segunda-feira, 7 de julho de 2014

OFICINA DA VOZ III - DESENVOLVIMENTO E FORMAÇÃO DA VOZ


DESENVOLVIMENTO DA FORMAÇÃO DA VOZ

A técnica vocal é praticada há séculos. Em todas as grandes épocas da história do mundo existiu o teatro e certamente, com ele um cultivo do idioma referente. Infelizmente faltam-nos documentos históricos sobre a maneira do ensino. Dos gregos sabemos que a declamação predominava sobre o canto. Na era cristã, foi fundada pelo Papa Silvestre, em Roma, no Século IV, a primeira escola de canto para a formação do canto religioso. Até o Século XVI, o maior desenvolvimento da música era ligado à Igreja. O canto litúrgico predominava. Nos séculos XII ao XIV, trovadores, “minnesaenger” e mestres cantores executavam uma música profana, cujas melodias se espalharam, até que, muito depois, também se incorporaram à Igreja que relutara em aceitá-las.
A construção dos instrumentos que acompanhavam os cantores desenvolveu-se amplamente. No fim do século XVI estava assim, tudo preparado para uma nova forma musical: a ópera, que reunia cantores com bailarinos e declamadores, acompanhados por vários instrumentos, apresentando um estilo musical, que foi recebido com grande entusiasmo pelo público. Por consequência, houve um desenvolvimento rápido da ópera, nos séculos seguintes, o que trouxe consigo a necessidade de cantores com grandes possibilidades vocais.
Sabemos hoje, que na fala geralmente são usados 5 tons; um bom declamador ou ator poderá usar até mais de uma oitava ( 8 tons), enquanto um grande cantor consegue emitir de 2 até 3 oitavas, isto é 16 até 24 tons ou 36 semitons (exceções já conseguiram 5 oitavas).  Isto significa que as exigências da voz desde o nascimento da ópera, são bem maiores, e daí surgiram grandes escolas de canto, das quais a maior em Roma. Surgiram também técnicas diferentes. Nem todos os cantores e atores tinham o material  de voz desejado e trabalharam para consegui-lo. Um caso conhecido nos arquivos médicos: ENRICO CARUSO (1873-1921), de natureza, barítono, executando exercícios, forçando a voz, até usando o artifício de apoiar a testa na parede, durante os treinos, conseguiu ser tenor. Este procedimento não natural, provocou, com o tempo, nódulos nas pregas vocais.  O estado patológico da voz de Caruso foi provado; por intermédio de pneunogramas verificou-se a sua respiração defeituosa.
Não quer isto dizer  que as técnicas foram efetuadas sempre nesta maneira, porque tivemos grandes cantores e cantoras, possuidores de vozes sãs, que cantaram até 70 anos. Mas Caruso não é um caso tão excepcional como pode parecer. Nos arquivos médicos, pode-se achar, até hoje, nomes de cantores conhecidos que se apresentaram nas clínicas com deficiências incríveis.  Por exemplo: o caso de uma cantora que, exerceu sua profissão durante 10 anos nos maiores palcos de Paris, e que ia perdendo a voz devido a “má respiração”. Aprendendo a respirar normalmente, todas as dificuldades desapareceram.  Surge a pergunta: como pode acontecer isto, com toda a grande tradição que possuímos na formação de vozes? Já foi dito que com o desenvolvimento do canto formaram-se técnicas diferentes. Lendo-se a literatura do passado sobre o assunto, pode-se notar que, embora todos os cantores falem nos termos básicos, tais como, respiração, apoio, ressonância, articulação,  já se distinguem na aplicação da respiração. Podem, por exemplo, cantar com a caixa torácica levantada, ou com a caixa torácica abaixada (contrário!); na articulação cantar todas as 29 vogais com a boca numa só posição; ou numa posição diferente para cada vogal; no apoio: os músculos abdominais estendidos, ou contraídos.
Nos estudos com vários professores pode acontecer que, às vezes, nos ensinem a cantar com a boca aberta, queixo caído até o máximo, dentes invisíveis.  Outras vezes, com a boca aberta, larga, sorrindo mostrando os dentes (trata-se aqui da execução de exercícios com um idioma só!). Aconteceu – na metade do século XX, que uma aluna perguntou a uma professora como se forma um som agudo ou grave na laringe, e recebeu a resposta que com tal explicação não aprenderia a cantar (em parte é verdade). Assim, muitos cantores e atores acabaram estudando sozinhos por causa da variedade de técnicas diferentes, com as quais ficaram, naturalmente, perturbados.
Qual a origem desta situação na Técnica Vocal?
