens, não escapava às tentações do gênero profano), as letras de tais canções eram quase sempre escritas por poetas e literatos.  Isso tudo contribuía para conferir à modinha uns ares aristocráticos, que chegaria a levar estudiosos como Mário de Andrade a admitir que sua origem fora erudita, e só muito tarde o gênero passara ao violão do povo pela mão dos seresteiros e boêmios românticos. Na verdade, apesar de a modinha ter figurado quase cem anos como a música de salão predileta dos compositores clássicos de Portugal e do Brasil, sua popularização vinha sendo promovida desde a década de 1830, no Rio de Janeiro, pela primeira geração de poetas do romantismo.
Reunidos na loja do livreiro e editor carioca Paula Brito, no Largo do Rossio Grande (hoje Praça Tiradentes), poetas como Laurindo Rabelo (Rio de Janeiro 8/7/1826 – Rio de Janeiro 28/9/1864),

                                                                    

                                                        Deus pede estrita conta de meu tempo
                                                        é forçoso do tempo já dar conta;
                                                        Mas como dar sem tempo tanta conta,
                                                        Eu que gastei sem conta tanto tempo
                                                                                                ( domínio público)

Gonçalves de Magalhães, Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias começaram a escrever versos que eram musicados não mais apenas por músicos de escola, mas por simples tocadores de violão, como o parceiro de Laurindo Rabelo, João Luiz de Almeida Cunha,  conhecido por Cunha dos Passarinhos. O próprio Francisco de Paula Brito (que era um mulato de origem modesta e chegara ao nível dos literatos do tempo com esforço de autodidata) também compunha modinhas e lundus, chegando a imprimir em sua oficina a partitura do lundu A MARREQUINHA DE IAIÁ, com música de Francisco Manuel da Silva, autor do Hino Nacional. Ativista político , foi o primeiro a inserir no debate político a questão racial. O Jornal O HOMEM DE COR ,primeiro jornal  brasileiro dedicado à luta contra o preconceito racial, colocando-o como precursor da imprensa negra no Brasil.
 Como as principais cidades brasileiras estavam em fase de rápido crescimento, essas produções de poetas e de músicos – de qualquer maneira mais ligados às fontes populares que os das gerações anteriores – ganharam os violões anônimos das ruas, e imediatamente as modinhas entraram a constituir parte obrigatória do repertório de gemidos de mestiços de gaforinha partida ao meio.
É por essa época que, na Bahia, aparece o nome do violonista, compositor e depois ator XISTO BAHIA. De saída, sua importância estava em que, sendo um compositor do povo pela origem, sua condição de ator ia levá-lo a atuar no âmbito da classe média: isso o tornaria o intermediário que estava faltando entre os literatos letristas da primeira metade do século XIX e aqueles cantores de rua que dependiam da criação alheia para fazer cair o queixo de seus auditórios de esquina soluçando nos bordões.
Embora a bibliografia no que se refere à modinha popular seja muito escassa, a maioria dos depoimentos existentes coincide no reconhecimento dessa importância do ator e compositor baiano. No mesmo livro em que cita Xisto Bahia como “o maior cantador de modinhas do século passado”, o musicólogo Flausino Rodrigues do Vale, lembra que o historiador italiano Vincenzo Cernicchiaro definira o baiano como “espírito de harmoniosa graça, inimitável pela maneira especial com que sabia cantar tanto as próprias modinhas como as de alheio punho”, acrescentando: “E era de ver-se como este músico ingênuo, apesar de não conhecer uma nota de música, sabia comover todo um auditório”.
Isso queria dizer que, apesar da condição de representante das camadas mais baixas do povo Xisto Bahia – tal como mais tarde aconteceria no rio com Catulo da Paixão Cearense – conseguia superar com a força da sua personalidade a marca de classe, impressionando as camadas médias e a própria elite com a beleza da música e a dignidade dada à interpretação das suas modinhas.
                                                                              

