DESENVOLVIMENTO DA FORMAÇÃO DA VOZ
A técnica vocal é
praticada há séculos. Em todas as grandes épocas da história do mundo existiu o
teatro e certamente, com ele um cultivo do idioma referente. Infelizmente
faltam-nos documentos históricos sobre a maneira do ensino. Dos gregos sabemos
que a declamação predominava sobre o canto. Na era cristã, foi fundada pelo
Papa Silvestre, em Roma, no Século IV, a primeira escola de canto para a
formação do canto religioso. Até o Século XVI, o maior desenvolvimento da
música era ligado à Igreja. O canto litúrgico predominava. Nos séculos XII ao
XIV, trovadores, “minnesaenger” e mestres cantores executavam uma música profana,
cujas melodias se espalharam, até que, muito depois, também se incorporaram à
Igreja que relutara em aceitá-las.
A construção dos
instrumentos que acompanhavam os cantores desenvolveu-se amplamente. No fim do
século XVI estava assim, tudo preparado para uma nova forma musical: a ópera,
que reunia cantores com bailarinos e declamadores, acompanhados por vários
instrumentos, apresentando um estilo musical, que foi recebido com grande
entusiasmo pelo público. Por consequência, houve um desenvolvimento rápido da
ópera, nos séculos seguintes, o que trouxe consigo a necessidade de cantores
com grandes possibilidades vocais.
Sabemos hoje, que na
fala geralmente são usados 5 tons; um bom declamador ou ator poderá usar até
mais de uma oitava ( 8 tons), enquanto um grande cantor consegue emitir de 2
até 3 oitavas, isto é 16 até 24 tons ou 36 semitons (exceções já conseguiram 5
oitavas). Isto significa que as
exigências da voz desde o nascimento da ópera, são bem maiores, e daí surgiram
grandes escolas de canto, das quais a maior em Roma. Surgiram também técnicas
diferentes. Nem todos os cantores e atores tinham o material de voz desejado e trabalharam para
consegui-lo. Um caso conhecido nos arquivos médicos: ENRICO CARUSO (1873-1921),
de natureza, barítono, executando exercícios, forçando a voz, até usando o
artifício de apoiar a testa na parede, durante os treinos, conseguiu ser tenor.
Este procedimento não natural, provocou, com o tempo, nódulos nas pregas
vocais. O estado patológico da voz de
Caruso foi provado; por intermédio de pneunogramas verificou-se a sua
respiração defeituosa.
Não quer isto
dizer que as técnicas foram efetuadas
sempre nesta maneira, porque tivemos grandes cantores e cantoras, possuidores
de vozes sãs, que cantaram até 70 anos. Mas Caruso não é um caso tão
excepcional como pode parecer. Nos arquivos médicos, pode-se achar, até hoje,
nomes de cantores conhecidos que se apresentaram nas clínicas com deficiências
incríveis. Por exemplo: o caso de uma cantora
que, exerceu sua profissão durante 10 anos nos maiores palcos de Paris, e que
ia perdendo a voz devido a “má respiração”. Aprendendo a respirar normalmente,
todas as dificuldades desapareceram.
Surge a pergunta: como pode acontecer isto, com toda a grande tradição
que possuímos na formação de vozes? Já foi dito que com o desenvolvimento do
canto formaram-se técnicas diferentes. Lendo-se a literatura do passado sobre o
assunto, pode-se notar que, embora todos os cantores falem nos termos básicos,
tais como, respiração, apoio, ressonância, articulação, já se distinguem na aplicação da respiração.
Podem, por exemplo, cantar com a caixa torácica levantada, ou com a caixa
torácica abaixada (contrário!); na articulação cantar todas as 29 vogais com a
boca numa só posição; ou numa posição diferente para cada vogal; no apoio: os
músculos abdominais estendidos, ou contraídos.
Nos estudos com vários
professores pode acontecer que, às vezes, nos ensinem a cantar com a boca
aberta, queixo caído até o máximo, dentes invisíveis. Outras vezes, com a boca aberta, larga,
sorrindo mostrando os dentes (trata-se aqui da execução de exercícios com um
idioma só!). Aconteceu – na metade do século XX, que uma aluna perguntou a uma
professora como se forma um som agudo ou grave na laringe, e recebeu a resposta
que com tal explicação não aprenderia a cantar (em parte é verdade). Assim,
muitos cantores e atores acabaram estudando sozinhos por causa da variedade de
técnicas diferentes, com as quais ficaram, naturalmente, perturbados.
Qual a origem desta
situação na Técnica Vocal?
Aprendemos a falar e a
cantar por imitação e ouvido. Num sistema de imitação baseiam-se também quase
todas as velhas escolas, porque antigamente não se conhecia o funcionamento do
aparelho fonador. Formaram-se expressões até hoje usadas: voz de cabeça, voz de
peito, cantar na máscara, ressonância, apoio (nem todas elas se justificam
cientificamente). Antigamente, o aluno aceitava estes termos imitando o
professor. Daí, desenvolveram-se técnicas diferentes, porque os professores
ensinaram canto aos alunos, como eles o aprenderam, não levando em conta que
cada um de nós tem uma outra reação à técnica, porque somos todos diferentes
fisiologicamente.
