ELES COMEÇARAM A HISTÓRIA
A Música Popular, essa criadora de ídolos da moderna era da cultura de massa, começou a nascer no Brasil há mais de duzentos anos, pela mão de artistas cujo nome, na maioria das vezes, a História esqueceu.
Desde o fim
do século XVII, o poeta satírico GREGÓRIO DE MATTOS GUERRA, (Salvador 23/12/1636 - Recife 26/11/1696 apelidado BOCA DO
INFERNO ou BOCA DE BRASA, conquistava (já velhote) muitas mulatinhas do Recôncavo baiano,
cantando versos frascários ao som de uma viola de arame por ele mesmo
fabricada. Por suas críticas foi considerado poeta rebelde e primeiro poeta do Brasil.
Pouco mais de cinquenta
ano depois, em meados do século XVIII, outro tocador de viola, o poeta carioca DOMINGOS
CALDAS BARBOSA, o LERENO
(Rio de Janeiro 1740, Lisboa 9/11/1800), filho de um português com uma escrava negra de Angola, deixava
o Rio de Janeiro e ia lançar na corte de Lisboa umas cantigas repassadas de tal
ternura, que os mais conservadores chegava a temer pela integridade moral das
mulheres as quais se dirigiam.
“Ora adeus, Senhora Ulina,
Diga-me, como passou,
Conte-me, teve saudades?
Não, não; nem de mim mais se lembrou;
Cantou, algumas modinhas?
E que modinhas cantou?
Lembrou-lhe alguma das minhas?
Não,
Não; nem de mim mais se lembrou”.
Seria, porém, a partir
da segunda metade do século XIX, que a história da música popular iria fixar os
primeiros nomes daqueles que ajudaram a formar no Brasil, um dos mais ricos
patrimônios de todo o mundo, no campo dos ritmos e das canções. E havia com toda a certeza uma razão para
isso.
Por
oposição à música folclórica (de autor desconhecido e transmitida oralmente de
geração a geração), a música popular (composta por autores conhecidos, e
divulgada por meios gráficos, como as partituras, ou através de gravações de
discos, fitas, filmes ou vídeo-tapes) constitui uma criação contemporânea ao
aparecimento das cidades com um certo grau de diversificação social.
No
Brasil isso equivale a dizer que a música popular aparece nas duas principais
cidades coloniais – Salvador e Rio de Janeiro – no correr do século XVIII,
quando o ouro das Minas Gerais desloca o eixo econômico da região Nordeste para
o Centro-Sul, e a coexistência desses dois centros administrativos de áreas
econômicas distintas torna possível a formação de uma classe média urbana
relativamente diferenciada.
Nos primeiro duzentos
anos da colonização portuguesa no Brasil, a existência de música popular se
tornava impossível desde logo porque não existia povo. Os indígenas, primitivos
donos da terra, viviam em estado de nomadismo ou em reduções administradas com
caráter de organização teocrática pelos padres jesuítas.
Os
negros trazidos da África eram considerados coisas e só encontravam relativa
representatividade social enquanto membros de irmandades religiosas. E,
finalmente, os raros brancos e mestiços livres empregados nas cidades,
constituíam minoria sem expressão, o que os levava ora a identificar-se
culturalmente com os negros, ora com os brancos da elite de proprietários – os
chamados homens bons.
Durante esses dois primeiros séculos de colonização, portanto, os
únicos tipos de música ouvidos no Brasil seriam os cantos das danças rituais
dos indígenas, acompanhados por instrumentos de sopro (flautas de vários tipos,
trombetas, apitos) e por maracás e bate-pés; os batuques dos africanos (na
maioria das vezes também rituais, e à base de percussão de tambores, atabaques
e marimbas, e ainda de palmas, xequerés e ganzás), e, finalmente, as cantigas
dos europeus colonizadores. Estas eram ainda representadas por gêneros de
músicas que remontavam em muitos casos ao tempo da formação dos primeiros burgos
medievais, dos séculos XII ao XIV, e que se conheciam como romances, xácaras, coplas e serranilhas.
Fora desses tipos de música, só se poderia citar - já como criações ligadas à arte de elite dos
colonizadores – o cantochão das missas e do hinário religioso católico
(salmodias cantadas em contraponto) e os toques e fanfarras militares.
Para que pudesse surgir um gênero de música reconhecível como
brasileira e popular, seria preciso que a interinfluência de tais elementos
musicais chegasse ao ponto de produzir uma resultante. E, principalmente que se
formasse nas cidades um novo público com uma expectativa cultural própria a
estimular o aparecimento de artistas capazes de promover essa síntese. Pois isso só se deu de forma ampla e regular
a partir de meados do século dezenove, quando o povo das principais cidades
brasileiras configurou em sua heterogeneidade o que modernamente se chama de
massa e passou a exigir um tipo novo de produção cultural, capaz de atender a
novas formas de lazer. Essa produção, no
setor da música, fez-se representar pelos gêneros da modinha e do lundu; no campo
da dança pela criação do maxixe; e, no da diversão em geral, pelo aparecimento
dos cafés- cantantes, dos teatros de revista e, mais tarde, das casas de chope
e dos desfiles de carnaval.
Para que a música estivesse
presente em todas essas criações surgidas da necessidade de organização do
lazer na vida das cidades, várias gerações de artistas do povo deram a sua
contribuição, primeiro ao som da viola, depois nos conjuntos de choro (à base
de flauta, cavaquinho e violão) e, por fim, manejando instrumentos
sofisticados como o piano, ou primitivos como os pratos raspados com facas dos
sambas de partido alto. Graças ao talento inato das grandes massas populares do
Brasil, não apenas nas cidades, mas na área rural (a música urbana no Brasil
muitas vezes se confunde com a do campo), os nomes desses criadores do povo se
contam por milhares até hoje.
Fonte: Nova História da Música Popular Brasileira
Abril Cultural – 1978
Foto: Wikipedia
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