ESCOLAS
DE SAMBA
Texto
de Tárik de Souza (década de 70)
O
Movimento cultural conhecido por Escolas
de Samba segue um trajeto sociologicamente claro.
Trata-se
de um dos contingentes de mão-de-obra não especificada, de reduzido nível de
escolaridade e escassa oportunidade profissional, reunido em torno do tema do
carnaval, à margem da sociedade que o rejeita. À alternativa impraticável de
uma guerra – de fato - contra os detentores do poder, os sambistas dispõem-se a
conquistá-lo de forma superior, pela imposição de sua cultura e consequente
admissão (ou readmissão) na sociedade que os segregara. Mais de meio século
depois de iniciado esse movimento – a princípio de forma tímida, sujeito a intensa repressão -, pode-se
dizer que o samba venceu a batalha. Como diz um desses guerreiros, o venerável Xangô da Mangueira:
-
“antigamente era preciso levar a ata de casa em casa e obrigar alguém a
responsabilizar-se pela direção das escolas. Hoje, a eleição da diretoria é
mais disputada que a presidência da República”. O sambista ganhou status e mesuras dos poderosos. No
entanto, não se pode dizer que tenha deixar de sofrer baixas significativas.
A
dominação cultural da classe média pelo sambista, de certo modo, é ilusória. As
escolas foram obrigadas a falar um idioma diferente, a trocar o lúdico dos
primeiros tempos pelo luxo de hoje. A utilizar esteticamente criadores de
referencial classe média para filtrar seu natural “mau gosto”. A compactar o
samba-enredo para torná-lo imediatamente cantável, como nos festivais. A
submeter-se, em suma, ao regulamento, para uma conquista ordeira, pacífica – e
recíproca. Nada de barbarismos, em última análise. Esse percurso, porém, está
longe de ser simples, do ponto-de-vista estritamente cultural. Obrigados a
digerir apressadamente, desde o Estado Novo, os compêndios da História
do Brasil, os encarregados dos enredos acabaram motivando ao irreverente Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, a
caricatura do Samba do Crioulo Doido.
Afinal, eles estavam proibidos de tratar de seus próprios problemas cotidianos
através do alto-falante de que dispunham. Revogado o presente, só o passado –
cristalizado e inerte – seria admitido,
no irrecusável estilo exaltação. A
Segunda Guerra Mundial, Prestes, O Cavaleiro da Esperança (lendário samba da Portela), e outros momentosos assuntos
abordados pela cada vez mais potente emissora desse contingente social
apartado, foram confinados ao menor auditório do samba de quadra e terreiro.
Caracterizou-se, aí, a primeira censura estética exercida contra o grupo.
Organizadas numa associação, protegidas por sua unidade e coesão, as escolas
também foram obrigadas a transformar o samba-enredo em produto, com mercado
certo, sob a exigência de gravação antecipada para execução nas rádios. A
uniformização acabou sendo a consequência de tantas necessidades exigidas para
um fio de música: obrigadas a tratar do enredo, obedecer o ritmo, enfiar um
refrão associável, as alas dos compositores acabaram transformando essa modalidade
musical na mais rígida peça da área do samba. E não seria incorreto chamar de
”peça” ao samba-enredo, visto que o desfile aproxima-se de uma ópera e aos
músicos cabe subserviência a uma espécie de libreto tácito ou combinado, onde
são muito raros os espaços para os improvisos. Enquanto as primeiras escolas
eram caracterizadas pela indisciplina, pelo vai quem quer e como pode e pelo
deixa falar que seus próprios nomes sugeriam, aos poucos foi triunfando o
encadeamento e a disciplina. Das coreografias de Mercedes Baptista aos balés que lembram a sensaboria televisiva das
vinhetas do programa Fantástico, da TV Globo.
A
massa cultural da escola é, portanto, permeável às influências. Paradoxalmente,
quanto mais cede de sua linguagem, menos forças obtém e é obrigada a “importar” tantos “sambeiros” quantos forem necessários
para descaracterizar sua estética muito particular, resultado de uma sabedoria
artesanal transmitida pelas gerações da comunidade. Esse processo de
desvirtuamento, no entanto, está longe de ser imperturbável. No auge da era do
luxo, encabeçada pelo tricampeonato da Beija-Flor e sob o refrão de seu líder, Joãzinho
“quem
gosta da pobreza é intelectual” Trinta, surgiu a reação consciente e firme. Sambistas
egressos das grandes agremiações (basicamente da Portela, uma das mais atingidas pela descaracterização) fundaram no
longínquo subúrbio de Coelho Neto, em 1976, a Escola de Samba Quilombo. Como sugere a rebeldia do título, um
quisto negro de resistência ao “embranquecimento” das escolas. Candeia, seu líder, falecido em 1978,
iniciou um paciente trabalho de recuperação das origens e tradições dessas
comunidades. Procurou atrair também os jovens contingentes negros da periferia
que já se sentiam marginalizados pela “oficialização” do ambiente das escolas e
seus preços altos, preferindo os bailões populares do Black Rio, ao ritmo de soul
e coreografia importada. Da mesma forma, dentro do pacote enviado por James
Brown & Cia., chegava ao Brasil o inconformismo black panther, a mão fechada erguida para o alto e a palavra de
ordem “ I’m Black, I’m proud” (“Sou
negro e me orgulho disso”), que já rareava nos estádios de ensaio das escolas,
dominados por turistas nacionais e estrangeiros. De novo era a marginalização –
desta vez, dentro de seus próprios redutos – que atacava a figura do sambista. E o jovem da comunidade começou a tentar tornar-se
black a fim de – paradoxalmente – recuperar sua identidade. A Quilombo reagiu a esse princípio de
êxodo com moderação, seguindo a esperança de Candeia, “o black de hoje pode ser o sambista de amanhã”.
Paralelamente houve um movimento de valorização
e consulta às VELHAS GUARDAS
de todas as escolas. Voltaram a ter voz ativa no samba, catedráticos encostados
pelos computadores das novas diretorias, como CARTOLA, CARLOS CACHAÇA,
XANGÔ e as Velhas Guardas da Portela
e Império Serrano especialmente. E, a despeito de tudo, o conduto social e
comunitário das escolas continua a fluir com energia e talento. E, não convém
esquecer, ao compasso do resistente e inconfundível samba.
Fonte:
TÁRIK
DE SOUZA
NOVA
HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL
CULTURAL - 1979
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