Aprendemos a falar e a cantar por imitação e ouvido. Num sistema de imitação baseiam-se também quase todas as velhas escolas, porque antigamente não se conhecia o funcionamento do aparelho fonador. Formaram-se expressões até hoje usadas: voz de cabeça, voz de peito, cantar na máscara, ressonância, apoio (nem todas elas se justificam cientificamente). Antigamente, o aluno aceitava estes termos imitando o professor. Daí, desenvolveram-se técnicas diferentes, porque os professores ensinaram canto aos alunos, como eles o aprenderam, não levando em conta que cada um de nós tem uma outra reação à técnica, porque somos todos diferentes fisiologicamente.
Com o desenvolvimento da ciência, do pensamento, a educação mudou, ensinando o aluno não somente a decorar e a imitar. Além disso, após as duas guerras mundiais, formou-se uma juventude mais livre, mais rebelde, que queria melhorar e não repetir os mesmos erros. Uma juventude de espírito mais crítico que não aceitava apenas a imitação, mais exigia explicações lógicas.  Desde então, o conhecimento da ciência da voz desenvolveu e estendeu-se com grande rapidez: possuímos hoje livros que explicam o funcionamento do aparelho fonador. Já temos uma base para a Técnica Vocal, fornecida pela ciência da voz.
 A medicina pesquisou o funcionamento do aparelho fonador, sua anatomia, suas deficiências, suas doenças. Poucas vezes um médico, pesquisador de voz, aprendeu canto, como também, muito raramente, um cantor, ator ou professor de canto estudou medicina, nem  a  menor parte necessário ao canto. Mas, quando tais estudos se conjugaram, surgiram grandes resultados. Entre outros: Manoel Garcia, Raoul, Husso.
Apesar dos resultados da ciência sobre o funcionamento do aparelho fonador, muitos artistas e professores de canto e fala seguem o velho método de imitação, simplesmente não sabendo o que fazem. Acham que a arte é algo fora do mundo, que não deve ser tocada (porque “voz, a gente tem ou não tem...”), é melhor que fique envolvida num mistério. Mistério este que tem por consequência os casos já citados.
Mas, logicamente é difícil  e até agora quase impossível formar-se ator, cantor ou professor de Técnica Vocal e igualmente médico, nem seria necessário, se ambas as profissões se aliassem em mútuo interesse, como acontece em todos os grandes centros do mundo, onde trabalham em clínicas para perturbações de voz, lado a lado, médicos, professores de fala e canto, foniatras, psiquiatras, etc... Ali são testadas todas as pessoas que precisam muito da voz, pessoas com deficiências congênitas ou adquiridas, ali são dados conselhos e efetuados tratamentos.
Surge mais uma vez a pergunta:  por que continua, no ensino, o desconhecimento, em grande parte, da fisiologia da voz? Não devemos esquecer que a ciência da voz é, relativamente jovem em confronto às outras ciências. Embora médicos, pesquisadores do século XVIII já se interessassem pelo funcionamento do aparelho fonador e embora já fosse estudado pela anatomia, até 1854 não sabíamos qual o produtor exato da voz.
Naquela época foram contados pela ciência 60 pesquisadores, divididos em 20 grupos principais que, alternadamente, determinaram como produtores da voz: a traqueia, os músculos, a epiglote (parte da laringe), os ventrículos de Morgagni (espaço entre as cordas falsas e verdadeiras) ou respectivamente as cordas vocais superiores (falsas). Fatal era que todos achassem os seus resultados certos e em nenhum documento consta que se trata de uma hipótese. Todas lutaram com a matéria, até que, finalmente, o professor de canto Manoel Garcia teve a ideia de introduzir, profundamente, em sua garganta um espelho de dentista, colocando-se contra o sol e observando com um segundo espelho o interior da laringe. Este simples fato terminou todas as lutas da ciência e com isto foi provado, pela primeira vez na história da ciência da voz, que cantamos e falamos com as cordas vocais inferiores (verdadeiras).
Isto aconteceu há 110 anos – um espaço de tempo relativamente pequeno quando comparado com as outras ciências. O canto, a fala, a música, o teatro já existem há séculos e atuaram sem esta ciência, com grandes resultados e grandes artistas. Isto talvez explique, um pouco, a atitude indiferente por parte da arte em relação à ciência, até hoje.  Se deu resultado em tantos séculos, então dará hoje também. Mas não é tanto assim, já no último século temos o grande desenvolvimento da técnica e com ela o telefone, o rádio, os transmissores, os discos e mais tarde a televisão. E em tudo está envolvida a voz e, como já foi dito e fica bem claro agora, jamais precisamos dela, como nos tempos modernos.
CANTAR É UM ATO SENSÍVEL E NATURAL EM SI, DE NADA ADIANTA COMPLICÁ-LO SE BEM QUE É NECESSÁRIO ESTABELECER SUAS BASES QUE SÃO A RESPIRAÇÃO, A RESSONÂNCIA, A EMISSÃO E ARTICULAÇÃO.

Fonte: Wilson Sá Brito
Canto Livre – abril a junho de 1999


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