De fato, ao apresentar-se na cidade paulista de Piracicaba em 1888 – quando já percorria o Brasil como ator consagrado  ­-, Xisto Bahia apesar de citado pela Gazeta de Piracicaba como o ator que “cantou ao violão as modinhas do capadócio, sendo ruidosamente aplaudido pela plateia” (o que dá a entender, pela escolha do termo “capadócio”, o preconceito do comentarista contra o gênero da música), tem a sua participação pessoal ressalvada pela observação: “ Xisto é um cavalheiro extraordinário: reúne o dom de uma fisionomia, um aspecto singular, e no sexo amável abre uma brecha imensa, como a uma muralha de pedra não o faria a maior artilharia”.
Para o longo processo da retomada da modinha como gênero popular – embora sempre sujeita ao talento individual dos “modinheiros”, ao contrário das demais canções populares passíveis de interpretação coletiva, como seria mais tarde o caso do samba -, a importância assumida pela figura de Xisto Bahia era fundamental.
O fato de Xisto Bahia ter livre trânsito entre os intelectuais, depois que a sua parceria com o maranhense Artur Azevedo tornou-o praticamente co-autor da comédia em um ato  UMA VÉSPERA DE REIS (representada pela primeira vez no Teatro São João, na Bahia, a 15 de julho de 1875), ia fazer com que vários poetas baianos se dignassem também a escrever versos especialmente para serem por ele transformados em modinhas populares.
Animados pelo prestígio de Xisto Bahia perante o público dos teatros, figuras da elite como o Visconde de Ouro Preto, o historiador Melo Moraes Filho e o poeta pernambucano Plinio de Lima lançaram-se como autores de modinhas. E em breve os seresteiros podiam contar com modinhas como a famosa   
A CASA BRANCA DA SERRA, que em 1880 , Guimarães Passos “compôs e cantou numa memorável noite de boemia”, segundo afirma o autor baiano Afonso Rui em seu livro Boêmios e Seresteiros do Passado.
Quem melhor distinguiu esse traço de ligação estabelecido através de Xisto Bahia entre a segunda geração de poetas românticos e os catadores de modinhas do povo foi o historiador da música brasileira Guilherme de Melo.  Baiano como o próprio Xisto (que conheceu e ouviu cantar na cidade de Salvador), Guilherme de Melo lembra em seu livro A MÚSICA NO BRASIL, com toda exatidão: “o que se dava com relação a Laurindo Rabelo no Rio, reproduzia-se na Bahia com Xisto Bahia, ator e aprimorado trovador, que arrebatava auditórios, cantando modinhas próprias ou alheias, interpretando e cantando como artista que era engraçadíssimos lundus, aos repinicados do violão”.
E após salientar que o mais admirável no autor baiano “era a pujança do seu estro musical sem conhecer uma só nota de música”, Guilherme de Melo entrava na análise da modinha Quis debalde varrer-te da memória, anotando: “não haverá decerto, no mundo, artista nenhum que desdenhe assinar o seu Quis Debalde, uma vez que no gênero ele em nada é inferior aos seus similares. Como o Nel cor più non mi sento, de Paisiello, sobre o qual Beethoven, o mais sublime dos mestres, não desdenhou fazer diversas variações; como o Carnaval de Veneza, que é o canto mais popular do mundo inteiro e que tem servido de tema a centenas de variações de artistas distintos como Lizst, Paganini e outros; como o Ah che la morte ognora, do Trovador de Verdi, que quanto mais cantado mais lindo se torna, assim o Quis Debalde, de Xisto Bahia, sendo uma composição essencialmente pura e bela como as supracitadas, há de atravessar o perpassar dos tempos, conservando sempre o mesmo encanto e a mesma frescura como se fosse escrito na atualidade”.
A importância de Xisto Bahia, porém, não se esgotava nessa criação de modinhas que, apesar da comparação com músicas eruditas europeias, imediatamente se tornavam populares em todo o Brasil. Conforme salienta Afonso Rui no seu livro Boêmios e Seresteiros do Passado, “... não era Xisto menos inspirado no compor de lundus então em voga como o ISTO É BOM QUE DÓI, O PESCADOR (COM LETRA DE ARTUR AZEVEDO),  A MULATA e A PRETA, esta última ainda ouvida por mim, cantada nesta cidade (da Bahia) num circo de cavalinhos, por Eduardo das Neves”. A citação, além de valer como um documento do papel de divulgador nacional de músicas populares assumido no início do século pelo palhaço Eduardo das Neves, do Rio de Janeiro, ainda é acrescida por Afonso Rui com esta lembrança reveladora, o propósito de Xisto Bahia: o estribilho do lundu A Preta era, nada mais, nada menos, do que o célebre