Com o desenvolvimento
da ciência, do pensamento, a educação mudou, ensinando o aluno não somente a decorar
e a imitar. Além disso, após as duas guerras mundiais, formou-se uma juventude
mais livre, mais rebelde, que queria melhorar e não repetir os mesmos erros.
Uma juventude de espírito mais crítico que não aceitava apenas a imitação, mais
exigia explicações lógicas. Desde então,
o conhecimento da ciência da voz desenvolveu e estendeu-se com grande rapidez:
possuímos hoje livros que explicam o funcionamento do aparelho fonador. Já
temos uma base para a Técnica Vocal, fornecida pela ciência da voz.
A medicina pesquisou o funcionamento do
aparelho fonador, sua anatomia, suas deficiências, suas doenças. Poucas vezes
um médico, pesquisador de voz, aprendeu canto, como também, muito raramente, um
cantor, ator ou professor de canto estudou medicina, nem a menor
parte necessário ao canto. Mas, quando tais estudos se conjugaram, surgiram
grandes resultados. Entre outros: Manoel Garcia, Raoul, Husso.
Apesar dos resultados
da ciência sobre o funcionamento do aparelho fonador, muitos artistas e
professores de canto e fala seguem o velho método de imitação, simplesmente não
sabendo o que fazem. Acham que a arte é algo fora do mundo, que não deve ser
tocada (porque “voz, a gente tem ou não tem...”), é melhor que fique envolvida
num mistério. Mistério este que tem por consequência os casos já citados.
Mas, logicamente é
difícil e até agora quase impossível
formar-se ator, cantor ou professor de Técnica Vocal e igualmente médico, nem
seria necessário, se ambas as profissões se aliassem em mútuo interesse, como
acontece em todos os grandes centros do mundo, onde trabalham em clínicas para
perturbações de voz, lado a lado, médicos, professores de fala e canto,
foniatras, psiquiatras, etc... Ali são testadas todas as pessoas que precisam
muito da voz, pessoas com deficiências congênitas ou adquiridas, ali são dados
conselhos e efetuados tratamentos.
Surge mais uma vez a
pergunta: por que continua, no ensino, o
desconhecimento, em grande parte, da fisiologia da voz? Não devemos esquecer
que a ciência da voz é, relativamente jovem em confronto às outras ciências.
Embora médicos, pesquisadores do século XVIII já se interessassem pelo
funcionamento do aparelho fonador e embora já fosse estudado pela anatomia, até
1854 não sabíamos qual o produtor exato da voz.
Naquela época foram
contados pela ciência 60 pesquisadores, divididos em 20 grupos principais que,
alternadamente, determinaram como produtores da voz: a traqueia, os músculos, a
epiglote (parte da laringe), os ventrículos de Morgagni (espaço entre as cordas
falsas e verdadeiras) ou respectivamente as cordas vocais superiores (falsas).
Fatal era que todos achassem os seus resultados certos e em nenhum documento
consta que se trata de uma hipótese. Todas lutaram com a matéria, até que,
finalmente, o professor de canto Manoel Garcia teve a ideia de introduzir,
profundamente, em sua garganta um espelho de dentista, colocando-se contra o
sol e observando com um segundo espelho o interior da laringe. Este simples
fato terminou todas as lutas da ciência e com isto foi provado, pela primeira
vez na história da ciência da voz, que cantamos e falamos com as cordas vocais
inferiores (verdadeiras).
Isto aconteceu há 110
anos – um espaço de tempo relativamente pequeno quando comparado com as outras
ciências. O canto, a fala, a música, o teatro já existem há séculos e atuaram
sem esta ciência, com grandes resultados e grandes artistas. Isto talvez
explique, um pouco, a atitude indiferente por parte da arte em relação à
ciência, até hoje. Se deu resultado em
tantos séculos, então dará hoje também. Mas não é tanto assim, já no último
século temos o grande desenvolvimento da técnica e com ela o telefone, o rádio,
os transmissores, os discos e mais tarde a televisão. E em tudo está envolvida
a voz e, como já foi dito e fica bem claro agora, jamais precisamos dela, como
nos tempos modernos.
CANTAR É UM ATO
SENSÍVEL E NATURAL EM SI, DE NADA ADIANTA COMPLICÁ-LO SE BEM QUE É NECESSÁRIO
ESTABELECER SUAS BASES QUE SÃO A RESPIRAÇÃO, A RESSONÂNCIA, A EMISSÃO E
ARTICULAÇÃO.
Fonte: Wilson Sá Brito
Canto Livre – abril a
junho de 1999
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