quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

A PRÉ-HISTÓRIA DA MÚSICA DE CARNAVAL - V



No princípio, o carnaval brasileiro era uma festa que não se celebrava com um ritmo próprio: dominós, pierrôs e colombinas dançavam quadrilhas, valsas rodopiantes, xotes, habaneras e a badalada polca com tal animação que se esqueciam de que essas músicas eram as mesmas dos bailes do resto do ano. A folia momesca só começa  a adquirir  sua individualidade musical a partir das primeiras décadas do século XX. Mesmo o maxixe, a primeira música de dança urbana brasileira, que aparece por volta de 1870, não iria alterar significativamente a situação.
Uma das tentativas iniciais de se empregar música com finalidade especificamente carnavalesca apareceu com os cordões, no final do século XIX. Os cordões gingavam e cantavam quadrinhas improvisadas, cantigas de roda, árias de ópera e até fados. E foi por iniciativa de um desses cordões que nasceu aquela que entraria para a história como a PRIMEIRA CANÇÃO DE CARACTERÍSTICAS EMINENTEMENTE CARNAVALESCAS. Trata-se da antológica Ó ABRE ALAS, (1899), marcha-rancho da Maestrina CHIQUINHA GONZAGA, (1847-1935), composta a pedido do Cordão ROSA DE OURO.
Ó Abre Alas já tinha os traços que se exigem  de uma música de carnaval: versos simples e fáceis de guardar, e ritmo envolvente e aliciador, capaz de se popularizar rapidamente. E embora, outros agrupamentos – tais como o Cordão Flor de São Lourenço (1885), o Cordão Prazer da Lua e o Bloco Flor da Primavera – já tivessem suas próprias canções para sair no carnaval, estas não conseguiram se impor à coletividade dos foliões e nem mesmo possuíam um ritmo que alinhasse o coro dos cordões. A marcha de Chiquinha Gonzaga composta na virada do século, fixa, portanto, o aparecimento de um novo gênero na música popular brasileira. Ó Abre Alas é uma espécie de grito, de manifesto dessa nova forma de canção popular, a música de carnaval.
A partir daí, progressivamente, o carnaval começou a requisitar uma sonoridade específica, criando então as figurações rítmicas essencialmente carnavalescas. O desenvolvimento e amadurecimento da linguagem do samba, por exemplo, veio enriquecer as possibilidades da utilização de músicas que captassem e estimulassem a balbúrdia de Momo.
Mas a música de carnaval absorveria também uma grande contribuição da batucada dos bumbos do Zé Pereira. Quem primeiro traçou um retrato do Zé Pereira foi VIEIRA FAZENDA, em seu livro Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Os historiadores, porém, se confundem quando se trata de assinalar a data em que o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes e alguns patrícios saíram batendo bumbos ritmada e constantemente pelas ruas do centro da cidade.  Alguns afirmam que tal fato ocorreu no ano de 1846; outros indicam o carnaval de 1852 como a data mais segura em que o zabumbar festivo, de inspiração lusitana adentrou a sensibilidade momesca. A verdade é que a prática do Zé Pereira vingou, permanecendo até a segunda década do século XX. Quanto à origem do nome, não se sabe ao certo se Zé Pereira era o termo que designava um pequeno conjunto de bumbos e tambores em Portugal, ou se é uma deturpação do nome do seu introdutor no Brasil, José Nogueira.
O tango-chula Vem cá, mulata, composto em 1902 pelo inveterado folião Arquimedes de Oliveira, foi outra canção que marcou época nos carnavais da década de 1910, com versos do poeta e jornalista Bastos Tigre. Outras canções importantes desse tempo foram Rato, Rato (1904) de Casemiro Rocha e Claudino Costa, e No Bico da Chaleira (1909) polca de Juca Storoni (Costa Junior).
Outro marco decisivo para a história do carnaval e também da música popular foi o sucesso de Pelo Telefone (1917), samba atribuído a Donga e Mauro de Almeida.  Na verdade, parece que o samba é de autoria coletiva dos boêmios, malandros e sambistas que frequentavam a casa da legendária Tia Ciata, um dos berços do samba. Pelo Telefone – cuja letra chegou a ter várias versões publicadas pela imprensa -, além de ser considerado o PRIMEIRO SAMBA GRAVADO, introduzia definitivamente esse gênero como um dos ritmos privilegiados do carnaval brasileiro, ao lado da marcha-rancho, da marchinha, da batucada e do frevo.