                      “Laranja, banana,

  Maçã, cambucá,
    Eu tenho de graça
      Que a preta me dá”,

tantas vezes aproveitado mais tarde por outros compositores, entre eles o também baiano Dorival Caymmi no seu samba Cais Dourado. Alguns desses lundus de Xisto Bahia, como o ISTO É BOM, lançado no teatro de revista (o grande divulgador das músicas populares, antes do disco e do rádio), alcançaram, em pleno sucesso, o início do Século XX, com seus estribilhos transformados em música de carnaval.

Para Xisto Bahia – e até neste ponto ele foi representativo – o sucesso e a fama só não lhe conseguiram dar a fortuna que merecia. E após uma vida inteira de glórias e de fama como ator (até o Imperador Pedro II o aplaudiu no espetáculo comemorativo da Batalha do Riachuelo, em 1880), Xisto Bahia foi obrigado a aceitar em l891 um emprego modesto de funcionário da penitenciária de Niterói. Despedido logo no ano seguinte, quando o presidente do Estado do Rio e seu protetor Francisco Portela é deposto do cargo, Xisto Bahia (já casado e com quatro filhos) entra em depressão, adoece e morre em fins de 1894 na cidade balneária mineira de Caxambu.
O aparecimento de outros gêneros de música popular no início do século, fazendo recuar a modinha e o lundu para a memória dos velhos, ia tornar o nome de Xisto Bahia quase desconhecido das novas gerações. Quando, porém, em 1902, a Casa Edison começou a gravar os primeiros discos (até então a gravação era em cilindros), a música escolhida para inaugurar a série 10 000 da matrizes Zon-o-Phone foi o lundu de Xisto Bahia ISTO É BOM, que o cantor baiano interpretava com graça, ressaltando a malícia rítmica que envolvia os versos:

“O inverno é rigoroso,

Já dizia a minha avó;
Quem dorme junto tem frio
Quanto mais quem dorme só...
Isto é bom, isto é bom
Isto é bom que dói”.
Se eu brigar com meus amores
Não se intrometa ninguém
Que acabando-se os arrufos
Ou eu vou, ou ela vem
Isto é bom, Isto é bom,
Isto é bom que dói.
Quem ver mulata bonita
Bater no chão com o pezinho
No sapateado ameio
Mata meu coraçãozinho
Isto é bom, Isto é bom
Isto é bom que dói.
As cadeiras me dói, dói, dói
Minha mulata bonita
Vamos ao mundo girar
Vamos ver a nossa sorte
Que Deus tem para nos dar
Isto é bom, Isto é bom
Isto é bom que dói
Minha mulata bonita
Quem te deu tamanha sorte
Foi um soldado de Minas
Ou do Rio Grande do Norte?
Isto é bom, Isto é bom,
Isto é bom que dói.
Minha viola de pinho
Eu mesmo fui o pinheiro
Quem quiser coisa boa
Não tenha amor ao dinheiro.

 

 Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira

            Abril Cultural - 1978
Fotos: Google

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Posteriormente, a melodia de ISTO É BOM foi reutilizada diversas vezes em gravações mecânicas!

    ResponderExcluir