Os anos 20 assinalam o período de maturidade das músicas de carnaval. Nesse processo de fixação e divulgação das cantigas que animavam a folia, destacou-se o compositor SINHÔ, o “REI DO SAMBA”. Ao longo daquela década, Sinhô responsabilizou-se por músicas como  Fala, meu louro, e o Pé de Anjo, sucessos do carnaval de 1920 e responsáveis pelo lançamento em disco do Cantor Francisco Alves.  Outro sucesso foi Quem vem atrás fecha a porta, de Caninha. Da mesma década destacam-seFala Baixo, as marchinhas Sai da Raia  e Sete Cordas (1922), Macumba (1923), Já, já(1924) apresentado como “samba democrático”, Dor de Cabeça(1925), Tem papagaio no poleiro( 1926), Ora vejam só(1927), Amar a uma só mulher(1928) e Gosto que me enrosco (1929), samba do qual Heitor dos Prazeres reclama a autoria da primeira parte.
As marchinhas que se tornariam as canções preferidas dos carnavais de salão, foram cada vez mais frequentes nos anos 20. Já no primeiro carnaval da década todo mundo cantou Pois não, de Eduardo souto e Filomeno Ribeiro. Eduardo Souto, paulista, dono de uma casa de músicas que se transformou em ponto de lançamento das cantigas de carnaval – ainda faria sucesso em 1921 com a chula à baiana Pemberê, feita em parceria com João da Praia (Filomeno Ribeiro), e Eu só quero é beliscá (1922), e o samba à moda paulista Tatu subiu no pau (1923).
Ao lado do samba, um gênero estruturalmente carnavalesco é a marchinha, mais alegre e malicioso que aquele. A marchinha se firmou também na década de 20, sendo a modalidade musical mais solicitada nos bailes. Exemplos de marchinhas que assinalaram a época são: Sou da Fuzarca (1929) de Wantuil de Carvalho; Carolina, (1934) de Hervê Cordovil e Bonfiglio de Oliveira; História do Brasil, de Lamartine Babo, que tendo surgindo em 1934 tornou-se uma das composições mais cantadas em todos os carnavais; a irônica Mamãe eu quero, de Jararaca e Vicente Paiva.
As marchinhas surgiram de uma mistura rítmica da polca com o one-step e o ragtime norte-americanos. Enquanto, nas composições carnavalescas, os temas líricos e sentimentais preferem o samba, as marchinhas – ao contrário – são quase sempre alegres, buliçosas, irônicas e brejeiras, chegando, às vezes, ao humor mais corrosivo.
Ai Amor(1921) de Freire Jr. satirizava as melindrosas e os almofadinhas; em 1922 Freire Jr. em parceria com Luiz Nunes Sampaio (Careca) lançaria a marcha Ai, seu mé, que ironizava a campanha presidencial do barbado Artur Bernardes. (a música foi proibida e Freire Jr. preso). Em 1923 ele apresentou a marchinha Não olhe assim; em 1926 lançou Café com Leite, aludindo ao controle político do eixo Minas - São Paulo; “Café paulista,/leite mineiro/nacionalista/bem brasileiro”.
Outro compositor que se destacou na década de 20  foi Caninha    (José Luiz de Moraes) autor do sucesso Quem vem atrás, fecha a porta(1920) e do samba Esta Nega qué me dá (1921). José Francisco de Freitas compôs em 1924 o samba Miserê,  e no carnaval de 1929 sua composição Dorinha meu amor, foi sucesso absoluto.
A década de 30 instala o período mais fértil da música de carnaval. Suas variantes: marcha-rancho, marchinha, frevo, samba, samba-enredo, batucada, compõem o espectro sonoro da folia brasileira, das canções mais melancólicas e reflexivas, às alegres, satíricas e maliciosas. A cantiga carnavalesca tornou-se a medula da grande festa popular e de tal forma que já em 1930 a Casa Edison promoveu um concurso com as composições para o carnaval daquele ano. O vencedor foi Ary Barroso com a marchinha Dá Nela: “ essa mulher há muito tempo me  provoca./dá nela,/dá nela/ é perigosa, fala mais que pata choca./ dá nela/dá nela.”
A partir daí, a marchinha – safada ou paródica, politiqueira ou irônica – adquiriu um sabor nitidamente carnavalesco. Sua sonoridade ficou tão vinculada à imagem do carnaval que se tornou praticamente impossível sua dissociação. Um exemplo claro disso é PIERRÔ APAIXONADO (1936) de Noel  Rosa e Heitor dos Prazeres. Ainda no carnaval de 30 despontou a marchinha que consagraria Carmen Miranda  - TAÍ ( Pra você gostar de mim), de Joubert de Carvalho.
Outros sambas de qualidade que se tornaram grandes sucessos carnavalescos foram Até Amanhã , de Noel Rosa, muito cantado no carnaval de 1933, e Meu consolo é você, samba do caricaturista Nássara, em parceria com Roberto Martins, que emprestou brilho ao carnaval de 1939.
Mais tarde, durante a década de 60, a música estritamente de carnaval enveredaria por flagrante decadência – mas no passo da mulata, num namoro de confete com a serpentina, na cor de uma fantasia, ficaria aceso o aviso de que no entanto é preciso cantar, como disseram Vinicius de Moraes e Carlos Lyra na Marcha da quarta-feira de cinzas.

FONTE: NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
ABRIL CULTURAL - 1979

Nenhum comentário:

Postar um comentário